O título de um texto ou nome de um blog é muito importante para que o leitor pesque qual o assunto tratado. O nome "Roqueiro & Alcoólatra", como já disse no post inicial, me passa uma impressão de que se fala apenas de rock n' roll e bebidas alcóolicas. Não representa a realidade, mas arma um contexto meio bobagento. Nada contra bobagens, aliás, adoro escrever e falar um monte delas (faço bastante disso aqui), mas quando quero tratar de coisas mais sérias, sinto-me deslocado no R&A. E o fato de Huginn ter me pedido para ou maneirar no comprimento dos textos ou escrever num sub-blog criado especialmente para monografias foi um verdadeiro banho de água fria.
"Amoladores de Facas" me passa uma idéia de constante argumentação, cientificidade e crítica. Seriedade, por fim. Discutir preceitos filosóficos e refutar hipóteses furadas por trás de pesquisas ou notas de repúdio é um dos meus vícios. Mas também fico com a impressão de que assuntos pessoais serão amolados no momento que aparecerem (através de exclamações como "isso aqui virou teu floguxo, miguxo?" e assemelhados. Provavelmente eu escreveria essa frase linda. Aliás, fui eu quem escreveu. Aqui. Mas não vem ao caso).
"Espadachim Cego", por outro lado, dá uma idéia contextual completamente diferente. Como já disse, inspirei-me na história japonesa de Zatoichi, o mestre cego da espada que vagava pelo país ganhando a vida como um pobre massagista e com apostas em bingos (não é bem esse o termo, mas vá lá), mas que não hesitava em salvar e proteger os pobres, os necessitados, os fracos e oprimidos. Deixa uma margem para bobagens e coisas pouco sérias, e não exclui as amolações que tanto prezo (espadas não deixam de ser facas, e portanto também precisam ser amoladas), mas também deixa espaço para tratar de minha própria existência, daquilo que me move profundamente.
Segundo a tradição japonesa, aquele que aceita sua própria morte sem medo é considerado um Mestre da Espada, pois aceitou e dominou a si mesmo. Alguns alcançam isso depois de anos de treinamento diligente, enquanto outros o alcançam apenas em sua hora derradeira. Ambas maneiras são admiráveis. Na Grégia Antiga, os cegos eram considerados sábios, pois tinham a visão que não é cegada pelos olhos - a visão além da visão (ou visão além do alcance, fãs de Thundercats). Estou repetindo muito do que já disse no post inaugural porque quero mostrar a mesma questão de um ponto de vista diferente, pois não falei como estes aspectos me tangem.
Desde cedo, quis ser forte. Não apenas um brutamontes que sabe chutar e socar. Isso é muito fácil, pouco realizador. Quando pensava em Artes Marciais, Wushu, Budô (1), pensava em ser um dos melhores, ser um verdadeiro mestre. É uma idéia bonita, como os muitos filmes do Jackie Chan, Bruce Lee e Jet Li mostram, e é uma idéia antiga, como as diversas histórias de jovens que abandonam suas casas em busca do lendário mestre que os ensinará a arte da espada contam. Mas um fator quase sempre esquecido é a dificuldade em trilhar esse caminho. Dos filmes e histórias que falei, muitos mostram ou falam de treinos rigorosos, mas que nunca transmitem a verdadeira dificuldade por ser apenas visual, nunca sentido no próprio corpo e mente.
Sentido no corpo por causa dos exercícios exaustivos e dolorosos, e sentido na mente por causa da dor, do cansaço, e principalmente da complexidade e dificuldade de absorver os ensinamentos do mestre. Há um koan(2) shaolin que diz que "para um iniciante, um chute é só um chute, e um soco é só um soco. Quando o iniciante se torna um lutador, um chute é mais do que um chute, e um soco é mais do que um soco. Enfim, quando o lutador se torna um mestre em seu pleno direito, ele vê que um chute é só um chute, e um soco é só um soco". Viktor Frankl, em seu livro "A Presença Ignorada de Deus", diz que o objetivo da terapia é "converter uma potentia (potencialidade) inconsciente num actus (ato) consciente, fazendo-o, porém, por nenhuma outra razão que reinstaurá-la eventualmente como habitus (qualidade, estado) inconsciente. Em última análise é tarefa do terapeuta restaurar a espontaneidade e ingenuidade de um ato existencial irrefletido" (1985, pag. 32). Tanto o koan quanto o que diz Frankl tocam o mesmo assunto, de maneiras distintas, porém complementares. Apenas quando li "A Presença Ignorada de Deus" compreendi o que o koan quer dizer.
Mas tornar-se um mestre espadachim ou das artes marciais não é o único caminho possível para a auto-realização. Na verdade, o caminho é o que menos importa, desde que se siga algum com todo coração. No entanto, se os caminhos diferem, a dificuldade em trilhá-los é igual para todos. Além da dor do treino, e da maçante estagnação que frequentemente nos assola, há ainda a necessidade de separar-se dos outros. Quando escolhemos um caminho de auto-realização, escolhemos tornar-nos indivíduos, indivisíveis, unos. Devemos abandonar definitivamente os laços primários que nos unem aos outros, e com eles a segurança que nos transmitiam. É doloroso, pois muitas vezes aqueles ao nosso redor não entendem porque desejaríamos nos tornarmos outra coisa do que o já somos agora. Por um lado, não desejamos ser diferentes e abandonar o conforto que nos cerca, mas sabemos em nosso íntimo que nunca teremos paz interior se não o fizermos.
Enfrento esta dúvida dilacerante, e apesar de ter claro em minha mente qual caminho devo e quero trilhar, com freqüência fraquejo. Escolhi ser um mestre em Wushu, mas falho em treinar; escolhi tornar-me psicólogo, mas não estudo tanto quanto deveria; escolhi ser bondoso, mas humilho e distrato outros; escolhi o solitário caminho da desaparição, mas sou atraído para as festas e os holofotes. Imagino-me como sendo perfeito, mas falho a todo momento. É duro buscar respostas quando se acha que possui todas.
E se falo sobre isso com algum de meus colegas, sinto-me profundamente incompreendido. Parece que lhes falta algo, mas pode ser que falta algo em mim. Não que eu ache que alguém neste mundo tenha uma solução para minha existência, que me faria sentir-me feliz, satisfeito, completo. A única forma de atingir a perfeição é a morte. Não, eu tenho as minhas próprias respostas, apenas preciso descobri-las.
Não lembro bem por que comecei a escrever este texto, no distante mês de fevereiro (3). Achei que estava bem escrito, e apesar de um pouco desconexo, que valia a pena aproveitá-lo. Não estou muito preocupado com nexo neste momento - talvez, daqui a 20 ou 30 anos este texto faça sentido, mas expressar-me parece mais urgente agora.
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1. Wushu e Budô são equivalentes, significando "Arte Marcial" em chinês e japonês, respectivamente.
2. Koans são histórias ou parábolas contadas pelos mestres zen para desafiar seus alunos a pensarem de forma diferente.
3. Dia 10 de fevereiro de 2008, para ser mais exato.
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