quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Revestibular

Estava agora mesmo no Facebook olhando um print screen tirado do site da UFRS com as notas do primeiro e último colocados no vestibular para Medicina. Completamente alheio à discussão das cotas raciais e sociais, comecei a fazer pequenos experimentos mentais, tentando responder à seguinte pergunta: e se eu fizesse vestibular outra vez?

Cacete, acho que essa é uma pergunta que muita gente se faz quando chega no último ano da graduação. Salvo raras e deprimentes exceções, entrar na universidade é um dos momentos mais felizes da vida de um estudante. É neste momento em que trocamos a pressão do cursinho e da família para passar pela alegria de integrar a elite intelectual brasileira, e de poder encher a boca pra dizer "ah, eu estudo na UFRGS", sem contar os fantásticos amigos que se faz ao longo dos cinco (ou mais) anos de faculdade. É, desse ponto de vista, fazer vestibular outra vez não parece uma má idéia. Tu já passou nele antes, não? Agora tu já conhece as manhas, então vai ser mais fácil ainda. Além disso, tu agora tem uma experiência em primeira mão da universidade por dentro, já deve ter encontrado a tua zona de conforto e a maneira de ser feliz ali dentro. Fazer pós-graduação é mais difícil, e não é a mesma coisa que ser graduando, por que parece ter muito mais responsabilidades.

Nesse ponto, me imagino indo fazer a prova, ficando numa boa, escrevendo a redação sem pressa e, então, encontrando meu nome na lista de aprovados do concurso vestibular UFRGS 2013. Êxtase! Regozijo! Orgasmos múltiplos! Tudo bem, mas eu ainda não respondi uma perguntinha essencial: pra que curso eu faria outro vestibular? Faço agora outro experimento mental: e se eu fizesse vestibular para Medicina?

Os filhos da classe média, esse povo sofrido que mal e mal consegue pagar as prestações do carro novo e comprar uma TV LCD de 60 polegadas, ao longo dos três anos do ensino médio, é bombardeado seguidas vezes com a informação de que o vestibular para Medicina é muito concorrido, que tem que estudar muito, e que pouquíssimos são aprovados. A mensagem que nos mandam é que "passar em Medicina é foda". Nós pegamos essa mensagem, e ficamos honestamente assustados com a média harmônica do Vestibular, mas nós também codificamos outra mensagem, que vem escondida na primeira: se passar em Medicina é foda, quem passa em Medicina é foda também. E dessa mensagem, deduzimos uma série de outras - se eu passo em Medicina, que é foda, eu sou foda também. Então, a carreira em Medicina é uma coisa foda de boa, que vai pagar uma grana foda de alta, e qualquer coisa que eu quiser fazer dentro dela vai ser foda de foda, sabe por que? Por que eu sou foda.

Vitinho deve ser médico além de músico.

Questionamentos do tipo "será que é isso mesmo que eu quero fazer?" são abafados pelo som dos milhares de digdins tocando ao fundo dessa cacofonia, e muitos de nós concluem que o negócio é fazer Medicina. Talvez eu tenha exagerado na minha descrição, mas acho que, se exagerei, não foi muito. Não caí nessa armadilha, e muitos estudantes de outros cursos da UFRGS também não. Porém, o fenômeno de muita gente fazendo "faculdade de cursinho", estudando cinco anos para não passar em Medicina é tristemente comum. Não tenho nenhuma estatística precisa a este respeito, mas posso apostar com alguma segurança que todos os cursos pré-vestibulares de Porto Alegre têm pelo menos cinco alunos nesta condição, e estou sendo conservador nas minhas estimativas.

Mas será que toda essa badalação da Medicina é infundada? Certamente que não. Nunca em minha vida meus professores de Ensino Médio me ensinaram algo falso, desatualizado ou que não fosse profundamente importante, e que eu não fosse usar em minha vida futura. Então, passar em Medicina é passar pelos Portões do Paraíso Celeste e sentar ao lado direito de Deus, exceto que Deus não existe e quando nós morrermos vamos apenas apodrecer e virar comida de verme, por que médicos são ateus (apesar de serem a coisa mais próxima de Deus que nós temos). Já passei por um vestibular, fiz uma faculdade e estou quase diplomado nela. Agora deve ser a hora de abandonar as futilidades da vida inferior de psicólogo para abraçar a gloriosa vida de Médico.

Agora, neste ponto do meu experimento mental, me vejo outra vez fazendo a prova do vestibular para Medicina, passando, olhando a Zero Hora com o listão de aprovados na praia e gritando para todos que puderem ouvir "CHUPEM! MINHA! BENGA! EU SOU FODA!" ou qualquer outra blasfêmia parecida. Sim, os louros da vitória são doces. Enfrento, um problema filosófico importante aqui, que é o seguinte: pra fazer tudo isso, eu preciso primeiro passar em Medicina, e pra passar em Medicina, precisa estudar. De um jeito foda.

É, eu posso fazer isso. Mas mais importante do que saber se eu posso fazer, é saber por que eu vou fazer. Eu sei que eu posso jogar meu laptop pela janela enquanto eu grito que Satanás possuiu o HD e baixou 15 giga de pornografia. Eu sei que eu posso. Agora, eu não faço isso por que ia ser uma grande idiotice (especialmente se Satanás realmente tivesse baixado 15 giga de pornografia pra mim). Eu sei que eu posso estudar bastante para o vestibular, e eu sei que, se eu estudar bastante, eu posso passar em Medicina. Todavia, pergunto: por que eu faria isso? Sim, eu sou inteligente (eu sei até escrever para um blog), mas não sou telepata nem sou o escravo sexual de ninguém da reitoria, o que significa que vou ter que estudar bastante, por pelo menos um ano antes de fazer a prova. Esse ano não vai dar, por que tenho o último estágio e o TCC para escrever, a não ser que eu largue tudo pra conquistar meu sonho.

Na padaria é mais barato.

Mesmo que eu não faça isso e termine minha graduação em Psicologia (pra ter direito à cela especial), eu teria que jogar fora outro ano da minha vida só estudando. E estudando o que? Análise do Comportamento aplicado à contextos comunitários? Neuropsicologia Cognitiva? Teoria do Conhecimento Materialista? Não senhor! Eu ia ter que voltar pros meus livros de Física, ler as leituras obrigatórias e fazer muitas continhas de Matemática. Eu teria que deixar de fazer o que eu gosto de fazer, pra passar um ano me preparando para talvez passar mais seis anos fazendo alguma coisa que eu talvez goste, por que todo mundo me diz que essa coisa é foda.

Então, passado um ano de sacrifício (por que até hoje meus piores pesadelos envolvem estequiometria e química orgânica), eu finalmente posso fazer a prova. Daí vem outro problema pra mim. Esse ano, veja só você, eu fui fiscal do vestibular, e pude ver, em primeira mão, o que é ser vestibulando, sem ter que passar pelo desconforto de ser um. Por quatro horas e meia de quatro dias seguidos, pude acompanhar, sem pressa, a agonia que é fazer a prova da UFRGS. Algumas vezes, enquanto passava ao lado das mesas dos candidatos, eu olhava para as provas, via a imensidão de números e coisas escritas e pensava "obrigado Aslam, por eu não ter mais que passar por esse sufoco."

"De nada."
Mas eu acompanhei a prova para Psicologia. Os eventos mais empolgantes do nosso trabalho era acompanhar alguém até o banheiro quando o fiscal volante não estava disponível. Quem foi fiscal nos locais de prova para Medicina, por outro lado, teve tanta excitação que vai gastar os 300 reais que ganhou em bebida, pra esquecer o que viu: gente colando, gente chorando, gente sofrendo, e gente rodando na prova. Quase todo mundo, na verdade. Vale a pena passar por isso outra vez?

Resta, então, uma última pergunta, um último experimento mental: e se eu faço o vestibular para Medicina e passo? Vamos pular a parte em que eu comemoro a aprovação de um jeito que vai me botar na cadeia e ir direto para os dias de aula. Vou ser estudante de Medicina, sim, e todo mundo com quem eu falar vai admitir (ainda que apenas tacitamente) quão foda eu sou, e vou estar sempre a dois passos do Paraíso. Contudo, eu vou ser bixo de novo. E por seis anos, eu vou ser tratado (de novo) como se eu não soubesse a diferença entre a minha boca e a minha bunda, e ouvir explicações diárias em qual delas eu posso colocar cerveja. E entre uma explicação e outra sobre o artigo mais recente sobre os efeitos de ingerir álcool pelo reto, eu vou ter que fazer uma cacetada de estágios que não me interessam, como Ginecologia, Proctologia e Dermatologia, tudo isso no ambiente extremamente hierárquico e reacionário que é o hospital. Um médico poderia intervir agora e dizer "mas tu pode fazer estágio em Psiquiatria ou Neurologia, e trabalhar com aquilo que tu gosta." Sim, eu poderia. E é exatamente o que eu faço agora, sem ser estudante de Medicina. E, como cereja do bolo, a recompensa por estes seis anos de estudos sem sentido será mais dois anos de estudos sem sentido, agora como residente em alguma coisa. Fantástico.

Tendo feito todas estas considerações, concluo apenas uma coisa: melhor fazer mestrado, que pelo menos daí eu viro mestre em alguma coisa.

Chupa essa manga, Pai Mei.