quinta-feira, 23 de abril de 2009

O Ponto Focal do Caráter

"... Tenho pensado muitas vezes que a melhor maneira de de definir o caráter dum homem seria investigar a atitude particular mental ou moral com a qual, quando ela lhe ocorra, ele se sinta mais profunda e intensamente desperto e ativo. Em tais momentos, há uma voz dentro que fala e diz: "Este é o meu Eu real!" E ao depois, considerando as circunstâncias em que o homem está colocado e notando como algumas delas se ajustam para evocar esta atitude, ao passo que outras não a evocam, um observador de fora poderia profetizar quando o homem fracassaria, quando teria êxito, quando seria feliz ou desgraçado. Tanto, porém, como eu a posso descrever, esta característica atitude em mim envolve sempre um elemento de tensão ativa, de sustentação própria, por assim dizer, e de confiança em que as coisas exteriores desempenhem o seu papel de modo a fazer disso uma inteira harmonia, mas sem nenhuma garantia de que a farão. Ponham-le a garantia - e a atitude se torna imediatamente estagnante e inestimulante para a minha consciência. Tirem-lhe a garantia, e eu sinto (contanto que esteja überhaupt, em condição vigorosa) uma espécie de profundo entusiasmo, de vontade acre para fazer sofrer qualquer coisa, que se traduz fisicamente por uma espécie de dor picante dentro da armadura óssea do meu peito (não se riam disto - é, para mim, um elemento essencial de tudo isso!) a qual, apesar de ser um mero humor ou emoção que não posso exprimir por palavras, torna-se autêntica para mim como princípio mais profundo de toda a determinação ativa e teorética que eu possuo..."

Adaptado de A Filosofia de William James

terça-feira, 21 de abril de 2009

Heróis da Força

O Brunão escreveu recentemente um post muito inspirado intitulado "Arte, Quadrinhos e Revolução". Neste texto, ele relata sua experiência com HQs e mangás, que o inspiraram a viver a vida como uma grande aventura, cheia de desafios heróicos para vencermos. Ele também faz uma breve reflexão sobre qual o propósito das histórias em quadrinhos, especialmente na civilização ocidental, que tem sido até então quase que exclusivamente mercadológico, e o que elas poderiam inspirar de superior em nós.

Como meu amigo, posso relatar uma experiência similar de elevação moral com o legendarium de Star Wars. Esta história, que começou na década de 1970 com um filme, não pode atualmente ser mais chamada de "série", pois cresceu de tal maneira, envolvendo desde produções cinematográficas, programas de TV, histórias em quadrinhos e jogos, que fazê-lo seria mutilar sua beleza. Também não é mais possível chamá-la de "franquia": apesar dos direitos autorais sobre os personagens e lugares criados por George Lucas ainda estarem firmes e fortes em suas mãos (fazendo-o lucrar milhões), eles próprios já não os pertencem mais - por que, apesar de terem sido inspirados em várias outras figuras históricas ou lendárias, tornaram-se parte de uma mitologia plena e viva, que inspira milhões de pessoas ao redor do mundo, por verem ali, naquela tela de cinema ou naquela revista em quadrinhos, no sofrimento de Anakin Skywalker ou na sabedoria de Obi-Wan Kenobi, alguma coisa extremamente importante e bela, e que também faz parte de suas vidas. Estes símbolos universais, arquétipos, não pertencem a ninguém, pois estão no domínio daquilo que Jung chamou de Inconsciente Coletivo. Pouco me importa se a Psicologia Analítica por ele criada seja empiricamente válida ou não - tudo que me importa é que, a maneira romântica e poética como ele definiu a natureza humana ressoa profundamente dentro de mim, e de algum jeito faz sentido, mesmo que eu não a entenda perfeitamente.

Desta mitologia moderna, o fragmento que mais teve impacto, seja em mim ou no resto do mundo, foi a Sagrada Ordem dos Cavaleiros Jedi. Apesar de ser uma tarefa homérica numa história fantástica como Star Wars alguma coisa chamar mais atenção do que o resto, é um tanto quanto fácil entender por que os Jedi recebem tanta atenção, com seus poderes de levitar objetos com o poder da mente, antever o futuro, lutar com seus sabres de luz com velocidade e potência sobrehumanas e muitas, muitas outras coisas - tudo com o auxílio da misteriosa Força. Na minha infância, nas primeiras vezes que assisti a Antiga Trilogia, foi exatamente isso que mais me impressionava. Quem não gostaria de ser um Jedi, e fazer tudo isto também? Porém, com o tempo, fui gradativamente percebendo que o grande poder dos Jedi, como seu aspecto assombroso, não eram suas habilidades incríveis, mas alguma coisa além delas. No começo, não era muito bem capaz de descrever o que seria este "algo além", mas cada vez mais aprendendo sobre ele, senão com a mente, com o coração. Fui percebendo que, aqui, nesse nosso mundinho tão sem poderes e tão sem graça, existiam pessoas com este "algo além" - que agem com compaixão, bondade, coragem, justiça, altruísmo e amor, e cuja simples presença pode acalmar o espírito mais inquieto. O "algo além" que caracteriza a essência Jedi não é um poder mágico inalcançável, e sim um poder mais do que moral, mais do que ético: é um poder espiritual. A mais poderosa e bela cena dos filmes da Antiga Trilogia, pelo menos na minha opinião, é a de Yoda descrevendo a natureza da Força para Luke Skywalker, em "O Império Contra-Ataca". O que ela tem de especial? Visualmente, não há muitos efeitos especiais, exceto o tosco boneco verde que representa o pequeno grande mestre. Mas eis que o poder dela não reside no que se vê, mas no que se sente! Ali, Yoda não faz apenas uma descrição da Força como um botânico descreveria uma flor, mas deixa brotar do fundo de seu ser como ele vive e sente a Força, e como através dela ele sente-se conectado com todo o universo. Extrapolando desta cena para a série de cinema como um todo, é isto que faz a Antiga Trilogia ser tão melhor do que a Nova Trilogia - o quanto os filmes falam diretamente com o que há de mais profundo e divino em nós. As duas contam a jornada de um herói da família Skywalker, suas provações e seu destino final. Ambas, de certa forma, tratam do destino de todos nós, seres humanos, mas os últimos filmes são por demais materialistas e politiqueiros, pondo de lado o espírito que fez os filmes antigos tão emocionantes. Claro, precisamos levar em conta o Zeitgeist (espírito do tempo, em alemão) em que cada Trilogia foi concebida - a Antiga, durante o auge do movimento Hippie e de seitas religiosas, e a Nova, durante a II Guerra do Golfo e o muito criticado Governo George W. Bush.

Contudo, apesar de acreditar que é o apelo espiritual que fez e faz de Star Wars um enorme sucesso, tenho visto com mais frequencia que o que mais chama a atenção das pessoas que vão aos cinemas ou baixam da internet assistem às séries são os efeitos especiais, e, mesmo quando a filosofia dos guerreios da Força as comove, elas não parecem acreditar que também podem pautar sua vida por ela e, assim, também serem Jedi. Como bem disse o Brunão, é mais fácil encontrar um admirador do Seiya do que alguém que sustente o sonho de realizar todo seu potencial humano. Apesar dele não ter falado em nenhum momento de seu texto em "potencial humano", mas sim em "super-herói", não faço distinção entre essas duas coisas. Talvez, por trás desta fixação material ou apatia espiritual, haja mais do que desinteresse pessoal, mas uma questão cultural de nossa época. Como disse Maslow, em 1968:

"Todas as idades, exceto a nossa, tiveram seu modelo, seu ideal. Todos eles foram abandonados pela nossa cultura: o santo, o herói, o cavalheiro, o místico. Quase tudo que nos resta é o homem bem ajustado, sem problemas, um substituto muito pálido e duvidoso"

É preciso admitir que, nos 41 anos que nos separam da época em que este parágrafo foi escrito, muitas coisas mudaram, especialmente no que diz respeito ao estudo científico dos aspectos positivos da natureza humana, com o movimento da Psicologia Positiva e suas pesquisas em Bem-Estar Subjetivo e Florescimento, e, talvez, como Maslow diz imediatamente após a parte que citei,

"estejamos aptos em breve a usar como nosso guia e modelo o ser humano plenamente desenvolvido e realizado, aquele em que todas as suas possibilidades estão atingindo o pleno desenvolvimento, aquele cuja natureza íntima se expressa livremente, em vez de ser pervertida, desvirtuada, suprimida ou negada."

Ainda assim, mesmo nos atuais modelos teóricos do desenvolvimento humano superior, sinto que falta algo de muito importante - o mesmo que sinto faltar na Nova Trilogia de Star Wars. De maneira um tanto quanto romântica, digo que prefiro ser um cavaleiro Jedi à um indivíduo florescente.

Dignidade humana?

De um certo ponto de vista, a Psicoterapia é uma profissão um tanto quanto engraçada. Não por que a existência humana seja uma comédia sem sentido como querem os nihilistas ou o sofrimento e angústia de nossos pacientes seja ridícula, mas por que os motivos que trazem as pessoas aos consultórios de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, que os fazem sofrer, geralmente são tão insignificantes que é possível rir deles, se podemos nos colocar a uma certa distância.

Eu vejo isso com meus pacientes adolescentes, entre 15 e 17 anos. Não sou tão mais velho do que eles - poderia até dizer que acabei de me formar na escola da adolescência - e as memórias do que me causava angústia três ou quatro anos atrás ainda estão vivas o suficientes para serem fortes, mas longínquas o bastante para serem vistas por outro ponto de vista, mais maduro (espero eu). É bem comum esses pacientes, especialmente durante uma entrevista inicial, ao falarem das brigas em que se meteram em casa, na rua ou em alguma festa, dizerem "eu não me importo com o que os outros pensam: a vida é minha e eu faço o que quero" como se fossem absolutos senhores de si. E, então, quando eu pergunto por que então eles brigaram, me respondem que a mãe o chamou de idiota, o cara na parada questionou a dignidade de sua irmã e sua mãe ou que aquele outro passou a mão na guria dele. Para quem "faz o que quer" e "não se importa com o que os outros pensam" é uma atitude um tanto quanto preocupada com a opinião alheia.

Psicoterapia também é um trabalho delicado. Pode ser óbvio para mim que se eles se importassem menos com o que os outros acham eles estariam sofrendo muito menos, mas para eles, o sofrimento é sinônimo de ter fama de bicha, frouxo ou qualquer coisa assim. Sei disso por que até não muito tempo atrás também eram estas as coisas que mais me assustavam. Também pode ser óbvio para mim que é muito engraçado alguém dar como justificativa para quebrar o nariz de alguém "eu tô pouco me lixando para o que os outros pensam. Além do mais, ele tava olhando torto pra mim", mas para eles, é perfeitamente normal e absolutamente sério. De que adiantaria simplesmente dizer essas coisas para quem não está preparado para ouví-las? Dizer as coisas mastigadas todo mundo faz, e não adianta nada, como aqueles programas para elevar a auto-estima das crianças bem comprovam. Estes adolescentes precisam passar por todo um processo de expansão da consciência, e perceberem por si próprios, como num estalo, o ridículo da situação. É esta expansão da consciência que todo modelo de psicoterapia busca causar em seus pacientes. Claro, muda-se o enfoque de acordo com o psicoterapeuta e sua linha teórica, mas o resultado acaba sendo muito parecido. O método socrático, usado principalmente nas terapias cognitivo-comportamentais, busca, através de perguntas, fazer com que a outra pessoa pense de formas não-convencionais sobre um assunto normal para ela, e o veja de outro ângulo, mais distante, menos sofrido e mais engraçado. Se este objetivo for atingido, pronto! Posso considerar meu trabalho como feito, por que, pode ser que meu paciente sofra novamente no futuro por causa da mesma coisa, mas será então capaz de perceber que aquilo ali é bastante engraçado se se prestar atenção, e parará de sofrer ali mesmo.

Não sei se esta é uma generalização correta, mas creio que todos os sofrimentos psicológicos decorrem disto que poderia se chamar de uma "ultradignificação de si próprio": nos cremos tão importantes para o universo que nos achamos superiores ao ridículo e ao sofrimento. Mas passamos vergonha e sofremos, e sofremos ainda mais por que achamos que não deveria ser assim. Somos, como dizem os nihilistas pós-modernos, insignificantes como poeira para o universo, ou animais com estratégias de sobrevivência que permitem construir foguetes como diria um biólogo, e poderíamos facilmente nos sentirmos mal por causa dessas afirmações. Mas e daí que somos? É indigno sermos o que somos? Nenhum outro animal se preocupa com isso. As lesmas são lesmas, mas nem por isso elas sofrem de depressão! Viver com um pouco menos "dignidade" e um pouco mais de humor certamente nos faria muito bem.

domingo, 19 de abril de 2009

Perguntinha

Certa vez, durante nossa viagem pela Patagônia, no dia 1º de janeiro de 2009, eu e Marcelo estavámos com alguns amigos brasileiros que conhecemos no camping, quando eles começaram a falar de carros. Não era aquela conversa de elevador, do tipo "viu o novo Celta?", mas uma entre pessoas profundamente apaixonadas por todas as coisas feitas de metal e providas de motor. O colóquio, que começara com um elogio ao jipe de um dos presentes, logo se tornou cheia de termos técnicos. É desnecessário dizer que, para eu e Marcelo, estudantes de Psicologia que viajavam sem qualquer veículo próprio, a conversa tornou-se incompreensível a partir do momento que começaram a discutir chassis e velas de motor.

Por que estou contando esta história aqui? Além dela ser engraçada por si própria, ela talvez não seja muito diferente do que faço aqui no blog. Foi muito prazeroso escrever meu último post, sobre Ciência e Psicologia, por tratar de um assunto do meu maior interesse e sintetizar o que andava pensando há um bom tempo, mas não posso dizer que a maioria dos leitores possa dizer que o prazer que sentem ao lê-lo é diretamente proporcional ao prazer que senti ao escrevê-lo, por vir carregado de tantos termos técnicos.

Por isso, resolvi fazer uma pequena pesquisa: você, que lê este blog, o que achou do meu último texto? Deixe um comentário a respeito.

sábado, 18 de abril de 2009

Ciência e Psicologia

Originalmente, quando instalei um contador no meu blog, pensava em usá-lo apenas para isto – contar quantos visitantes o Espadachim Cego recebia. E, de fato, o Bravenet Counter faz isso, como vocês bem podem atestar, mas ele também vem com alguns outros recursos que, talvez por irem um pouco além da mera quantificação, permitem inferências muito mais interessantes.

Destes recursos, o que eu considero mais rico é Visitor Analys (Análise de Visitantes), que permite ver de onde são os leitores das minhas bobagens e o que os trouxe até este blog. Como eu sou mão fechada, uso a versão gratuita do contador, que só disponibiliza as informações dos dez últimos visitantes. Ainda assim, posso atestar que, na maioria dos casos, as pessoas que vêm até o Espadachim Cego são interessadas em Ciências Humanas, especialmente Psicologia.

A Análise de Visitantes não me permite saber se estas pessoas são em sua maioria psicólogos, estudantes de Psicologia ou apenas leigos interessados levemente no assunto. Posso, porém, dar um conselho para todos os que pretendem fazer a graduação em Psicologia um dia ou que entraram este ano na faculdade: preparem-se para estudar uma disciplina cuja cientificidade é altamente contestada, apesar de sua relevância. Que quero dizer com isto? Quero dizer que, por mais que nosso campo de atuação seja amplo e nosso trabalho como psicólogos seja requisitado e importante para a sociedade, sempre haverá um grupo considerável de pessoas que questionará os fundamentos teóricos e a validade do que fazemos. Estes céticos encontram-se em contextos muito diferentes – são filósofos, cientistas da área das exatas (Física e Matemática), e mesmo cientistas sociais e psicólogos – mas que compartilham a dúvida (muitas vezes a certeza) a respeito de um projeto de ciência psicológica. A principal questão que eles levantam é: pode a Psicologia ser considerada uma ciência?

Outras perguntas surgem desta: tal questionamento é positivo, quero dizer, traz algum benefício para a Psicologia ou a sociedade? Pessoalmente, acredito que a resposta para esta questão é afirmativa. Primeiro, por que trabalhamos com um assunto realmente delicado, onde qualquer certeza dogmática a respeito de nossas capacidades e limitações seria potencialmente fatal, seja para nosso projeto científico quanto para as pessoas que atendemos, e um questionamento saudável a este respeito, seja ele incitado por nós próprios ou por outros campos de conhecimento, nos ajuda a mantermos a humildade e o foco. Segundo, a discussão sempre atual da cientificidade da Psicologia, mesmo que não traga nenhum outro benefício concreto, nos proporciona uma oportunidade impar de exercitar nossas capacidades cognitivas e conhecer outros pontos de vista, o que é sempre necessário (e bem vindo) para a criação de novas redes neurais e o fortalecimento de nosso intelecto.

A segunda questão é mais relevante: que argumentos são utilizados por aqueles que consideram que a Psicologia não pode ser considerada uma ciência? Não creio ser capaz de fazer uma lista exaustiva de argumentos, mas o principal (e que mais aparece em discussões) é que a Psicologia, mesmo passados mais de 100 anos desde sua fundação oficial e muitos progressos tecnológicos, ainda não atingiu o objetivo da ciência clássica: a descrição, previsão e controle dos fenômenos estudados – em outras palavras, dar respostas certas e garantidas a respeito de seu objeto de estudo. É inegável que, se comparada com ciências mais tradicionais, em especial a Física, a Psicologia não progrediu muito neste sentido, pois, apesar da maioria dos processos psicológicos estarem descritos em muitos livros de forma satisfatória, tanto nossa capacidade de previsão quanto de controle de comportamentos futuros é parco, mesmo em suas correntes mais experimentais. Como uma estudante de Filosofia deixou bem claro para mim em uma discussão há algum tempo atrás, isso se deve, principalmente, à subjetividade humana – pois cada ser humano é único e irrepetível, não havendo, portanto, parâmetros para compará-lo com outros e assim criar uma ciência do ser humano.

São argumentos fortes e contundentes, que aparentemente desmontam todo o projeto da Psicologia científica, colocando-a no mesmo nível de rigor que a astrologia e a sabedoria popular. Isso poderia desanimar qualquer interessado em Psicologia, e com razão. Entretanto, se refletirmos com cuidado a respeito das posições teóricas acima apresentadas, perceberemos que elas não passam de opiniões. Não há nenhuma razão empírica, nenhuma experiência bruta que confirme ou refute a viabilidade de uma ciência do comportamento humano, apenas as pessoas interessadas tomam partido de uma ou de outra possibilidade. Os argumentos que aqui apresentei são argumentos racionalistas. Para esta escola, cujas origens podem ser traçadas até Platão, a verdade do mundo só pode ser compreendida através de seu conceito perfeito. Ou seja, só o que é perfeito, advindo daquele plano das idéias de que Platão falava, é verdadeiro, ao passo que o que temos aqui e agora é apenas uma cópia mal-feita, na melhor das hipóteses, ou uma grandíssima perda de tempo, na pior.

Francamente, creio que tal atitude é prejudicial. Ao adotarmos um padrão epistemológico de verdade tão rígido e inalcançável, tudo o que conseguimos, na maioria das vezes, é desestimular qualquer esforço positivo na busca pela verdade, pois, afinal de contas, é impossível atingi-la e, assim, inútil. É uma forma patológica de ver a vida, e os milhares de homens e mulheres que desistem de encarar a vida por terem certeza de que errarão em algum momento e que isto será terrível só reforçam minha opinião.

Proponho uma forma diferente de encarar a ciência e a Psicologia. Não é uma forma nova ou original, pois foi proposta há muitos e muitos anos, pelo brilhante filósofo e psicólogo estadunidense William James: o pragmatismo. Nesta forma de pensar, qualquer idéia que nos ajude a lidar com a realidade de maneira efetiva é, pelo menos em parte, verdadeira, pelo menos no que tange a parte da realidade que afeta. Mesmo que este mundo seja uma ilusão, esta ilusão nos circunda e nos afeta, e não podemos simplesmente ignorá-la e apelar para conceitos mentais perfeitos, abstratos e distantes. Trabalha-se com um processo constante de descoberta e ampliação dos horizontes, pois se baseia na experiência, e não nos ideais, para fazer ciência. Na Antiguidade, era verdade que o mundo era um disco chato, pois era desta forma que os povos de então organizavam a informação que coletavam do universo, e tornavam-se capazes de navegar e desenhar rotas terrestres de comércio; na Idade Média, era verdade que o Sol girasse em torno da Terra redonda, pois com este modelo os navegantes e comerciantes ampliaram suas capacidades de orientação; hoje, a verdade é que a Terra gira em torno do Sol, e graças a essa informação somos mais capazes que nossos antepassados. Quem, destas três distintas épocas, está mais próximo da verdade em Astronomia? Obviamente, atualmente temos maiores conhecimentos sobre o funcionamento das galáxias, mas isto não teria sido possível se não fossem os astrônomos de eras passadas formularem hipóteses imperfeitas, porém melhores e mais verdadeiras que as anteriores. Da mesma forma, daqui a 100 ou 200 anos, se a humanidade continuar existindo de alguma forma, o conhecimento de que dispomos atualmente, seja sobre Astronomia, Medicina ou Psicologia parecerá irrisório, mas terá sido de crucial importância para as descobertas futuras.

Por isso, dentro do paradigma pragmático, é possível fazer da Psicologia uma ciência plena, pois é inegável que ela tem feito progressos, lentos mas seguros, na explicação dos comportamentos humanos. São as pessoas criaturas únicas e irrepetíveis? Sim, são, mas isto não quer dizer que cada um seja uma espécie em si mesma, pois todo homem e toda mulher, por mais diferentes que sejam entre si, compartilham da mesma natureza biológica – contando com estômago, pulmões, cérebro e demais órgãos – dos mesmos traços de personalidade – extroversão, socialização, neuroticismo, abertura à experiência e Realização – e buscando as mesmas coisas – justiça, beleza, bondade, perfeição. Estes pontos em comum são iguais em todas as pessoas de todas as culturas? Não, mas pelo o que se sabe até o momento, são iguais o suficiente para a criação de instrumentos de avaliação psicológica equivalentes, seja no Japão, Alemanha ou nas culturas esquimós do Canadá. De certa forma, somos tão semelhantes entre nós quanto são os cachorros ou os gatos entre si – as diferenças são muitas vezes gritantes, mas ninguém de bom senso diria que um Pastor Alemão e um São Bernardo são incomparáveis por serem tão diferentes. Se não fosse assim, o Homo sapiens nunca teria povoado todo o globo terrestre, pois cada família ou clã que se distanciasse tornar-se-ia uma espécie diferente, e a comunicação entre diferentes povos seria tão impraticável quanto é entre humanos e chimpanzés.

Por isso, acredito que a Psicologia não só pode tornar-se uma ciência como já é uma, pois está constantemente descobrindo coisas novas a respeito de nós mesmos. Contudo, os ideais de descrição, previsão e controle dos fenômenos, tão caros para os cientistas ortodoxos, precisam ser reformulados, ou encarados de outra forma. Um psicólogo não pode, por motivos práticos ou éticos, controlar outro ser humano da mesma forma que um químico controla reações entre substâncias, nem prever o comportamento de uma pessoa como um físico prevê o movimento de um corpo em movimento, pois precisa levar muitas variáveis em conta ao mesmo tempo, podendo desconsiderar várias por não conseguir computá-las. A Psicologia nunca será uma ciência como a Física ou a Química, que em seus campos de ação reinam supremas. Entretanto, isto não significa que devemos renunciar completamente ao status científico. Poderemos descrever fenômenos psíquicos de maneira incompleta, mas ainda conseguir prever quando um paciente caminha em direção à sua autodestruição, impedi-lo de prejudicar a si mesmo e guiá-lo rumo a uma vida melhor. Uso exemplos clínicos, por ser este meu campo de atuação e onde me situo melhor, mas o mesmo pode ser dito de muitos outros casos em muitos outros contextos onde a Psicologia se insere – cresceremos, de forma imperfeita, mas constante.

Referências
James, William (1943). A Filosofia de William James. São Paulo: Companhia Editora Nacional.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Notas sobre Psicologia Positiva

A Psicologia está mudando muito, e rápido. Quem quer que esteja interessado nos aspectos positivos da natureza humana encontrará uma vasta literatura, desde livros publicados até artigos indexados em sites como o Scielo ou o Portal de Periódicos da CAPES, cujo assunto principal é a Psicologia Positiva, o estudo das virtudes e forças de caráter dos seres humanos. Trinta anos atrás, isto seria na melhor das hipóteses um sonho distante.

Contudo, apesar disso, não significa que não fosse possível já naquela época encontrar alguma coisa a respeito deste assunto, pois autores como Erich Fromm, Carl Rogers e Abraham Maslow estavam no auge de suas carreiras, desbravando estas áreas que hoje vemos florescer. Gosto muito destes três autores que citei, mas o que mais me impressionou e cativa é o terceiro, o velho Maslow, que em suas obras deu vôos filosóficos ousados e inovadores. Na Psicologia acadêmica e nas faculdades de Administração, ele é mais conhecido por sua Teoria da Motivação Humana, frequentemente representada por uma pirâmide de necessidades. Contudo, se posso fazer isto, digo que sua maior contribuição para a ciência foram seus apontamentos sobre Auto-Atualização: a necessidade humana de transcender a si mesmo e crescer.

A Auto-Atualização, tal como muitos outros conceitos desenvolvidos nos anos 1960 pelos teóricos humanistas, passou por uma revitalização nos anos 1990 e 2000 e voltou a ser pesquisado pelos psicólogos positivos, mas com o nome de “Flourishing”, que poderia ser traduzido para português como “Florescer” ou “Desabrochar”. Um nome muito bem escolhido, diga-se de passagem.

Há uma semelhança em particular entre estas duas teorias que gostaria de ressaltar: a maneira como saúde e doença são encaradas por ambas. Maslow acreditava que a clássica divisão cartesiana entre o que é saudável e o que é patológico muito ineficiente, por depender demais em definições arbitrárias do que é bom e o que é ruim para uma pessoa, além de todo o histórico destas duas palavras. Para substituí-las, Maslow propôs o conceito de “Humanness”, um termo cunhado por ele próprio, que poderia ser entendido como “Nível de Humanidade”: quanto mais “humano” for alguém, mais feliz, desenvolvido e, enfim, saudável será uma pessoa, e quanto menos “humano”, mais infeliz, atrofiado e patológico. Ele defendia que a principal vantagem deste modelo era a possibilidade da criação de escalas psicológicas, capazes de medir objetivamente quão “humano” uma pessoa é.

Isto foi feito de fato pela moderna Psicologia Positiva, com o “Continuum de Saúde Mental”, cujos extremos são o Desabrochar (Saúde Mental) e o “Languish” – Fenecer, Decair (Psicopatologia). Esta escala leva em conta dois grandes fatores: a presença de aspectos positivos na vida de uma pessoa, tal como afeto positivo, rede social efetiva, sentimento de autoeficácia e sentido na vida, e ausência de aspectos negativos. Estes dois fatores, ao contrário do que poderia se imaginar, são completamente diferentes e não são extremos de um mesmo continuum. Claro, eles se correlacionam de forma negativa, mas é possível estar feliz e triste ao mesmo tempo.

Segundo uma pesquisa realizada recentemente, cujos resultados foram publicados no artigo “The Mental Health Continuum - From Languishing to Flourishing”, cerca de 17% da população dos EUA enquadra-se nos critérios de Florescimento, 56% como moderadamente saudáveis e não apresentando doença mental, e 18% como fenecendo (sendo que cerca de 4% apresentam comorbidade de Depressão Maior). Em outras palavras, quase 20% da população dos EUA está em franco processo de “tornar-se pessoa”, para citar o livro mais famoso de Carl Rogers, enquanto 17% segue o caminho contrário, de encolhimento existencial, e mais da metade da população fica no meio-termo: não está doente, mas está só um pouco saudável. Indiferentemente se estes são números positivos ou negativos para a nação estadunidense, fica a pergunta: quem são as pessoas que se enquadram nestes 20%?

Maslow fazia uma diferenciação entre dois tipos de pessoas auto-atualizantes: os comuns e os transcendentes. A diferença entre estes dois tipos reside na quantidade e na qualidade das experiências culminantes, sentimentos de plenitude e estados de consciência mais elevados e êxtases místicos, por eles vivenciadas. Os primeiros são pessoas boas, que cultivam boas relações e progridem em termos humanos, mas não vão muito além disso. Os segundos, por outro lado, muitas vezes foram considerados como sobre-humanos, seres tão desenvolvidos que parecem pertencer a outra espécie que não a Homo sapiens. Em outras palavras, são os santos, os heróis e os gênios; os Gandhis, os Lincolns e Einsteins. Como eles se tornam o que são, e como diferenciá-los dos 20%? Maslow acreditava que só 3% de toda a população do mundo atingia este patamar de Auto-Atualização. Identificá-los e estudá-los talvez não seja tarefa da Psicologia Positiva, mas de uma Teologia Empírica, tal como descrita por Aldous Huxley no prefácio de “A Filosofia Perene” – a Ciência da Iluminação Humana.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Histórias que entretêm - Passeio Etílico em Uruguaiana (Parte II)

O problema com a tomada de decisões é que, uma vez tomada uma decisão, ela precisa ser posta em prática para que se torne efetiva. Por mais idiota que esta afirmação possa parecer, nem sempre é possível que isto aconteça. Veja por exemplo minha decisão de sair da rodoviária e ir até a estrada pedir carona para voltar para Porto Alegre: antes de eu começar a fazer isso parecia muito mais fácil. O álcool e a(s) noite(s) mal dormida(s) me deixaram fisicamente mais destruído do que podia imaginar, e caminhar mais que quinhentos metros foi um verdadeiro calvário. Sem contar o problema de saber onde ficava a estrada! Nunca fui muito bom em orientação, tendo me perdido em situações muito improváveis, e não era por que eu precisava de um milagre que ele iria acontecer. Aposto que aquela mulher que escreveu "O Segredo" também nunca esteve em Uruguaia sem um pila no bolso.

Outros problemas tornavam-se óbvios para mim enquanto me arrastava em qualquer direção em que acreditasse ficar a rodovia para a Capital: aparência e odor. Aparentemente, quando se farreia alucinadamente ao longo de 500 ou 600km por três dias a última coisa que passa em sua cabeça é higiene. Isso, pelo menos até você deixar o estado de entorpecimento ensandecido e perceber que, bem, você está todo vomitado, mijado e fedendo e que não gosta disso. Gostaria de pensar em como fiquei neste estado, mas meu superego, este grande filho da puta que tirou uma folga de três dias, resolveu fazer cerão agora que estou consciente, e recalca todas as informações relativas aos meus dias curtindo a vida adoidado. E, de mais a mais, dificilmente elas me ajudariam a conseguir carona.

Enquanto caminhava, contudo, fragmentos de capacidade racional retornavam à minha mente, e percebi que não ligar para meus pais foi a pior idéia que podia ter tido se quisesse evitar algum ataque cardíaco. Eu estava sumido por três dias inteiros. Não dá pra chegar em casa todo sujo e dizer que eu fui comprar cigarro e caí numa poça de lama. Quero dizer, até poderia fazer isso, mas duvido que fosse colar. Mas pensar nisso faz minha cabeça doer, então vou me concentrar no que pode me ajudar a voltar para casa, para daí então pensar em como explicar a situação.

Caminhando pela cidade, encontro uma multidão parada, olhando alguma coisa. Por uma mistura de curiosidade mórbida e instinto de rebanho, parei para olhar o que era tão interessante. Não era nada tão chamativo quanto um show itinerante ou uma pilha de cadáveres, mas, credo, era bizarro: era um fusca pendurado em uma árvore, e uma força tarefa de brigadianos e bombeiros estava tentando trazê-lo para baixo (sem muito êxito). Por um momento distraído de meus próprios problemas, passo a formular hipóteses de como isto teria acontecido e quem estaria por trás do volante naquele momento. "Devia ser alguém mais louco que o Bozo pra fazer isso" penso eu. Daí percebo que EU estive mais louco que o Bozo nos últimos três dias e que tinha acordado na rodoviária de Uruguaiana sem saber como tinha chegado ali. Uma pichação no fusca dizendo "pinheirinhos de alegria" e a placa de Porto Alegre só vieram corroborar a minha hipótese.

Para esclarecer o acontecido, pergunto para o cidadão ao meu lado o que se passa:

- Como é que esse fusca foi parar ali em cima?
- Bah, ninguém sabe. Ontem de noite eu ouvi um baita barulho vindo daqui. Vim ver e o fuca tava aí.
- Mas... o senhor não viu ninguém saíndo do carro depois dele ter batido?
- Não! Juro que não! Eu acho que esse carro é mal-assombrado! Mas, se alguém de carne e osso dirigiu ele, ou é muito bom motorista, ou deveria ser proibido de sentar até no banco do carona!
- É... faz sentido. Sabe me dizer pra que lado fica a estrada que vai pra Porto Alegre?
- Pra lá. Por que? E como tu ficou tão sujo?
- Eu caí... numa poça de lama... muito suja. Obrigado pela informação.

Saí daquele lugar o mais rápido possível, antes que o cidadão pudesse fazer mais perguntas que eu não gostaria (ou poderia) responder. Talvez fosse melhor não saber muita coisa naquela hora sobre o Fusca Voador e tentar ir pegar carona de uma vez. De novo, começo a me arrastar em qualquer direção, com a diferença que desta vez eu teoricamente sei para onde estou indo. Na rua, as outras pessoas olham para mim como se fosse uma criatura que escapou de algum circo. De certa forma, era mais ou menos isso que eu era - um fugitivo de uma esquete do Monty Python's Flying Circus.

Já na estrada, começo a pedir carona, levantando meu polegar toda vez que um carro potencialmente amigável passava por mim. Pedir carona, meus amigos, é fácil. O problema é conseguir uma, e a dificuldade aumenta exponencialmente quando se está sujo e fedido como eu estava. Assim sendo, possivelmente eu não deveria temer tanto que ninguém parasse para me levar consigo, mas sim ter medo de quem fosse insano o suficiente para me dar carona. Algumas horas mais tarde, quando o sol já estava quase se pondo no horizonte, e eu me resignava a ter que dormir no mato ao lado do acostamento, pára um caminhão. Fico um tanto quanto desconfiado, levando em conta todos os outros carros que pararam por mim mas arrancaram logo que sentiram o odor que eu exalava, mas o motorista sinaliza com a mão e me chama para chegar mais perto. O vento estava soprando na direção dele, fazendo com que fosse impossível ele não sentir minha catinga. Aproximo-me e conheço meu benfeitor: um típico gaudério, meio europeu e meio índio, todo pilchado e com um bigode de dar inveja até no Olívio. Coisa curiosa, ele também usava um tapa-olho. Em outro contexto, eu o julgaria como sendo um cidadão um tanto quanto lunático, mas ali, sozinho, numa estrada desconhecida e já anoitecendo, ele me parecia um sujeito muito simpático. Entabulei uma conversa, e, apesar de ser difícil entender alguém que não tira o cigarro da boca para falar, conseguimos nos comunicar:

- Oi, boa noite! Para onde o senhor vai?
- Tô indo para Florianópolis, entregar a carga aqui atrás!
- O senhor passa por Porto Alegre?
- Sim, eu tenho que falar com um amigo meu lá. Sobe aí que eu te levo!
- Muito obrigado, senhor!

Subo feliz, pensando que todos os meus problemas tinham acabado e que dentro em breve estaria limpo, bem alimentado e em casa. Deveria ter desconfiado do fato dele não ter ficado nem ao menos impressionado com meu cheiro, mas na hora eu simplesmente agradeci aos céus por isto.

Continua em outro post...

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Histórias que entretêm - Passeio Etílico em Uruguaiana

O mundo é realmente um lugar estranho. Em um momento, estou bebendo néctar e cantando com os querubins e no próximo, quando abro os olhos, descubro que estou estatelado no chão em algum lugar muito, muito sujo. Fecho novamente as pálpebras, tentando voltar ao estado de graça anterior, mas tudo que consigo é sentir mais agudamente a dor que sinto em minhas costas e minha cabeça.

Desisto de voltar a sonhar, e olho o lugar em meu redor. Certamente o concreto sob meu corpo não era minha cama, e aquele lugar não era meu quarto. Apesar de não lembrar nada da noite anterior ou de como fui parar ali, utilizo meus conhecimentos prévios e percebo que estou em uma rodoviária - a sujeira e os ônibus deixavam isso bem claro (a sujeira mais do que tudo). Tendo percebido isto, fica claro por que sentia tamanha dor nas costas: dormi em um daqueles bancos desconfortáveis que a administração coloca para os passageiros esperarem sentados por suas conduções atrasadas, e caí no chão durante meu sono de beleza. Ligando os pontos que eu tinha passado uma noite inconsciente em uma rodoviária e que não sentira nada ao deslizar delicadamente de um banco para chão segui o procedimento lógico mais adequado: verificar se eu não tinha sido estuprado e/ou assaltado. Dar-me conta de que meu orifício retal não estava dolorido ou dilatado foi a melhor notícia que minhas mãos poderiam ter me dado aquele dia. O mesmo não pode ser dito sobre minhas posses.

Ao apalpar e revistar meus bolsos em busca de celular, chaves e carteira, descubro que apesar de contar com todos estes itens fisicamente, eles me eram absolutamente inúteis naquele momento: o celular estava com a bateria descarregada, não tinha a menor idéia em qual direção ficava o querido lar e só tinha 4 reais na carteira. Como fui me meter em tal situação?

As memórias começaram a fluir de volta para minha consciência, e a última coisa que lembrei antes de estar no chão de uma rodoviária cutucando minha bunda para conferir se tinha sido ou não currado foi de ter ido à uma pequena confraternização na casa de uns colegas. Meu amigo Borat, com aquele seu jeito de quem fora criado tanto na Capital quanto no interior, chegou em mim com uma garrafa de Johnny Walker e disse "hoje tu vai te entorpecer feito homem!", ao mesmo tempo em que me servia uma generosa dose. Aceitei o desafio e tomei tudo em um gole só e peço mais, como aquele moleque da propaganda do Tang, com a diferença que Borat não disse "ele não merece" e deu o whisky para um macaco beber. Quero dizer, eu acho que não, pois a partir desse ponto do "filme das lembranças" só consigo ver estática. Apesar dessa grave falta, tudo ficou mais claro. Sempre fui um tanto quanto exagerado, e sabia que, se algum dia eu tomasse um porre, ele mereceria uma menção honrosa nos livros de história.

Tendo esclarecido pelo menos parte do mistério de como fui parar ali, restava saber onde era "ali", pois nada naquela rodoviária me era familiar. Depois de alguns minutos elaborando hipóteses sobre em qual cidade da grande Porto Alegre eu deveria estar, levantei-me com dificuldade, e fui procurar alguém que pudesse esclarecer esta questão geográfica. Minhas costas doiam terrivelmente, e tive a impressão de que seria mais prazeroso que minha cabeça explodisse quando comecei a movimentá-la. Encontrar um ser humano capaz de explicar onde estávamos não foi tão difícil, mas a comunicação, nem tanto, pois, além de me deixar rouco, a bebida (e qualquer outra coisa que eu tivesse ingerido) me deixara falando como um disfásico e ouvindo com a mesma precisão que aquela velha surda de "A Praça é Nossa". Depois de 5 minutos de incompreensão mútua, consegui elaborar uma frase clara e coerente e entender algo mais do que "bleh":

- Moço, por favor, que rodoviária é essa?
- Como é que é?
- Eu quero dizer, em que cidade nós estamos? É Novo Hamburgo, Canoas...?
- Guri, tu tá bem? Isso aqui é a rodoviária de Uruguaiana, bem longe da Capital. Como que tu não sabia disso?
- Isso é outra coisa que eu também não sei.

Acho que fui um tanto quanto grosseiro com este gentil senhor que tão bem respondeu minha pergunta, pois simplesmente me virei e saí caminhando em qualquer direção. Creio que ele entendeu e não me levou a mal, afinal de contas, se havia alguém naquele local que poderia dizer que estava fodido na vida, era eu (e algum outro bêbado que foi parar ali por engano).

Olhei o relógio que pendia da parede de algum boteco vagabundo. Passava do meio-dia, mas eu não tinha o menor apetite, e só pensava em como diabos voltar para casa. Aquele seria um bom momento para começar a fumar, e ficar fazendo pose de Sartre enquanto ponderava sobre minha miserável existência, mas o maço mais barato daquele pulgueiro custava 5 reais. Fodam-se os existencialistas franceses, eles nunca ficaram sem dinheiro em uma rodoviária no fim do mundo! Além disso, fumar não me ajudaria a pensar melhor sobre qual curso de ação tomar.

Entrei, por fim, no meu modo sobrevivente de trabalhar com escassos recursos, comprei um cartão telefônico e dirigi-me ao orelhão mais próximo. Não sabia ainda com quem falar, mas sabia de uma coisa: teria que ser rápido, por que com aqueles 20 créditos não ia dar para discutir fenomenologia e teoria crítica. Ligar para meus pais estava fora de questão: claro, eles viriam até Uruguaiana para me buscar, mas isso seria feito provavelmente com uma ambulância, pois certamente eles teriam um treco. Restavam os amigos ainda. Gosto de fantasiar que todos os meus amigos viriam ao meu resgate se os telefonasse pedindo desesperadamente por isso, mas mesmo que isso fosse verdade, teria que me contentar com os amigos cujo telefone eu sabia de cor. E essa última variável limitava minhas chances de resgate consideravelmente.

Por algum tipo de milagre, consegui lembrar do telefone do Borat. Ele era o amigo mais indicado para conversar naquele contexto, pois ele com certeza elucidaria um pouco mais o mistério que cercava o meu passeio acidental pela fronteira:

- Alô Borat, Andarilho, tudo bem?
- SEU ANIMAL, FAZEM TRÊS DIAS QUE A GENTE TE PROCURA E NADA! POR ONDE TU ANDA?
- Ahn? Três dias? Eu tô na rodoviária de Uruguaiana, e qualquer informação sobre como eu vim parar aqui poderia me ajudar a voltar.
- COMO É QUE EU VOU SABER COMO TU FOI PARAR AÍ? TU TOMOU AQUELE WHISKY, FICOU MAIS LOUCO QUE O BOZO E SUMIU CORRENDO LÁ DA FESTA!
- Espera aí, ninguém viu o que eu fiz?
- CLARO QUE NÃO! OU TU ACHA QUE A GENTE IA DEIXAR TU FAZER UMA MERDA DESSE TAMANHO SE TIVESSE JUNTO?
- Quer que eu responda sinceramente esta pergunta?
- ...
- Ótimo, nem eu. Então, vamos ao que interessa: preciso que...

Não pude completar a frase por que os créditos do meu cartão acabaram subitamente. Juro que quando eu era criança eles duravam mais. Malditas companhias telefônicas.

A coisa só piorava para meu lado: continuava fodido em uma rodoviária na fronteira com a Argentina, mas agora sem um puto na carteira para comprar cartão telefônico. Murphy estava me atacando com todas as forças, e se não voltasse logo para casa, talvez eu precisasse vender meu corpo pelo resto de meus dias, por que Murphy é um grande sacana. Definitivamente, provou ser uma má idéia ligar para o Borat ao invés de meus pais, pois, tendo treco ou não, eles me buscariam, com a única condição de poderem dizer que foram salvar minha pele em Uruguaiana em discussões sobre responsabilidade e maturidade sempre que estivessem sem argumentos. O destino e meu orgulho salvaram-me de tamanha humilhação, mas deixaram-me por conta própria. Alô, Deus, posso devolver por correio o meu orgulho? Ele só me dá trabalho desnecessário!
Enfim, hora de considerar as opções disponíveis, ou eu nunca sairia dali. Telefonar já não era mais possível, e comprar uma passagem direto para Porto Alegre, ou qualquer outra cidade, menos ainda. Restava a opção de pedir ajuda às autoridades ou pedir carona na beira da estrada. Como eu não queria apanhar de brigadiano por mendigagem, resolvi ir direto até a estrada que levava à Porto Alegre e balançar meu tico polegar no ar.

Continua em outro post...

Músicas para cantar no chuveiro

Como ando sem muita inspiração (ou tempo) para escrever, deixo aqui mais um clipe, da música "Holding Out for a hero" e com cenas do Shrek. Ficou bem bacana.