sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Utopias (3)

Mais uma utopia a se comentar por aqui. Li, com muito esforço, "Horizonte Perdido", de James Hilton, que descreve o mítico monastério de Shangrí-La. Digo que foi difícil por que peguei uma cópia que, de tão velha, já se esfarelava e atiçava minhas alergias. Quanto à leitura em si, foi bastante agradável.

Sendo mais específico a respeito da história, ela é contada de uma maneira pouco costumeira. Não é um relato em primeira pessoa como "Walden II", onde o narrador visita a comunidade e descreve seus costumes, mas um relato de segunda mão. O narrador de "Horizonte Perdido" reencontra um velho amigo de escola, o escritor Rutherford, que lhe conta algumas coisas estranhas a respeito de um conhecido em comum, Hugh Conway. Por uma coincidência, os dois se encontram em uma pequena cidade chinesa e viajam juntos em um transatlântico, onde Conway conta, em uma noite, todos os fantásticos acontecimentos que o levaram de Baskal, na Índia, a Karakal, o Vale da Lua Azul escondido entre as impenetráveis montanhas da cordilheira de Kuen Lun (que, para minha surpresa, existem de verdade), que Rutherford prontamente transforma em um relato escrito e o entrega para o narrador.

Não vou estragar a história e contar os detalhes - se quiserem sabê-los, façam como eu e peguem uma rinite alérgica o livro e leiam - apenas a parte "sociológica", por assim dizer.

Como já deve ter dado para entender, Karakal era uma comunidade quase inacessível, pois ficava escondida entre altas montanhas, em uma região árida e desconhecida. Porém, por algum feliz acaso, ela se encontrava em um vale que, por motivos vários, era muito fértil e agradável de se viver, aos pés de uma magnífica montanha branca que emanava uma luz azul em noites de lua cheia. E esta confluência de fatores permitiu que seus aldeões, na maioria chineses e tibetanos, desenvolvessem uma cultura própria, sem maiores intromissões do resto da humanidade. Ainda assim, estas intromissões ocorriam. No início do século XVIII, um missionário cristão de Luxemburgo chamado Perrault chega em Karakal à beira da morte, e depois de se recuperar, põe-se a trabalhar na construção do monastério cristão de Shangri-Lá. Porém, o clima de Karakal não deu a seus moradores apenas a chance de criarem uma cultura pura, como também deu outro presente: longevidade. Os tibetanos e chineses criados naquele local não se tornavam especialmente mais longêvos em Karakal por já estarem acostumados desde a infância à sua atmosfera, mas estrangeiros que ali viessem a estabelecer residência poderiam atingir idades bastante avançadas. Quando a construção de Shangri-Lá terminou, Perrault contava 109 anos e estava bastante ativo. E ele prolongou ainda mais sua vida, através de exercícios de Ioga, alimentação controlada e sabe-se lá mais o quê.

Com o tempo, depois da construção do monastério, Perrault passou a estabelecer algumas políticas de contato com o mundo exterior, visando o bem de sua civilização, e também de engenharia cultural. Uma comunidade um pouco maior, como Porto Alegre, pode abrigar ondas relativamente grandes de imigrantes sem que sua cultura seja grandemente influenciada ou seus recursos todos utilizados, mas o mesmo não poderia ser dito de Karakal: se muitas pessoas aparecessem ao mesmo tempo para morar em Karakal, ela se autodestruiria por motivos econômicos. Ainda assim, para garantir a continuidade da comunidade e evitar os males das relações incestuosas, estrangeiros devem ser trazidos de fora de tempos em tempos. E, deste modo, foi se formando um pequeno grupo de europeus, que acabavam ficando por Lua Azul e tornando-se monges de Shangri-Lá e aprendendo os segredos da vida longa.

A cultura de Karakal é essencialmente chinesa e tibetana. Shangri-Lá, que foi concebida originalmente como um mosteiro cristão, ao longo do tempo tornou-se muito budista, por assim dizer. Esta religião, apesar de ser a dominante, não é a religião oficial do estado, e há liberdade de culto, com templos de outros credos no Vale, como taoísta. A cultura européia também deixou sua marca através de todos os imigrantes que de lá vieram, mas sua influência é mais sentida no monastério e em sua classe monástica do que na comunidade leiga. O mosteiro, apesar de ter sido construído no começo do século XVIII, dispõe de água encanada, uma vasta e ampla biblioteca de clássicos europeus e orientais e instrumentos musicais - como um piano de cauda. Karakal foi abençoada com um abundante suprimento de ouro, que é usado como moeda para os comerciantes dispostos a ir até lá para fazer negócio e trazer essas comodidades. No Vale da Lua Azul abaixo de Shangri-Lá, reina a paz, pois todos na vila seguem o princípio de ser moderado em tudo, inclusive na moderação: beber um pouco de álcool, fazer um pouco de sexo, ouvir um pouco de música, governar um pouco. Roubos não acontecem por que todos possuem o que necessitam, e crimes passionais são inexistentes por que todos possuem desejos também moderados. Os monges de Shangri-Lá são o principal exemplo desta filosofia de vida, passando seus dias sem pressa, apreciando as coisas com moderação ou "produzindo sabedoria" (meditando, imagino eu).

A utopia descrita em "Horizonte Perdida" é linda: há abundância de alimentos, seus habitantes vivem em harmonia em um paraíso natural e com uma cultura rica e florescente. Porém, há algo nela que rejeito, como se ela fosse falsa, ou pior, morta por dentro. William James certa feita visitou uma cidade universitária "experimental", onde tudo funcionava da maneira mais perfeita - nas escolas fundamentais as crianças aprendiam alegremente, nas faculdades os estudantes pensavam com ampla liberdade, festas aconteciam frequentemente e não havia menor sinal de miséria ou desigualdade social nas ruas. James obviamente achou tudo isto maravilhoso, mas logo que saiu de lá pensou "ainda bem que saí daquela pasmaceira pasteurizada! Precisava voltar para um mundo sujo e sangrento". Bem, tenho bastante certeza de que, apesar desta não ser a citação exata (que li em "A Filosofia de William James"), ter passado a sua mensagem. Ao longo de todo o livro, o autor consistentemente dá a entender que Karakal é um lugar de paz e tranquilidade, perfeito para Conway, de temperamento contemplativo. Porém, apesar das reiteradas afirmações de quão maravilhoso é este vale, não consigo sentir-me atraído por ele, por ser mais parecido com uma cemitério cheio de zumbis do que o berço de uma nascente civilização, e foi-me impossível não simpatizar com Mallinson, personagem que, apesar de ser irritante por causa de seu desejo de sair de Shangri-Lá o quanto antes, é o único que parece estar realmente vivo! Toda paixão de viver em Karakal é substituída por uma longa espera preguiçosa pela morte, sem objetivo ou sentido maiores. Talvez apenas eu seja incapaz de viver em tal lugar assim, por causa de meu temperamento, mas não acho que nenhum ser humano verdadeiramente saudável poderia considerar Karakal algo mais do que um local para passar as férias.

Próximas utopias: A Ilha, de Aldous Huxley e A República, de Platão.