domingo, 31 de outubro de 2010

O Rootz e o Épico

É fato conhecido que, com a convivência, amigos íntimos acabam às vezes desenvolvendo formas próprias e peculiares de comunicação: olhares, gestos, palavras que, embora não digam nada para as outras pessoas, são carregadas de significados para aqueles que as usam. Entre eu e meus amigos, existe uma filosofia de vida, uma ética, que pretendo explicar aqui, apresentando e discutindo o significado de duas palavras que, embora sejam de uso corrente em Porto Alegre, ganharam um peso diferente para nós: Rootz e Épico.

Originalmente, a palavra "roots" significava "raiz" em inglês. Ela foi introduzida no português (pelo menos aqui em Porto Alegre, cabe lembrar) por fãs de Reggae, para descreverem músicas e coisas verdadeiramente "regueiras", de raiz, o mesmo que "true" representa para os fãs de Heavy Metal. Com o tempo, contudo, "roots" virou "rootz" (diferença meramente estética, por que a pronúncia é a mesma), e passou a significar muito mais do que apenas aquilo que é relacionado com o reggae. Agora, quando alguém diz que algo é rootz, ela quer dizer que aquilo merece respeito e admiração, por ser algo fora do normal. Por exemplo, quando alguém conta que caminhou do Centro até a Restinga para não pagar passagem de ônibus, outra pessoa, espantada, pode dizer apenas "rootz". Para eu e meus amigos, porém, esta palavra ganhou uma dimensão nova: quando queremos dizer que algo é rootz, queremos dizer que, além de respeitável, algo é digno de ser feito, quando não necessário. Usando o mesmo exemplo de antes, certamente consideraríamos o fato de alguém ter ido à pé até a Restinga como rootz não só por que é um longo caminho, como também por que a pessoa se exercitou até o seu limite, e ainda poupou R$2,45 em passagem. Mais do que isso, é rootz por que envolve superação de si mesmo.

Contudo, nada impede que algo rootz seja completamente inútil, quando não prejudicial. Eu posso emitir um série de comportamentos extremamente cansativos, que me colocam em situações complicadas ou de risco, e que mesmo assim não beneficiam ninguém, ou apenas a mim mesmo de maneira superficial. Esta categoria de rootz merece respeito, por ser algo difícil de se fazer. Ainda assim, receamos dar-lhe este título, pois sentimos que lhe falta algo. Eis então que entra o conceito de "épico". Normalmente, quando uma pessoa normal, fora do nosso círculo de amizades, fala que algo é épico, quer dizer que algo é muito grande ("meu pênis tem proporções épicas"), ou é relativo a um gênero literário ("os livros de J.R.R. Tolkien marcaram a literatura épica"). Na nossa concepção de "épico", estas definições não são excluídas ou deixadas de lado, mas são como que derretidos e incorporados a uma outra definição, mais abrangente. Pessoalmente, utilizei esta palavra muito poucas vezes de maneira concreta. Contudo, é ela que norteia toda a nossa ética de ação direta no mundo.

Quando me disseram que a reitoria da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre tinha sido ocupada, a primeira coisa que exclamei foi "Épico!" Por que esta ocupação foi épica? Não poderia ter considerado ela apenas rootz? Bem, certamente a ocupação foi rootz, por que ela envolveu acampar e dormir dentro de uma instituição de ensino superior que normalmente não se presta à dormitório, bater de frente com a reitoria e ter que mobilizar um corpo estudantil antes acostumado à apatia e à complacência. Isso É rootz, mas também muito mais. Ser épico, pelo menos da maneira como eu encaro as coisas, é agir de maneira rootz, isto é, enfrentar desafios cada vez maiores e mais complexos, sacrificar a própria vontade egoísta e correr riscos em nome de uma causa comum, pelo coletivo. Necessariamente, ser e fazer algo épico envolve a transformação do mundo a nossa volta, tornando-o mais belo, mais justo e mais verdadeiro. No fim das contas, ser épico é escrever uma nova história, tão grandiosa quanto "O Senhor dos Anéis" ou "Os Varões Assinalados", se não ainda maior, por que acontece aqui e agora, diante de nossos olhos, transformando um valor potencial em um valor vivo e real. Carregamos hoje a tocha que nos foi passada por aqueles que no passado foram considerados heróis, revolucionários e guerreiros, e continuamos sua obra da melhor maneira que podemos. Em suma, ser épico é ser rootz em nome do Bem Maior.

Cada vez mais, eu e meus amigos temos transcendido a esfera individualista da rooteria, e evoluído para seus níveis épicos e coletivos, não apenas em palavras ou sonhos, mas em atos concretos, como tudo que é realmente épico deve ser. Construímos uma oca no outrora desocupado e inútil pátio do Instituto de Psicologia, fomos para o meio do mato coletar material de construção, ocupamos reitorias, semeamos sementes e muitas outras coisas dignas de respeito. Porém, o que realmente importa é que estamos construindo um mundo melhor, e que, não importa o que acontecerá com nossos feitos depois que partirmos, nós lutamos como homens e mulheres dignos e dignas de respeito e admiração. Isto é ser épico. Isto é a vida que vale a pena ser vivida.

Utopias (6)

Aventuro-me agora em novos territórios. Ao invés de resenhar um livro sobre uma utopia ficcional, falarei sobre um livro que conta a história de um homem que dedicou sua vida a construir uma: Giuseppe Garibaldi. O livro a que me refiro são suas Memórias, organizadas por Alexandre Dumas, com base em relatos e diários escritos pelo guerrilheiro do século XIX. Por que escrevo sobre Garibaldi nesta série? Bem, preciso admitir que tenho um fraco por heróis de guerra. Talvez isto se deva ao fato de eu ter nascido e crescido em uma sociedade sem guerras, ter aprendido a respeito delas através de meios distantes como livros ou a TV e nunca ter presenciado uma morte. Acho justo que eu seja considerado ingênuo neste assunto por todos estes motivos. Ainda assim, não consigo deixar de admirar pessoas como Garibaldi, que passou quase a vida inteira lutando em nome de um ideal - a liberdade das nações. Por um ideal tão abstrato e distante, ele passou por inúmeras dificuldades e privações: fome, cansaço, perseguição inimiga, marchas forçadas e risco de morte. Terá tudo isso valido à pena todo esse sacrifício?

Penso não só na vida de Garibaldi, mas também nas vidas dos que lutam hoje para construir um mundo melhor. Não lutamos mais guerras, não pegamos mais em armas, mas continuamos a enfrentar muitos desafios, e a fazer muitos sacrifícios, que, apesar de não serem mais os mesmos que Garibaldi encarou, ainda são capazes de nos fazer questionar se não seria melhor abandonar toda esta confusão, nos preocuparmos apenas com a nossa sobrevivência e o nosso bem-estar, e deixar as utopias para os livros e para os idiotas. Lendo suas Memórias, fico imaginando se, em nenhum momento, Garibaldi fraquejou, e pensou em mandar tudo às favas: "dane-se a Itália! Danem-se as repúblicas! Eu vou montar uma rede de supermercados e lavar minhas costas com dinheiro!"

Não sei se ele chegou a pensar algo parecido com isto. Por ele ser humano e, portanto, frágil e imperfeito, imagino que em algum momento ele deva ter cogitado a possibilidade de levar uma vida pacata, levemente egoísta e reacionária. Porém, mesmo que ele tenha pensado, não levou estes planos adiante. Bem pelo contrário por que, até onde sabemos, ele continuou lutando pelo ideal das nações e pela liberdade de uma Itália unida e democrática até o final de sua vida. Pouco do que ele aspirava se concretizou, e não da maneira como ele desejava. Seria isso sinal de que seria melhor ele ter cuidado da própria vida? E nós, que nos metemos a mudar o mundo, não deveríamos aprender com este fracasso e parar de buscar algo inalcançável?

Na noite que passei na Reitoria da UFCSPA, tive uma conversa bastante produtiva com o Marcelo. Foi uma daquelas conversas que, embora se esqueça quase tudo o que foi dito, nunca se esquece o impacto que causou em nossos corações. Lembro, porém, de pelo menos uma coisa que discutimos. De fato, poucas revoluções foram bem sucedidas, e muito poucas mantiveram-se fiéis aos seus ideais. Contudo, nenhuma delas foi em vão, por que trouxe ao mundo uma nova maneira de ver e viver que mudou todo para sempre. A mudança efetiva pode ter sido pequena em extensão, mas inegável em sua existência. O Rei voltou a reinar na França depois da Revolução de 1789; Stalin tornou-se um ditador ainda mais cruel que os tsares; A República Rio-Grandense perdeu a guerra contra o Império e voltou a ser uma província, depois de 10 anos de lutas sangrentas. Agora, por causa disso, o Antigo Regime voltou a vigorar, a idéia do Comunismo perdeu o valor e o sonho de uma sociedade justa e democrática morreu? Não. As coisas mudaram, e para sempre. Talvez não da maneira como gostaríamos, mas mudaram. E é por isso que lutar sempre vale à pena.

Garibaldi não lutou em vão, e nem nós lutamos hoje. Construímos a sociedade do futuro e, mesmo que aos trancos e barrancos, evoluímos. Talvez seja por isso que admire Garibaldi: de certa forma, continuo hoje o trabalho que ele começou tanto tempo atrás, e que na verdade, era também a continuação de um trabalho ainda mais antigo que o dele. Vejo-me como parte de uma antiga e nobre linhagem de guerreiros, poetas e amantes que, malgrado seus insucessos, nunca perde a esperança de construir o Reino de Deus na Terra. Não viverei para ver tal proeza, mas resta-me o consolo de saber que, se isto um dia vier a acontecer, eu não fiquei de braços cruzados, e ajudei, da melhor maneira que pude, a tornar isto realidade.

Ainda na onda de falar sobre utopias que aconteceram de verdade, no próximo texto comentarei o livro "Utopias Piratas", escrito pelo cientista político e anarquista Peter Lamborn Wilson, mais conhecido por seu pseudônimo Hakim Bey. Vou ler o livro este final de semana, ou, no mais tardar, antes que alguém o reserve na biblioteca (por que eu não conheço ninguém que não leria algo sobre utopias e piratas). Depois desse livro, pretendo resenhar "Zona Autônoma Temporária", do mesmo autor, onde ele fala sobre algo parecido. Esse, porém, eu ainda preciso bater em alguém da biblioteca pra reservar e ler, então pode demorar um pouco.

Utopias (5)

Como alguns dos meus leitores devem se lembrar, tempos atrás, comecei a escrever uma série de posts sobre utopias, isto é, sociedades humanas que funcionam de maneira perfeita e auto-sustentável. Como tais sociedades não existem de fato, pelo menos não ainda, tive que buscar meus exemplos em livros. A primeira utopia que comentei, em dois posts separados, foi "Walden II", imaginada pelo psicólogo B.F. Skinner e fundamentada pelos princípios das ciências do comportamento. O livro seguinte que eu comentei aqui foi "Horizonte Perdido", de James Hilton. Por fim, o último livro "utópico" que comentei não tratava de fato de uma utopia, mas de uma idéia que considerei muito próxima - "Sebastopol", de Tolstoi, e a idéia da paz atingida através da guerra. No final deste texto, disse que demoraria para ler outro livro sobre utopias, mas que não abandonaria a idéia de escrever mais a respeito do assunto por aqui.

Preciso dizer que menti. Na época em que este último post foi publicado, tinha recém começado a ler "A Ilha", de Aldous Huxley, e achei a história tão envolvente que terminei de lê-la em tempo recorde. Entretanto, não consegui escrever com o mesmo entusiasmo. Comecei dois rascunhos diferentes, mas em nenhum dos dois consegui passar do terceiro parágrafo. Consegui, isso sim, escrever uma monografia com o título de "O Trabalho nas Utopias e na Realidade", comparando as condições de trabalho em "A Ilha", "Walden II" e o mundo real, tentando encontrar pontos em comum. A proposta dessa monografia era bem distinta do que pretendo fazer aqui para o blog, mas utilizarei algumas partes dela para fundamentar meu texto (e me ajudar a lembrar da história de "A Ilha", já que faz um bom tempo desde que a li).

Tendo lido já alguma coisa sobre utopias, me sinto tranquilo o bastante para dizer que toda a literatura utópica busca responder às seguintes questões:

1) Quais foram as contingências geográficas e históricas que permitiram tal sociedade se desenvolver de maneira contínua e segura?
2) Qual modelo econômico foi por ela adotado, de que maneira os recursos naturais e humanos são utilizados e como ele garante o bem-estar da população?
3) Como são tratadas as questões comportamentais, individuais e coletivas, da população e suas principais instituições (vida em família, vida amorosa, amizades, vida em comunidade, trabalho, lazer, educação, saúde, religião)?
4) Qual o sistema político de tal sociedade, e como sua "administração central" (se esta existir) gerencia as questões anteriores, bem como as relações com outras sociedades e estados?

Estas perguntas, em última análise, são componentes de uma outra pergunta que o autor deve responder se deseja realmente descrever uma utopia: por que esta sociedade é perfeita, e por que deveríamos invejá-la? Cada livro da literatura utópica é, de certa forma, a vitrine das idéias de seu criador, que mostra aos demais como o mundo seria perfeito se todos resolvessem adotar os seus princípios e aplicá-los à realidade (ou, de maneira inversa, por que o mundo é a bagunça que é, e o que estamos fazendo de errado). Em outros termos: o autor é um vendedor, sua ideologia é seu produto e a utopia que ele descreve é sua vitrine. Alguns escritores são mais felizes do que outros nessa empreitada. Por exemplo, em "Horizonte Perdido", James Hilton parece estar mais interessado em contar uma história e estimular a imaginação dos seus leitores do que em convencê-los de que aquilo que acontece em Shangri-Lá fica em Shangri-Lá deveria acontecer no resto do planeta. Por outro lado, em "Walden II", Skinner só não escreveu um epílogo dizendo "acreditem em mim, gente, condicionamento operante é a coisa mais maravilhosa que existe" por que seria redundante, já que o livro inteiro é quase um infomercial de Walden II (é possível ler nas entrelinhas um "mas espere! Ainda tem mais!" entre um capítulo e outro). Tolstoi, que em "Sebastopol" não descreve uma utopia, também é bastante claro a respeito do que ele acredita ser certo ou errado.

Aldous Huxley em "A Ilha" é mais sutil que Skinner, e muito mais claro do que Hilton a respeito da mensagem que quer passar, por que, ao mesmo tempo que descreve os componentes de sua sociedade ideal, não descuida dos aspectos estéticos da história que conta. Ela começa com Will Farnaby, o personagem principal, naufragando no Oceano Índico, e indo parar na ilha de Pala, que era onde ele originalmente desejava chegar. Farnaby é jornalista, e um agente pago por uma grande empresa petrolífera para infiltrar-se em Pala, desestabilizar o governo local por dentro, e submetê-lo ao comando do ditador da ilha vizinha, Rendang. No princípio, apesar da hospitalidade da população local, que o recebe e cuida de seus ferimentos como se fosse filho de Pala, ele colabora com as forças que desejam destruir a harmonia da ilha para aumentar sua riqueza material e poder. Entretanto, conforme vai conhecendo o lugar, seu funcionamento, e vive experiências purificadoras, Farnaby abandona seu cinismo e, ainda que seja tarde demais para salvar Pala, ele consegue ver claramente a beleza daquela sociedade. Não vou dar mais detalhes da história, tanto por que não quero estragar a leitura de quem se interesse, quanto por que eu sinceramente não lembro de muitos detalhes. O que eu vou falar, e que ainda me lembro, é da maneira como Huxley tentou responder às quatro perguntas que formulei anteriormente.

A ilha de Pala, apesar de naturalmente cheia de recursos, é isolada do resto do mundo por sua geografia, contando com apenas um porto natural, sendo todo o resto da costa impossível de atracar, ou pelo menos muito perigoso de navegar. Era como qualquer outra monarquia pobre da Ásia, com um povo supersticioso e fisicamente pouco saudável até a chegada de um médico britânico. Este médico, cujo nome me escapa agora, fora contratado para tratar o Rajá de um câncer na mandíbula. Tal operação não era sua especialidade, mas a realizou assim mesmo, com a ajuda de técnicas de sugestão e hipnose. O Rajá, agora a salvo de doenças terminais, ficou impressionado com as capacidades cognitivas do médico, e pediu para que ele ficasse em Pala e o ajudasse a fazer o que se pode chamar de uma completa reforma cultural na ilha. Aqui, fica óbvio para o leitor de "A Ilha" o que Huxley imaginara como a sociedade perfeita: uma fusão harmoniosa entre o melhor da ciência ocidental e o melhor da ética e espiritualidade oriental.

Esta revolução cultural, diferente da realizada em "Walden II", levou pelo menos três gerações, e envolveu mudanças graduais, porém profundas, nas práticas dos habitantes de Pala. Primeiro, o médico britânico conquistou o apoio da população feminina introduzido técnicas de higiene que em muito diminuiram as mortes durante o parto, bem como a qualidade de vida em geral. Depois disso, já contando com a confiança pública, ele pode ser dar ao luxo de atacar hábitos supersticiosos daninhos e substituí-los por outros hábitos, mais racionais. Junto com o Velho Rajá, que também era um grande intelectual e reformador, ele instituiu políticas públicas de longa duração, e que depois de 100 anos, quando Will Farnaby naufrga em sua costa, ainda se encontravam em efeito.

Como já disse antes, faz tempo que li o livro, e a grande maioria das propostas de Huxley me escapam à memória agora. Entretanto, todas elas seguiam o mesmo princípio: como seria uma sociedade onde todas as suas partes servissem o bem maior, e estimulassem o desenvolvimento saudável e consciente de seus membros? Ao contrário do que acontece em "Admirável Mundo Novo", onde as pessoas trabalham para manter o sistema de consumo irrefreável funcionando às custas de sua própria individualidade, em "A Ilha", tudo trabalha para favorecer o crescimento espiritual das pessoas, e torná-las cada vez mais conscientes de si, de seu contorno, de seus deveres e de sua missão. Por exemplo, os papagaios da ilha foram treinados para falarem, de tempos em tempos, palavras como "atenção!" e "aqui e agora!" para que os palaneses fossem constantemente lembrados de que devem estar atentos, e viverem aqui e agora, e não se perderem em divagações inúteis sobre o passado ou o futuro. A família em Pala, apesar de ser constituída de forma tradicional, com pai, mãe e filhos, também é atravessada pelo CAM, Clube de Adoção Mútua. No CAM, as crianças adotam outros pais e outras mães, fora de sua família nuclear, tantas quanto quiser ou precisar. Deste modo, quando esta se cansasse de seu pai ou de sua mãe biológicas, ia para a casa de outro, onde seria acolhido como um filho. Deste modo, nenhuma criança seria obrigada a conviver o tempo todo com a neurose de seus cuidadores (ou, na melhor das hipóteses, poderia alternar entre neuroses diferentes conforme lhe convir).

A ciência em Pala também é vista de maneira diferenciada. O Velho Rajá e o médico, apesar de serem ambos entusiastas de inovações, eram também cautelosos em relação ao que deixavam entrar em Pala. Por isso, a industrialização era limitada: foram criadas plantas hidroelétricas para gerar energia para geladeiras e assim estocar a produção de alimentos por mais tempo, e plantas industriais e poços de mineração existiam em pontos específicos da ilha, mas de maneira limitada. Além disso, nenhum trabalhador era obrigado a trabalhar mais do que o necessário, para que ainda dispusesse de tempo livre para realizar suas atividades de lazer preferidas. Em nossa sociedade produtivista, que clama sempre por mais e mais coisas para comprar e logo jogar fora, isso parece absurdo, mas em Pala, o trabalho tem como principal propósito estimular o desenvolvimento pessoal, e não usar todas as energias do trabalhador para realizar uma tarefa que muito pouco o beneficia, como frequentemente ocorre em tantos empregos.

Também a vida amorosa e sexual dos palaneses é bem distinta, tanto da nossa, quanto dos habitantes de Rendang, quanto mais dos cidadãos do "Admirável Mundo Novo". Ao invés de serem forçados a engolirem diversos tabus referentes à sexualidade, os palaneses são, desde muito cedo, educados a respeito da sexualidade e, a partir de uma certa idade, estas aulas se tornam práticas, quando aprendem a arte do Maithuana, a Yoga do Amor. Aqui, o sexo não é encarado como uma prática de dominação, uma conquista de um homem sobre uma mulher ou vice e versa. É, na verdade, uma expressão de amor entre duas pessoas (qualquer que seja o gênero delas, diga-se de passagem). Existe um apego entre os amantes, mas um apego bem diferente daquele que experienciamos na sociedade ocidental, que não amarra um ao outro irremediavelmente.

Mais notável ainda é o destaque dado para a espiritualidade propriamente dita, e os ritos a ela ligados. No final de sua vida, Huxley estava muito interessado com os possíveis usos de substâncias psicodélicas, que, se bem empregadas, poderiam servir para acelerar o progresso espiritual da humanidade. Tanto Pala quanto a sociedade distópica de "Admirável Mundo Novo" possuem drogas que alteram a percepção consciente da realidade e que estão ao alcance de toda a população. O uso dado a elas, porém, é completamente diferente. Se em "Admirável Mundo Novo" o soma é usado para fugir das dores do mundo e viver em um estado artificial e patológico de felicidade, em "A Ilha" o chá feito com a planta Moksha ("libertação" em sânscrito) é empregada para o exato oposto: expansão da consciência. Também não é utilizada de maneira indiscriminada, como quem toma aspirina, e sim apenas em momentos solenes. A primeira vez é no rito de passagem da adolescência para o mundo adulto, onde os jovens passam por um teste. Tanto meninos quanto meninas precisam realizar uma escalada perigosa, do topo de um penhasco até o Templo Central da ilha, onde eles tomarão Moksha e serão instruídos sobre os deuses, o universo e seu papel nele. Depois deste episódio marcante, o Moksha é tomado apenas em situações especiais, com o intuito de levar aquele que o bebe mais próximo da Iluminação.

Talvez o que mais tenha me chamado a atenção na sociedade palanesa é a verossimilhança com que Huxley a pinta. Ao contrário de Walden II e Shangri-Lá, que parecem ter surgido do éter e funcionando de maneira impecável por passes de mágica (mesmo que seja a "Mágica Comportamental" do Dr. Skinner), Pala impõe-se ao leitor como um lugar que realmente poderia existir. Mesmo sendo uma comunidade muito avançada, especialmente em termos psicológicos, ela é composta por pessoas de verdade, e não "exemplos didáticos" como Walden II. Esta foi a parte que mais me encantou em "A Ilha" - eu posso realmente acreditar na existência de Pala, bem como de seus moradores, por que o seu sofrimento existe e é palpável. O que muda na sociedade palanesa, quando comparada com a sociedade em que vivemos, é a maneira como este sofrimento é vivenciado: não há uma luta para livrar-se da dor, de viver permanentemente em um estado forçado de alegria. Aceita-se o presente, seja o presente como for. Susie McPhail, a segunda personagem mais importante do livro, perdera o marido em um acidente de montanhismo, e frequentemente passa seus momentos solitários pensando nele, e como sente sua falta. Porém, não há nenhuma nota de autopiedade em suas reflexões, nem uma negação da realidade, e em nenhum momento ela relega sua obrigação como mãe para chafurdar na própria dor. Talvez para Skinner, o que importa na construção de uma sociedade ideal é o reforço positivo externo, o ambiente, mas será que isto não seria muito, muito mais relevante?

Pala é uma fantasia, mas pode ser tornada real. Pode ser que para que desenvolvamos uma sociedade tão avançada levemos 100 anos. Contudo, as sementes para esta utopia podem começar a serem semeadas aqui e agora, e já estão sendo. Nos meus próximos dois posts sobre Utopias, pretendo falar sobre isso. Aguardem.