sexta-feira, 13 de maio de 2011

Tempo e Técnica

Em Análise do Comportamento, existem dois conceitos ao mesmo tempo opostos e complementares: Regras e Contingências. Regras neste contexto não são determinações externas de autoridade, e sim todo e qualquer comportamento verbal que funciona como antecedente para outros comportamentos. Em outras palavras, regras são quaisquer sugestões, ordens, leis ou algorítmos que pré-determinam para nós como devemos nos agir. Nós estamos o tempo todo formulando regras para nós mesmos, como "se eu colocar o dedo na tomada, vou tomar um choque", "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura" e "Deus ajuda quem cedo madruga". De um ponto de vista evolutivo, tal comportamento é bastante adaptativo, por que nos permite aprender algo sem necessariamente ter que entrar em contato com este algo.

As contingências, por outro lado, são este "algo" que não necessariamente precisamos contatar. Dito de outra forma, as contingências são as qualidades do ambiente ao nosso redor, e que nos fazem agir da maneira como agimos. Por exemplo, estar apaixonado é algo que 99% das novelas brasileiras aborda, mas só sabemos como é estar apaixonado de fato quando somos atacados pela flecha do Cupido. Da mesma forma, é bem diferente o seu pai dizer que colocar a mão no fogo machuca, e ser teimoso e colocar a mão no fogo para daí, sim, descobrir que fogo machuca!

A distinção entre estes dois conceitos na vida real para nós, seres verbais, é bastante confusa: como é que eu vou saber se o que eu aprendi foi através de contingências diretas, ou a partir de regras dadas por outrem em algum momento da minha vida? Não poderíamos considerar as regras como um tipo diferente de contingência, e encontrar uma diferença entre ela e outros tipos de contingência? A resposta para estas perguntas é "sim, regras são contingências, e elas possuem diferenças", mas não é isso que quero falar nesse post hoje. Na verdade, apenas falei sobre regras e contingências por que, no momento, eles me parecem a maneira mais clara de expor o que ando pensando sobre a diferença de aprender com alguém e aprender diretamente: Conhecimento versus Experiência.

Como psicoterapeuta em formação, aprendi muito lendo os textos de outras pessoas, onde elas relatam sua própria experiência. Este aprendizado por regras foi essencial para mim, e continuará sendo até o dia em que eu resolva me aposentar. Entretanto, depois de quase três anos atendendo, eu noto uma grande diferença na maneira como eu me comporto hoje como terapeuta, e como eu me comportava quando eu comecei a atender. Além de eu me sentir mais confiante, eu percebo que minha atenção está mais aguçada, e que eu sou muito mais capaz de encontrar "pontos de apoio" para intervenções terapêuticas. Agora, me pergunto: como serei depois de 30 anos trabalhando como psicólogo? Olho outros profissionais, já a muito tempo "no mercado", e percebo que eles são ainda mais capazes do que eu de fazer estas intervenções.

Esta observação me fez chegar à conclusão de que, apesar dos ensinamentos (regras) dos outros serem importantes para a formação de qualquer profissional, em qualquer área, a experiência direta é ainda mais, por que, quanto mais experiência se têm, mais capacitado se é para adquirir ainda mais. É quase como que uma "singularidade tecnológica" acontecendo nos teus neurônios, constantemente refinando e expandindo tuas habilidades, ao ponto de, depois de 60 ou 70 anos, tu te tornares um semideus na tua área profissional. Claro, como todos nós morremos um dia, é importante também passar um pouco dessa experiência adiante, para que outras pessoas possam partir de um ponto mais avançado do que nós um dia começamos.

"Knulp" - a história de um andarilho

Como meu nom de plume indica, eu tenho uma simpatia especial por andarilhos. Começou com o personagem principal de Samurai X, que se ampliou à minha admiração pela história de "Na Natureza Selvagem", ao meu gosto pelo livro "No Fio da Navalha" e se tornou depois de algum tempo em idealização de toda uma classe de personagens, reais ou imaginários, que tomaram como missão de vida caminhar pelo mundo sem nenhum apego além daquele à própria causa. Como a minha escolha de palavras indica, tem uma boa dose de "wishful thinking" da minha parte em achar que todas as pessoas que vagam o mundo são nobres e dedicadas a um Bem Maior, mas acho que o que importa no final é ideal que o arquétipo do andarilho me inspira do que a maneira como ele se manifesta no mundo.

Então, esse post é para falar de coisas ideais, e de coisas que fracassam em atingir o ideal. "Knulp" também. Esse é o título de um dos livros mais desconhecidos do Nobel de Literatura Herman Hesse - até o momento, só encontrei uma pessoa além de mim que tivesse lido ele em uma mesa de bar. Francamente, não é algo realmente surpreendente, por que, se comparado com suas outras obras mais conhecidas, especialmente "O Lobo da Estepe", "Demian" e "Sidartha", há muito pouco pathos na história. O personagem principal, apesar de compartilhar muitas semelhanças com os personagens principais desses outros livros (que, por sua vez, compartilham muitas semelhanças com o próprio Herman Hesse, que eu imagino que era um andarilho à sua própria maneira), não sofre intensamente. A pergunta filosófica que os outros fazem, "qual o meu lugar neste mundo?", é respondida antes mesmo do começo do livro. Nós acompanhamos Knulp tomar a decisão de não conformar-se em ter uma vida mediana como todas as outras pessoas, e viver vagando de cidade em cidade, de baile em baile, de boa ação em boa ação, mas este momento marcante passa muito rapidamente no livro (pelo menos na minha opinião, e se comparado com outros livros do Hesse), e logo voltamos a ver sua vida em movimento, sem que este conflito tão típico dos contos de Hesse esteja marcadamente presente.

Se, por um lado, não acho surpreendente que a história não seja muito conhecida, por outro, acho uma pena, por que o sofrimento menos intenso do personagem principal faz com que os outros aspectos da vida de um andarilho sejam tratados com maior sensibilidade e atenção. Em vários momentos da história, Knulp encontra velhos amigos, agora casados e estabelecidos como mestres em alguma profissão, que lhe perguntam "e tu, por que não fez o mesmo? Por que tu preferiu essa vida de vagabundo, sempre a andar por aí, sem aprender uma profissão, sem se tornar um cidadão de bem?" Por um lado, estes amigos querem muito o bem de Knulp, que por isso sempre encontra pouso durante os rigorosos meses de inverno, e lhe fazem esta pergunta por que acreditam que esta é a única maneira de ser feliz. Mas, por outro, existe a inveja de estar preso em um único lugar, a único destino. Ao contrário deles, Knulp pode viver livre e como bem entende.

Entretanto, mesmo para o personagem principal o mundo não é preto e branco, e mesmo para ele existe a contradição e o paradoxo. Pode ser que ele sempre consiga responder àquela pergunta, ou evadi-la de maneira engraçada, mas o fato é que nem ele tem certeza de ter feito a coisa certa. Não teria sido melhor permanecer em uma só cidade, casar-se com uma mulher direita, e aprendido uma profissão, como todo mundo ao seu redor fez? Teria ele sido mais feliz? Talvez. Mas, se isto tivesse acontecido, quem teria levado alegria e bondade de um canto a outro, na velocidade de seus pés? No fim, Knulp confronta-se com seus pecados, e os coloca diante de Deus, para que Ele o julgue. E, no fim, é Ele quem o absolve. Knulp pode não ter sido um mestre em nada, contudo, ele foi um razoável tocador de gaita, um bom dançarino e alguém cuja companhia sempre foi agradável, e que, em alguns instantes, fez o mundo de alguém mais feliz. Não seria este seu destino: tornar-se mestre em não ser mestre em coisa alguma? Não sei.

O livro me encantou por vários motivos, alguns dos quais eu já expliquei aqui. Porém, o principal deles é o que me faz gostar de toda a obra de Herman Hesse: ela é mais um chamado à seguir o próprio coração. Batido e clichê, eu sei, mas não serão as coisas mais importantes em nossa vida justamente as mais repetitivas, como amor, amizade, carinho e compaixão? Na minha opinião, Knulp, tanto o livro, quanto o personagem, vivem estes ideais, da forma como eles melhor conseguem vivê-los, e este é seu grande valor, independente de terem feito grandes conquistas no mundo ou não.

Considerações filosóficas de final de tarde sobre educação

Atendendo muitos adolescentes, eu fico impressionado com a atitude que muitos pais têm em relação ao comportamento dos seus filhos. Quando eles vêm falar comigo, sempre fazem questão de dizer "doutor, eu dou tudo pra ele: roupa de marca, comida da boa, TV da Sky, me esfalfo trabalhando por ele e ele se comporta desse jeito! Tem cabimento, doutor?"

Nessa hora, ao ouvir tão fatídica pergunta, eu me faço de morto, mas normalmente preciso me controlar para não perguntar de volta "mas o senhor ensina ele o que fazer ao invés de agir dessa maneira?" Me controlo, por que tenho medo de desorganizar esse pai ou essa mãe, colocando no colo dele ou dela uma responsabilidade muito grande, que talvez eles não percebam possuir: a educação do seu filho.

Não quero defender apenas um lado aqui: normalmente, os adolescentes (e as crianças) que eu atendo fazem coisas terríveis. Mas daí eu pergunto: onde estão os adultos para controlar ela? Quem vai lá, aponta o que está errado e ensina como fazer direito? Se eu fizesse todas estas perguntas, aposto que duas coisas aconteceriam:

1) O pai/mãe ia me dizer "mas doutor, eu já estraguei todos os meus cintos e chinelos de tanto que bati nesse guri!"
2) Eu ia perder o paciente, por que o pai/mãe ia se sentir ofendido.

Ofender só funciona em um lugar nesse mundo: no seriado House, e olha que mesmo lá ele já teve sua cota de sofrimento por pisar nos calos da pessoa errada. Além disso, ofender seria incorrer no mesmo erro que esses pais incorrem: machucar ao invés de ensinar. Tomar uma surra ensina que não dá pra ser pego, e que se você consegue fazer o que quer sem que ninguém saiba, está tudo certo. Xingar na terapia também: se o doutor não souber, não acontece nada. É uma maneira primária de pensar, e a maioria dos meus leitores devem estar muito acima dela. Entretanto, não dá pra dizer o mesmo de grande parte da população.

Então, pra finalizar esse post, vou dizer algumas pérolas de senso-comum, mas que a experiência como psicoterapeuta me mostraram serem verdadeiras. A primeira é que "pai é quem cria", está lá, presente em nossos sucessos e também em nossos fracassos. A segunda é "bater não é educar" - se surra adiantasse alguma coisa, os presídios estariam cheios de santos e almas iluminadas, e não seriam considerados os piores lugares para se passar a vida. Terceiro, o ensino mais eficaz é o exemplo, a presença. Eu posso fazer meus filhos lerem vários tratados filosóficos sobre Ética, mas se eu não mostrar, através do meu comportamento, como colocar isso em prática, tudo o que eu vou estar fazendo é ensinando eles a justificarem os próprios erros. Justificativas normalmente não servem para nada, por que elas normalmente visam tornar correto o incorreto, ao invés de corrigi-lo e mudá-lo. E, em quarto e último lugar, o que vale para meus (no momento hipotéticos) filhos, vale para meus pacientes também: se eu quero que eles ensinem seus filhos a serem mais educados, eu tenho que ensinar da maneira que eu considero correta.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Osama e a Primavera dos EUA

Então, Osama morreu. Nessas alturas do campeonato, isso não é novidade para mais ninguém, considerando que esta notícia já deve ter aparecido umas 15 vezes na programação normal da Globo (sem contar as chamadas do Plantão da Globo, a Globo News e as filiais regionais), e agora, ao invés de meramente passar a informação adiante, já nos damos a liberdade de emitir pequenos comentários a respeito deste acontecimento histórico. Toda vez que falamos do Osama, falamos o que nós achamos disso tudo. Teoricamente, damos a nossa opinião "pessoal". Falo "teoricamente" e coloco o adjetivo "pessoal" entre aspas por que as opiniões que correm por aí são tão similares que não consigo acreditar que todo mundo falando sobre a morte do Osama e os aspectos políticos de fato formulou sua opinião por conta própria, e sim foram à mesma fonte descobrir o que eles precisavam achar.

Em outras palavras: todo mundo fala a mesma coisa sobre a morte do Osama e sobre os Estados Unidos, e num país com tendências esquerdistas e anti-imperialistas como o nosso, o comentário mais comum que eu vi por aí é o bom e velho "Fuck the USA." Ele pode variar a forma e o conteúdo, mas a função é sempre a mesma: falar mal dos Yankees. E eu, que vivo em um ambiente particularmente esquerdista e anti-imperialista, ouço bastante disso. Eu não tenho nada contra a esquerda, muito menos contra a posição anti-imperialista (o que quer que seja isso). Em muitos casos, eu acabo concordando com o que dizem a respeito dos EUA: cadê a foto do corpo do Osama? Não foi o governo dos Estados Unidos quem armou o Talibã e as guerrilhas do Bin Laden para lutarem contra os soviéticos? Não fizeram uma série de escolhas políticas antidemocráticas e antiéticas no Oriente Médio de apoiar ditadores com base em quão amigáveis eles são e não quão respeitosos eles são de seu povo? Pois é, eu concordo com tudo isso, e eu poderia escrever um post só sobre como os Estados Unidos da América são uma superpotência opressiva e que só se importa com seu bem estar. Mas eu não vou fazer isso, por que outros blogueiros já devem ter feito esse serviço por mim, de maneira muito mais competente e dedicada do que eu jamais faria.

O que eu quero falar nesse post aqui não é sobre política: é sobre afeto. Diferente da maioria dos meus colegas esquerdistas e anti-imperialistas, eu morei nos EUA, e por isso eu acho que consigo ver os EUA para além do seu governo, e lembrar que existe um povo morando lá. Encontrei esse link aqui em alguma lista de sites por aí, e alguma coisa nas fotos e nos títulos me fez sentir alguma coisa que estava adormecida à muito tempo. "Osama está morto" diz o site "e é primavera na América", que traz trinta fotos da chegada da primavera ao distante país do norte. Eu vivi isso quando morei lá, e só agora eu percebo quão importante é essa época do ano. Depois de talvez três ou quatro meses escondidos em casa, o gelo começa a derreter e os estadounidenses (eu sou chato com essa coisa de "americano", por que também sou meio esquerdista e anti-imperialista) finalmente podem sair de casa, tomar banho de piscina, se jogar na grama e tomar banho de sol. Olhem para as fotos e me digam: tem alguém fazendo alguma coisa que a gente não faça aqui no Brasil? São patetas, são idiotas, mas são pessoas, e elas também querem ser felizes.

Junto com a neve, outra coisa derrete: o medo. Um dos comentários que ouvi a respeito de todo esse episódio é que "sair pra comemorar a morte de alguém são dez passos atrás na evolução." Talvez seja mesmo. Contudo, quem saiu para as ruas de Washington, Nova York e outras cidades comemorar a morte do líder terrorista Osama bin Laden não saiu para comemorar a morte de uma pessoa, e sim celebrar o fim do medo. Nos últimos dez anos, todos os Estados Unidos se viram cobertos por uma sombra, uma ameça indefinida e por isso muito mais assustadora, que podia se esconder em qualquer canto, e atacar qualquer lugar. Osama era só um homem, mas era o homem que encarnava essa sombra. Agora que ele foi morto por soldados estadounidenses, parece que a sombra morreu junto com ele, como que exorcizado. "É só ilusão" dirão os comentaristas "a Al Qaeda vai vir com mais força ainda agora, e eles vão voltar a ter medo outra vez." É bem provável que sim. Contudo, meu apego àquele país me faz querer acreditar que não, que a morte de bin Laden deixou o mundo mais seguro, e que a sombra morreu de fato, ou pelo menos ficou severamente ferida com esse golpe, por que eu não penso nos Estados Unidos apenas como uma organização com um exército comandada por um cara chamado Obama, e sim como uma nação, composta por pessoas que sofrem tanto quanto eu, e pensar que elas estão mais felizes e tranquilas agora que seu maior inimigo não pode mais atingi-los também me faz sentir mais feliz.

Sei que, do outro lado do mundo, alguma mãe chora por seu filho morto por demônios americanos, e o sofrimento dessa mãe é tão grande e importante quanto o sofrimento que os EUA passou nos últimos dez anos. Só que eu acho que já existe gente o suficiente na internet brasileira para falar sobre essa dor, e muito poucos para falar sobre a dor yankee.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

As Dimensões da Personalidade

Podemos fazer piada a respeito dos psicólogos e como eles estão sempre analisando os outros e emitindo diagnósticos, mas o fato é que todas as pessoas fazem a mesma coisa - elas coletam informações, julgam e tiram uma conclusão a respeito dos outros. A diferença dos psicólogos é que eles ativamente procuram ferramentas de avaliação mais eficazes do que o senso comum normalmente utilizado. Isso é "teorização" - a criação de teorias. De certa forma, o senso comum é a teoria que surgiu da experiência das pessoas normais, e da compilação dos dados coletados por estas ao longo de várias e várias gerações. Até certo ponto, ele é útil e nos ajuda a nos guiarmos pela sociedade, e até mesmo a nos mantermos vivos. Porém, o senso comum perde grande parte de sua validade em questões mais finas, onde é necessário maior critério de observação do que a sua avó percebeu quando passou de ônibus no bairro pobre da cidade.

E é aqui que entram os psicólogos, sociólogos, antropólogos e outros cientistas envolvidos no estudo do comportamento humano: nós desenvolvemos modelos conceituais utilizando métodos bastante refinados, como a experimentação, a observação sistemática, a pesquisa-ação, a pesquisa genética e a comparação com outras espécies de mamíferos. Cruzando e analisando todos os dados assim coletados, podemos criar teorias muito mais refinadas e capazes de predizer comportamentos do que as nossas avós conseguiam (por mais sábias que fossem).

Uma das teorias que mais gosto é a utilizada pela Terapia Multimodal. Ela foi desenvolvida por Arnold Lazarus na metade do século passado, e postula que a personalidade humana é composta por sete dimensões: Comportamento, Afeto, Sensação Corporal, Imaginação, Cognição, Relações Interpessoais e Biologia. O que eu gosto nesta teoria é, além de sua simplicidade e abrangência, sua aplicabilidade: não só vários tratamentos adequados podem ser planejados com base nela, como também leigos podem utilizá-la para melhor compreender os outros seres humanos ao seu redor.

Partindo de uma perspectiva analítico-comportamental, onde tudo o que uma pessoa faz é considerada como comportamento, cada dimensão da Teoria Multimodal é uma classe comportamental. Em outras palavras, cada dimensão é um tipo de coisa que nós fazemos. Trocando em miúdos, a modalidade do comportamento engloba tudo o que nós fazemos com nosso corpo e os outros possam ver, como caminhar, falar, pular e escrever. O afeto são todas as emoções, sentimentos e humores que sentimos. A sensação corporal é o que sentimos dentro do nosso corpo. A imaginação e a cognição são aquilo que chamamos de "mente" - a primeira é responsável pela criação e manipulação de imagens que só nós vemos, como rever acontecimentos passados e ensaiar cenas futuras, e a segunda é responsável pelos nossos julgamentos, avaliações e crenças. Já as relações interpessoais são todos os comportamentos envolvidos no trato com outras pessoas, e, por fim, a biologia é todo nosso funcionamento corporal, bem como a maneira como cuidamos dele (alimentação, exercícios, uso de medicação e drogas). Como os leitores mais atentos devem ter percebido, existe muita sobreposição entre as modalidades, sendo às vezes impossível distinguir entre elas. Porém, segundo Lazarus, isso é tanto esperado como necessário. Apesar de dividirmos a personalidade em aspectos para melhor compreendê-la, ela é, em última análise, uma estrutura e um processo único e total, e mais importante do que classificar uma manifestação humana corretamente como sendo "Cognição" ou "Interpessoal" é menos importante do que levá-la em consideração na hora de realizar o diagnóstico.

Entretanto, mesmo sendo um processo único e total, nós percebemos fenômenos diferentes dentro dela, e nos são úteis estas diferenças. A principal delas, na minha opinião, é a Hierarquia das Modalidades. Todos nós temos em nossa personalidade as sete dimensões citadas acima. Contudo, algumas serão mais prevalentes do que as outras, e se manifestarão primeiro ou com mais força. Por exemplo, pessoas que vivem no "mundo da lua " teriam como principal modalidade a Imaginação, enquanto que a modalidade Comportamento ficaria bem abaixo na hierarquia. Outro exemplo, que Lazarus dá em um dos seus livros, é a ordem de ativação modal. Na Terapia Cognitiva elaborada por Aaron Beck, nós primeiros temos um pensamento, que elicia um sentimento, e então agimos. Para Lazarus, as coisas são mais variadas e complicadas que isto. Uma pessoa poderia ficar ansiosa ao assistir uma tragédia na TV por que imaginou algum familiar entre as vítimas, sentiu uma sensação de peso no estômago, julgou esse peso como um sinal de que alguém morreu, e então se entupiu de remédios para controlar o nervosismo, enquanto outra ficaria ansiosa por que primeiro sentiu o peso no estômago, fez um julgamento e então pensou na família toda morta. Apesar do processo ser parecido, o tratamento terá que ser completamente diferente para cada uma destas pessoas, levando em consideração como elas reagem ao mundo.

Este jeito de ser é historicamente determinado. Tomemos este excelente blogueiro que vos fala como exemplo. Penso que a minha modalidade primária é a Imaginação - hoje mesmo quase tive um treco ao imaginar uma perna necrosada (yuk). É razoável acreditar que eu nasci com essa predisposição, mas o fato de meu pai ter me levado para ver todos os filmes da saga Star Wars (além de alguns de Star Trek e toda a série Smallville), bem como me incentivado a ler livros de aventura e coisas parecidas me parece muito mais relevante, por que fortaleceu minha capacidade de criar imagens e ser afetado por elas. Ignorar isso em um tratamento comigo seria basicamente ignorar a maneira mais eficiente de lidar com meus problemas. Outras pessoas, obviamente, vão ter históricos diferentes do meu, e muito provavelmente terão modalidades primárias diferentes da minha, e não só o tratamento, como também viver com elas, será bastante diferente.