domingo, 24 de outubro de 2010

Histórias que Entretêm - A Ferida e a Pintura

Aquela não era uma ferida comum. Embora ela tivesse nascido da mesma maneira que todas as outras feridas, em encontrão brusco com a realidade que corta, queima e lacera, a dor que ela causava seguia regras próprias. Ao longo do dia, enquanto o sol brilhasse, e o mundo permanecesse agitado, ela não doía, como se já tivesse cicatrizado ou nem mesmo existisse. Porém, quando a noite e chegava tudo silenciava, a fina casca que a cobria desaparecia, e o sangue voltava a verter, nunca o bastante para matar seu dono - apenas para fazê-lo sofrer. Nestas horas, a única coisa que ocupava sua mente era estancar a hemorragia, encontrar alguma maneira de fazer a dor sumir para sempre. Obsessivamente procurava uma cura, até cansar-se e entregar-se a um sono que, se não o libertava do martírio, pelo menos lhe concedia a fugaz trégua de abandonar tudo que dizia respeito a si próprio, e voltar apenas quando a redentora luz do dia já tivesse chegado, fazendo mais uma vez a dor desaparecer num passe de mágica. Era um homem doente, o sabia, mas de um jeito sutil. Às vezes, nem ele o percebia, e pensava que tudo ia bem. Era a noite que o lembrava de sua condição enferma, de que sofria e que precisava de uma cura. 

No princípio, ignorava que mal lhe acometia. Com o passar das noites, contudo, foi se observando, e viu mais sintomas. A doença era como uma obra de arte complicada, uma pintura quase incompreensível, mas que seguia uma linha-mestre e que possuía um sentido. Pouco a pouco, foi desvendando seus traços, seus contornos, sua forma, seu todo. Contra sua vontade consciente, passou até mesmo a apreciá-la em sua beleza sofrida, de cores cinzentas, escuras e frias, que trazia em si algo de rebelde e teimoso: era sofrida, cheia de dor e mágoa, e mesmo assim, se recusava terminantemente a se macular com reclamações abjetas, indignas, mesquinhas. Lutava para manter-se digna até o final. Isso era ao mesmo tempo profundamente incompreensível e admirável.

A vista foi se tornando mais afinada, e foi encontrando coisas novas. Cada dia que passava contemplando aquele quadro, descobria uma nova ordem, como se os seus elementos tivessem se deslocado, mudado de lugar e composto uma outra pintura enquanto dormia ou olhava para os lados. No começo, a ferida estava lá, bem no meio, sangrando para todos os lados, mostrando sua dor para todos os que tivessem a capacidade (e a vontade) de ver. Mas havia mais, muito mais por se descobrir. Daquela ferida, saía a tinta que pintava o nome de uma mulher, borrado por lágrimas e cercado por espessa camada de melancolia. Quando contemplava esta parte do quadro por muito tempo, ele era imobilizado por um sentimento de inutilidade, desejava a cama, quando não a própria morte, para cair mais uma vez no esquecimento e fugir da dor. Às vezes, porém, fixava sua atenção em outra parte do quadro. Era um borrão que misturava o vermelho do ódio e da raiva com aquela cor pálida da nostalgia, não só do passado como do futuro, tingido com o tom decepcionante da falsa esperança. Quando mirava esta parte, o que lhe possuía era um enorme desejo de quebrar, destruir, causar um estrago irremediável, que amputasse sua ferida a golpes de machado cego. Era seu próprio ódio que falava - ódio não só da ferida ou daquela mulher maldita cujo nome escrevera com o próprio sangue, mas principalmente de si mesmo. Odiava-se por ser tão fraco, por também sangrar, por também sofrer, e por ter que carregar uma ferida tão humana. Esta ferida que agora carregava, já vira em outras pessoas, já causara em outras pessoas. Com elas, manteve-se nobre e distante como um médico em visita, e receitara os mesmos emplastros que hoje recusa, despreza. Ao lado do vermelho do ódio, encontrou o tom alaranjado da vergonha.

Contudo, sua vista foi se tornando mais e mais aguçada, até ser capaz de perceber, para seu espanto, que existia uma cor diferente de todas estas. Em um canto afastado, descobriu um fugaz matiz de aurora e de sol nascente. Era uma nesga pequena, quase irrelevante, mas pura e verdadeira, que não podia ser ignorada. Passou a observá-la mais e mais, e mais e mais se espantava, por que a nesga crescia, ganhava mais brilho e ainda mais cores - um azul celeste de esperança sincera, um verde claro de futuro, outro tom de vermelho, de paixão e amor pela boa briga, e um dourado fulgurante de êxtase. Foi então que finalmente descobriu que a ferida não era o centro da pintura. Pensou que fosse, por que era tudo que conseguia ver até então. No fim das contas, ela era apenas a mais recente de uma série de cicatrizes rosadas que um dia foram cortes dolorosos: também ela cicatrizaria, mais cedo ou mais tarde, e se tornaria uma lembrança entesourada de um tempo de beleza singular. Viu então, pela primeira vez, que restava muito por pintar. Uma imensidão de branco o encarava, pedia por mais tinta e o chamava à ação. Que cores usaria? Não sabia ao certo. Não iria sua ferida voltar a doer? Também não sabia ao certo. Porém, isto não importava, pois precisava continuar aquela obra, antiga e nova ao mesmo tempo. Pegou um pincel, e pôs-se a trabalhar.