quinta-feira, 27 de março de 2008

Para além da Política e Opinião

Em um processo científico, a crítica é fundamental. Primeiramente, por que ela permite que o pesquisador seja privilegiado com informações advindas de outros campos, e desse modo, pode enriquecer seu delineamento experimental. Segundo, por que alguns erros óbvios não são tão óbvios quando olhamos muito perto, e alguém mais distanciado pode apontá-los. Portanto, é sempre salutar quando um cientista promove debates sobre pesquisas alheias, pois isto potencializa o progresso. Mas entrar na justiça para proibir uma pesquisa, com a desculpa de “discutir com a sociedade” não é só desonesto, é covarde e mesquinho.

Esse é um assunto antigo, tanto aqui, quanto no Amoladores de Facas. Já cansei de falar a respeito das posições adotadas por muitos dos críticos da pesquisa que será (ou não) realizada por neurocientistas da UFRGS e da PUCRS com meninos internos da FASE, utilizando-se de técnicas como Pet Scan, Eletroencefalograma e Ressonância Magnética. Mas através das discussões de que participei sobre ela, pude notar várias incongruências no discurso destes “campeões dos direitos humanos”.

Michel Foucault, importante filósofo e sociólogo francês, através de suas pesquisas, concluiu que, por trás do discurso psiquiátrico de várias épocas havia um discurso político, que era mais significativo do que o discurso técnico. Por exemplo, era comum que mendigos, bêbados e outros moradores de rua incômodos fossem internados em hospícios, para que não incomodassem a “boa sociedade” com sua visão asquerosa. Por chocante que possa parecer, isto ocorre até hoje. Basta apenas visitar um hospital como o “glorioso” São Pedro, ou o Instituto Psiquiátrico Forense. Foucault apontou algo incômodo, porém verdadeiro, uma verdadeira mancha em nossa sociedade. Mas, como bom guru que se tornou (duvido que por desejo próprio), teve seus ensinamentos devidamente postos no Altar da Certeza.

Numa das primeiras discussões em que me envolvi sobre essa pesquisa, reclamei que os críticos estavam focando-se exclusivamente na política, deixando de lado as questões técnicas. Recebi como resposta “político, sempre é”. Tirei de contexto, o que pode ter desvirtuado seu sentido original, que dizia que posicionar-se contra ou a favor de uma pesquisa é um posicionamento político, mas representa bem o que quero demonstrar. No agora famoso debate da TVCOM sobre este mesmo assunto, Martha Narvaz começou sua parte dizendo exatamente isto aqui:

“A gente sabe que existem diferenças de discurso teórico, que são os discursos da biologia, discursos da genética, discursos da psicologia, e dentro da psicologia, tem a psicologia experimental, que pensa diferente de outras linhas teóricas. E a gente sabe que todos esses discursos vão disputar no meio acadêmico a sua condição de verdade.”
(grifo meu)

Este debate deveria ser exibido para todos os calouros de Ciências Humanas da UFRGS, com o título “Como não fazer ao se posicionar em um debate”. Ela é tão ruim debatedora que foi uma dor ter que voltar o vídeo várias vezes para pegar a parte que eu queria. Destaquei a última frase da citação, que considero paradigmática. Em outras palavras, ela diz “nossos discursos valem a mesma coisa, não importa qual seja mais útil, ou empiricamente validada. O que conta é opinião”. Ao longo de todo o debate, diversas vezes ela diz coisas do tipo “é uma opinião minha, pessoal, mas essa pesquisa é eugenista!” Não acredita? Vai lá e olha todos os quatro vídeos. Não sou masoquista pra ficar olhando tudo de novo. Mas enfim, o que ela faz é colocar coisas bem diversas, desde Terapia Cognitivo-Comportamental até Terapia de Florais no mesmo balaio, joga fora todos os experimentos que atestam a eficiência da primeira e colocam em dúvida a da segunda, e diz que o que importa é o discurso político. Quem tiver mais muque é quem está certo (um discurso legitimamente nazista). Peguei pesado, admito, primeiramente por que ela não falou de TCC e de Florais, e muito menos defenderia esta última, mas com este exemplo, pretendo demonstrar o sofisma que ela utilizou como argumento. Se eu quisesse defender que a Terapia de Florais é superior à Terapia Cognitivo-Comportamental, eu utilizaria argumentos muito semelhantes aos da doutoranda Martha.

Desprezar a parte técnica da ciência, e focar-se apenas nos aspectos políticos que envolvem a teoria é perigoso. A História, para quem a Martha apelou quando falou no mr. Hitler, dá um bom exemplo do que aconteceu quando a técnica foi ignorada: Trofim Lysenko. Para quem não conhece esta figura e não está com paciência para ler o artigo da Wikipédia, Lysenko foi um geneticista soviético que decidiu ignorar as descobertas de Gregor Mendel no campo da genética, tirou uma teoria própria do ar, convenceu Stalin que não existia coisa melhor no mundo, expurgou seus rivais teóricos do país,e aplicou suas teorias nas plantações de trigo da União Soviética. O que aconteceu em seguida foi uma queda espantosa na produtividade, falta de alimentos e fome generalizada. O lado que ficou com o velho Mendel conheceu destino mui diferente, a Revolução Verde, o maior salto em produtividade de colheitas. Imaginem se, lá nos idos de 1940, geneticistas ocidentais influenciados por Lysenko começassem a falar que tudo é discurso, e convencessem os presidentes de seus respectivos países a proibirem pesquisas em genética mendeliana, só na lábia?

Em um campo como as Ciências da Saúde, isto é tão ou mais perigoso. As Neurociências tem se mostrado extremamente promissoras nos últimos dez anos, trazendo benefícios concretos para a humanidade, e não para o conceito abstrato de “progresso científico”. Elas têm beneficiado pessoas. Se existe um discurso político por trás das neurociências, da Terapia Cognitivo-Comportamental? Certamente. Estes discursos políticos influenciam os rumos da pesquisa? Qualquer um que trabalha com pesquisa sabe que sim. É o discurso político o fator mais importante por trás da ciência? Não. O fator mais importante é o bem-estar de todos os seres humanos, estejam eles envolvidos ou não no processo científico.

Peguei apenas um extremo da discussão e ampliei-o para tornar meus argumentos mais claros por contraste, mas nem de longe as posições aqui criticadas representam a opinião da maioria. Muitos de meus colegas são contrários a esta pesquisa, por temerem que os meninos envolvidos fossem tratados como absorventes (ignorados depois da pesquisa), que os procedimentos envolvidos acarretassem mal físico ou psicológico, ou que as vias políticas pelas quais os pesquisadores caminharam para ter acesso à FASE fossem duvidosas. Mas nunca endossaram seu boicote. O palestrante do último seminário em pesquisa em psicologia levantou justamente o problema do discurso positivista por trás desta pesquisa, mas rechaçou a idéia de apelar para a Justiça proibir sua realização. Questionou a teoria e os métodos. Baseou-se em opinião e política, mas foi muito além delas. Foi um verdadeiro cientista.