sábado, 20 de março de 2010

Um pouco de epistemologia

Ainda inspirado pela última aula de Introdução à Sociologia, venho escrever mais um post. Além de tudo que escrevi no texto anterior, o professor também fez um rápido comentário sobre o que eu poderia chamar aqui de "a natureza filosófica da ciência". Ele não utilizou estes termos, e apenas falou superficialmente a respeito disso, pois estava mais interessado em seguir com seu programa de ensino (o que é muito compreensível). Eu, por outro lado, acho esse assunto fascinante, e como não tenho que seguir programa nenhum (exceto o de atualizar isso aqui de tempos em tempos), vou expandir um pouco a discussão a respeito deste assunto.

Por "natureza filosófica da ciência", refiro-me à sua essência - o que é mais central e importante no processo científico? Em outras palavras, qual seria a melhor maneira de descrevê-lo? Segundo o meu professor, a ciência é, mais do que qualquer outra coisa, a procura e correção dos erros em nossas formulações científicas, e não a "busca pela Verdade", como pessoas mais idealistas poderiam imaginar. Essa definição de ciência é velha conhecida minha, que conheço desde meu segundo semestre de faculdade, e é tão familiar que achei graça em pensar que provavelmente eu era o único naquela sala que sabia de onde ela saiu. Essa definição foi dada por Karl Popper, considerado por muitos o maior filósofo da ciência do século XX, e pai do falsificacionismo. Segundo esta escola de pensamento, para que uma teoria seja verdadeiramente científica, ela deve ser passível de ser "falseada". Com isso, Popper queria dizer que ela poderia ser provada falsa através da experiência. Por exemplo, a afirmação "todos os cisnes são brancos" é científica, por que podemos testá-la empiricamente (na prática), buscando por todo mundo cisnes que não são brancos. Se eu encontrar um só cisne cuja plumagem seja de outra cor, como preto, cinza ou vermelho, a teoria de que todos os cisnes são brancos terá sido derrubada, e necessariamente terá que ser substituída por outra, mais adequada, como "a maioria dos cisnes são brancos"*.

Assim sendo, a ciência não estaria buscando a verdade, mas sim corrigindo os erros em suas hipóteses. O professor sentiu-se muito tranquilo em dizer na aula que "se vocês ouvirem alguém dizer que a ciência busca a Verdade, podem dizer que isso é bobagem". Obviamente, eu não concordo com isso, por que, se concordasse, não estaria escrevendo outro texto a respeito disso no meu blog**. O que me leva a discordar são os pressupostos por trás de tal afirmação. Popper, por mais importante que tenha sido para a Filosofia da Ciência, e por mais inovador que tenha sido neste campo, sempre foi um racionalista, isto é, alguém que acredita que todos os problemas da humanidade (sejam eles abstratos ou concretos, relevantes ou irrelevantes) podem ser resolvidos através do pensamento racional apenas. Talvez os racionalistas de hoje pensem diferente, mas, na época de Popper, isto significa que todas as outras manifestações humanas, como sentimentos, intuições e pensamentos irracionais deveriam ser mantidos de fora do processo de descoberta científica, por não serem estritamente lógicos. Entretanto, toda busca humana, não importa qual seja ela, é fundada em um princípio absolutamente não racional: a fé. Muitos cientistas e teóricos importantes no passado fizeram afirmações negativas a respeito da fé, dizendo desde que ela é uma incomodação até que ela é uma praga da qual a humanidade deverá se livrar um dia, e muitos outros agiram nesse sentido, entre os quais se incluem Popper. 

Só que, no fim das contas, não há como fugir da fé. Como eu mesmo disse antes, os racionalistas acreditam no pensamento racional. Como eles justificam essa crença? Por que é racional? Sinto muito, mas não é possível fundamentar toda a ciência e seus frutos em uma falácia como este argumento circular (ou petição de princípio, como os filósofos preferem chamar). Assim sendo, por mais que a desprezemos ou ignoremos, sempre voltamos à fé - uma crença absoluta, que não precisa nem pode ser justificada racionalmente, e na qual só nos resta acreditar. Os ateus modernos como Richard Dawkins entraram em uma campanha para derrubar a fé e substituí-la pela ciência racional, porém tudo que conseguiram fazer é criar uma nova fé, em volta de um novo ídolo. Por isso, mesmo que o processo científico consista na procura e na correção de erros, isto é apenas parte dela, por que, para envolver-se em tal empreitada, é necessário que tenhamos, no mínimo, o ideal de aproximarmos cada vez mais da Verdade. Talvez, poderia se argumentar, que tal Verdade, com V maiúsculo e absoluta, não exista, ou que esteja além do alcance dos seres humanos, e talvez tal argumento seja correto. Mesmo assim, não fazemos ciência por que concluímos racionalmente que é o melhor curso de ação a se tomar, e sim por que buscamos algo mais sólido e profundo no universo.














* Há muitas outras implicações e corolários da escola popperiana de pensamento, como a força das teorias, mas não acho que este seja o post para falar delas.

** Eu poderia ter discordado do professor no mesmo momento que ele falou isso, porém, como eu não queria criar uma discussão epistemológica de proporções épicas e jogar o cronograma dele pela privada, preferi ficar quietinho no meu canto e vir chorar aqui na minha própria "cuddle box".