terça-feira, 31 de março de 2009

As Histórias da Expedição Austral (Parte I)

I. O Chamado da Estrada


O ser humano é uma criatura nômade. Mesmo que durante gerações tenhamos vivido vidas sedentárias, e mesmo que a esmagadora maioria de nossa raça viva assim até o fim dos tempos, sempre teremos em nossos corações o desejo de jogar tudo para o alto e ir para onde o vento soprar ou o sol brilhar. Pode ser que este desejo tenha embotado e quase desaparecido na maioria dos homens e mulheres de hoje, e que pareça muito mais razoável viver confortavelmente toda sua existência em um apartamento bem mobiliado e com uma despensa cheia. Talvez realmente seja. Contudo, não foi com confortos e facilidades que o Homo sapiens tornou-se o mamífero mais bem sucedido do planeta* – foi através do frio cortante, do calor infernal, da fome e da sede que nossa habilidade de sobrevivência tornou-se forte o suficiente para transformarmos o ambiente em nosso favor. Nós, representantes da orgulhosa classe média, podemos até fingir que é assim que sempre se viveu, em meio a preocupações com o mercado de trabalho e a bolsa de valores, com a importância de salários gordos e aposentadorias bem planejadas. Sim, podemos, mas qualquer um que seja honesto o suficiente precisa admitir que, no fundo, isso é tudo ilusão, e que somos animais da estepe, sempre errantes, e sempre haverá alguns poucos viventes que, impulsionados por este desejo, vivem pelos caminhos, livres de quaisquer raízes que os prendam a um pedaço de chão por muito tempo, lembrando-nos, muitas vezes horrorizados, de nossas origens andantes.

Não quero com esta descrição idealizá-los, dando a entender que são todos a fina flor de nossa cultura, elevados em pensamentos e nobres em atos, pois isso seria ingênuo da minha parte. Muitos deles são como o capitão Rodrigo Severo Cambará, personagem da imortal obra “O Tempo e o Vento” de Érico Verissimo. Rodrigo Cambará era um homem que viveu sua vida com uma forte labareda de fogo, brilhando forte porém brevemente, apaixonando-se por muitas terras, muitas mulheres, amando-as com intensidade mas abandonando-as, de uma forma outra, no final, pois a vontade de desbravar o mundo era forte demais para um ser tão inconseqüente e dominado pelos próprios instintos selvagens controlar. Alguns poucos talvez sejam como o gentil monge shaolin Kwai Chang Caine, personagem do seriado “Kung Fu” e encarnado por David Carradine, que caminhava só pelas vastas terras do Oeste americano, protegendo os fracos, consolando os desamparados e espalhando o infinito amor de quem dominou a si mesmo e segue o Tao – o Caminho, ou como Chris McCandless, um jovem norteamericano que abandonou casa, família, amigos e foi realizar seu sonho de viver errante pelo país e de morar no meio da natureza no gelado Alaska, onde acabou morrendo. Eles podem ser muito diferentes uns do outros, mas ainda compartilham muitas características que me fazem admirá-los.

Por que os admiro? Faz muito tempo que admiro viajantes sem saber explicar por que. Por mais que cite exemplos de nômades que estimo e enumere suas qualidades, sou incapaz de dar um motivo racional para achá-los tão impressionantes, pois simplesmente os admiro. Talvez eu os entenda, saiba intuitivamente o que se passou em seus corações diante dos desafios que a estrada os impôs e as glórias com que os recompensou, e quisesse ardentemente viver como eles viveram. Porém, sendo fraco demais para tirar os sapatos, jogar tudo para o alto e sentir o chão, restava-me esta admiração por seus feitos. Pode parecer um débil paliativo, satisfazer este desejo de correr pelo mundo através de relatos alheios, mas foi a distante luz na escuridão que me motivou a preparar-me para, um dia, fazer isto de verdade. Treinei meu corpo e minha mente, tornando-me cada vez mais forte e confiante, e me aproximando gradativamente desta vida aventureira. Comecei aos poucos, com os pequenos passos que podia dar. O primeiro de maior significância foi minha Jornada Escoteira de 1ª Classe, aos 14 anos. Claro, pensando retrospectivamente, eu não corri nenhum risco sério, pois havia toda uma equipe oculta de chefes cuidando de nossos passos, porém não sabíamos disso naqueles belos dias de caminhada, e todas as decisões que tomamos foram feitas por nós, como se estivéssemos absolutamente sozinhos naqueles caminhos entre Vila Seca e Fazenda Souza. Lembro-me até hoje de como foi voltar para a minha tropa, para junto dos demais companheiros. Sentia-me distante daqueles que não tinham feito a jornada, como se fosse capaz de enxergar algo que eram incapazes de ver, e mais próximo de todos aqueles que trilharam o mesmo caminho que eu em tempos passados, mesmo os desconhecidos. Como disse meu pai na carta que ele me escreveu para aquela ocasião, saí de casa um menino, mas voltei um homem. Estava transformado.

O segundo passo significativo foi ter mudado de escola, do pequeno e aconchegante Raio de Luz (é, nome de creche), onde conheci quase todos os meus amigos de infância para o colossal e hostil São José, onde não passava de mais um pivete potencialmente problemático. Os três solitários anos que passei lá foram talvez os mais sombrios de toda minha vida, mas nenhuma outra prova de fogo me preparou tão bem para os desafios que o universo me imporia. Encarei a solidão, provei de sua força e tornei-me um com ela. Depois de me formar no Ensino Médio pelo São José, dei não um passo, mas um grande salto: viajei para os Estados Unidos como intercambista, e lá morei por cinco meses, longe de tudo aquilo que chamava de casa, e tornei-me ainda mais forte. Ainda antes de retornar ao lar, tornou-se óbvio que Caxias do Sul tornara-se uma cidade por demais estreita para mim, e que precisava de um novo horizonte. Assim sendo, fiz vestibular para Psicologia na UFRGS, passei e me mudei para Porto Alegre. A vida da capital e da faculdade me permitiram mais e mais pequenos passos – encontros estudantis em São Lourenço do Sul, Curitiba, Passo Fundo, Campo Grande, Buenos Aires e várias outras oportunidades que, se não me levaram longe, pelo menos me trouxeram experiência e confiança. Contudo, em todos estes vôos que dei, por mais corajosos que fossem, eu ainda estava acompanhado por muitas pessoas. Não acho isso ruim, mas, se algo desse muito errado, eu sempre poderia apelar para elas. Restava uma última prova: viajar não em um grande grupo, mas por conta própria, e depender apenas dos meus próprios recursos.

E a hora de responder a este desafio um dia chegou numa conversa pelo MSN. Falava com o Marcelo sobre alguma coisa qualquer, quando ele me perguntou, naquele seu jeito extremamente objetivo: “cara, quero viajar para a Patagônia nessas férias, mas preciso de alguém para ir comigo. Quer vir junto?” Eis que a estrada me chamava! Aceitei, e daquele momento em diante, todas as vezes que nos encontrávamos na faculdade ou na internet, nosso assunto principal era essa viagem, por ele batizada de “Expedição Austral”. Precisávamos nos preparar, mesmo sem saber exatamente como ou para o quê. Marcelo, outro aventureiro, já tinha alguma experiência em viagens, pois já tinha ido atravessado a Bolívia e o Peru e conhecido as ruínas de Machu Picchu, e tinha alguma noção do que nos esperava naquelas terras do extremo sul do continente, mas, como eu, nunca antes tinha empreendido aventura tão audaciosa. Viajaríamos sem veículo próprio e com pouco dinheiro. Estas contingências afetariam toda a expedição, e precisávamos nos preparar de acordo: procuramos rotas para seguir, lugares para visitar, lugares para dormir, quais equipamentos levar, cuidados para se tomar. Chegamos à conclusão que viajaríamos bastante de ônibus entre cidades, dormiríamos em campings, cozinharíamos nossa própria comida e que um excelente preparo físico era um imperativo categórico se quiséssemos aproveitar a viagem. Como descobrimos ao longo do caminho, estávamos relativamente certos em nossos pressupostos, mas terrivelmente ignorantes da magnitude dos problemas à nossa frente.

Montamos nosso equipamento da melhor maneira possível com base nas informações coletadas pela internet, especialmente no fórum Mochileiros: encomendamos uma barraca especial pensando nos fortes ventos patagônicos, separamos nossas roupas e ferramentas mais adequadas, compramos uma pequena panela pequena, arranjamos um fogareiro emprestado e até mesmo fizemos um “blitzkurs” (curso relâmpago) de culinária guerrilheira com uma tia do Marcelo, que em sua juventude também desbravou o mundo, para que soubéssemos como fazer comida em condições adversas. Todas estas providências, por mais importantes que tenham sido, em algum momento da viagem provaram-se inúteis ou mesmo pegadinhas de Deus ou algum espírito primordial com nossa inocência. Mas, no momento, estou falando dos dias antes da Expedição começar de fato, e por isso deixarei a descrição destes acontecimentos mais para a frente.

Há outra parte do equipamento que levamos para a Expedição que, mesmo não sendo diretamente ligado à nossa sobrevivência, provou ser de extrema importância em nossas andanças: nossos livros e diários. Como intelectuais que somos, parecia-nos inconcebível nos metermos em uma viagem cuja duração estava estimada em no mínimo três semanas sem ter absolutamente nada para lermos, e muito menos deixar de registrar os fatos e sentimentos de tamanha empreitada. Por isso, antes de partirmos dedicamos especial atenção as coisas que leríamos e onde escreveríamos. Marcelo, mais focado e decidido, levou um só, porém gigantesco livro, enquanto eu, mais impulsivo e indeciso, levei quatro livros menores, mas que no final das contas acabavam pesando tanto quanto a escolha de Marcelo. Nós dois acreditávamos que seria estúpido lermos algo que em nada acrescentassem à Expedição, e por isso, escolhemos cuidadosamente estes livros. Marcelo levou a edição completa de “Dom Quixote”, de Cervantes a história do cavaleiro da triste figura, enquanto eu levei “A Morte de Ivan Ilitch” de Tolstoi, “Get Out of Your Mind and Into Your Life” de Steven Hayes, “O Caminho da Egoência” de Ramon Muñoz Soller e “A Filosofia Perene” de Aldous Huxley. Não posso dizer ao certo o que levou Marcelo a escolher aquele livro e não qualquer outro (apesar de ter boas hipóteses a respeito). Posso, porém, explicar o que motivou as minhas escolhas. Sentia que esta viagem seria uma grande revolução espiritual para mim, e que o que quer eu lesse influenciaria como ela se daria. Desde o início sabia que queria ter comigo “O Caminho da Egoência”, por causa do forte impacto que causara em mim. O mesmo se passou com “A Filosofia Perene”, cuja ilustração da capa (uma serpente mordendo a própria cauda) impressionou-me ainda criança. “A Morte de Ivan Ilitch” decidi levar um pouco por acaso, depois de tê-lo encontrado jogado às traças num armário em Caxias do Sul, e “Get Out...” levei mais por insistência paterna do que qualquer outra coisa. Foram escolhidos de forma aleatória e discrepante, mas nunca poderia ter conscientemente pego livros que se complementassem de forma tão harmoniosa. Quanto às nossas ferramentas de escrita, também diferimos, Marcelo e eu: ele levou um diário com capa de couro com seu nome gravado, encomendado à muito tempo, enquanto eu fui com um caderno de capa dura da “Lazy Town”, comprado na semana antes de partirmos.

Assim foram indo as coisas até que chegou o dia da viagem. Em 9 de dezembro de 2008, sairíamos de Porto Alegre em direção à Buenos Aires, em um ônibus da empresa Flechabus. Participaríamos do 7º Congresso Internacional de Saúde Mental e Direitos Humanos da Universidade Popular das Madres da Praça de Maio, junto com cerca de 80 colegas nossos, que viajavam em excursão organizada pelo Diretório Acadêmico de nosso curso. Viajávamos em separado principalmente por motivos burocráticos, pois, caso fossemos com eles, teríamos que voltar com eles, o que não estava em nossos planos, mas também por um desejo de individualidade, de não nos perdermos naquela multidão que estava mais interessada em beber Quilmes do que ir ao congresso ou mesmo conhecer a capital argentina.

Com cuidado, revisei minha mochila pela última vez em casa, e pus-me a caminhar rumo à rodoviária. Poderia ter ido de ônibus, mas dispunha de tempo de sobra e queria saber na prática como seria carregar minha vida nas costas junto com o peso de nossa barraca. Fiz questão, como última despedida, de passar em minha academia de Kung Fu, pois se não o fizesse, ficaria com a sensação de ter deixado algo muito importante para trás. Respirei o ar tranqüilo daquele santuário, observei o treino como se fosse nunca mais fosse ver algo parecido em minha vida, abracei os professores e pus-me novamente a andar. Meus ombros doíam por causa do peso excessivo em minha mochila, mas sabia que precisava me acostumar com esta dor. Depois de chegar na rodoviária e encontrar o Marcelo, esperamos ainda uma hora antes que nosso ônibus, atrasado, aparecesse. Talvez esse atraso tenha sido uma mensagem do universo – ainda era tempo de ir embora, pegar um táxi e voltar para casa, desistir daquela loucura toda, pois a partir do momento que entrássemos no ônibus, seguiríamos invariavelmente rumo a desafios que nunca antes tínhamos enfrentado. Talvez aquele fosse o momento perfeito para colocar o rabo entre as pernas e fugir, mas nenhum de nós dois sequer pensou nisso.

Colocamos nossas mochilas no bagageiro e ocupamos nossos lugares. Não havia mais retorno. Já estávamos na estrada.





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* Junto com os pequenos roedores que comem as porcarias que deixamos por aí e os animais de estimação e de fazenda, mas esse não é um post sobre biologia ou teoria da evolução.