sábado, 5 de julho de 2008

Escola do Destino

Nesta madrugada de ansiedade e insônia voluntária, acabei olhando fotos antigas no perfil de alguns amigos igualmente velhos. Atiçada pelas poucas imagens documentadas de nosso passado em conjunto, minha memória entrou em funcionamento e trouxe à superfície coisas que eu sabia lembrar, mas estavam escondidas no fundo de um baú.

Todo meu Ensino Fundamental estudei em um colégio - o Raio de Luz, por nós chamado de "RdL", "Nominho Vergonhoso" ou pelo amável apelido de "Rego de Pus". Pelo menos no meu tempo, era uma escola pequena, onde todos conheciam todos. Era impossível que fosse de outra maneira, já que só havia uma turma por série e o pátio era pequeno demais para não esbarrar com a escola inteira. Minha turma foi praticamente sempre a mesma; claro, muita gente saiu, foi para outros colégios, mas as pessoas com quem mais me relacionava se mantiveram estáveis até o fim, na oitava série. Nos conhecíamos muito bem, sabíamos como cada um reagiria e, principalmente, nos víamos todos os dias. Quando nos formamos do Ensino Fundamental, tivemos que trocar de escola, e consequentemente nos separar. Meus amigos foram para uma escola técnica vinculada à Universidade de Caxias do Sul, o CETEC, e eu fui para o Colégio São José, por ser mais perto de casa e ser famoso pela qualidade de seu ensino.

Foi uma mudança tremenda. No Raio de Luz, estava sempre acompanhado pelos meus amigos, em solo firme. O momento de maior tensão de minha semana escolar eram as aulas de Educação Física - nem sempre fui o atleta que sou, especialmente quando era mais novo, e sentia vergonha das minhas parcas habilidades esportivas. Além disso, tínhamos aulas com outra turma. Exceto na oitava e última série, essa turma era sempre mais velha, e eu tinha um medo tremendo de que eles avacalhassem comigo e me envergonhassem perante os outros. Mas tínhamos menos de três horas semanais de Educação Física, e no resto do tempo eu podia muito bem me esconder na sala ou atrás dos meus amigos e estava tudo bem.

No São José esta segurança desapareceu. Não tinha ninguém comigo em quem me apoiar, e a vergonha que sentia apenas duas vezes por semana no RdL tornou-se diária. Como passei 8 anos com as mesmas pessoas, convivendo com as manias delas e elas convivendo com as minhas, não tinha muita noção do que poderia ser considerado estranho, ridículo ou absurdo pelos meus novos colegas. Por exemplo, eu realmente não me importava com o estado dos meus cabelos: se estavam penteados, limpos ou apresentáveis. No Ensino Fundamental isso era irrelevante, mas no Ensino Médio, a porta para o mundo adulto, isso contava muito. Até a oitava série eu fui criança, mas depois disto, tive que conviver com pessoas que não o eram desde muito tempo antes do Primeiro Ano do Ensino Médio.

As diferenças não ficavam apenas nos colegas, mas abarcava a própria escola. Enquanto que no Raio de Luz até mesmo a diretora conhecia todos os alunos pelo primeiro nome, no São José a diretora só era chamada nas mais urgentes situações, e mesmo a coordenadora do Serviço de Orientação Escolar (SOE, por mim chamado carinhosamente de GESTAPO das Freiras) só sabia os nomes dos que ela mais via - isto é, os "vidas-tortas" que incomodavam em aula e eram mandados para a temida salinha da Leda Cotonete. A diferença é nítida também se compararmos os prédios. O Raio de Luz, por ser pequeno, não precisava de muito espaço, tendo só três andares de arquitetura muito simples. O São José, por outro lado, era enorme, tendo quase 1500 alunos, 100 anos de história, três andares completos diferentes entre si, um quarto andar dividido entre várias "torres" e câmaras subterrâneas (nunca as invadi, mas já vi o varal que as freiras mantinham em uma destas câmaras). Vagava solitário pelos corredores desta imensidão que ameaçava devorar minha sanidade, e foi ali que forjei de forma definitiva minha alma de Andarilho. A solidão e o deboche alheio foram dolorosos, mas temperaram meu caráter.

Olhando aquelas fotos dos meus colegas, fiquei pensando como teria sido se tivesse ido para o CETEC também. Certamente, teria sido bem mais fácil, socialmente falando, pois já conhecia alguém que confiasse ali. Teria matado mais aulas para ficar conversando, ido em mais festinhas, enchido mais a cara, ficado com mais meninas, seria parte da turma; enfim, todas estas coisas que tanto desejava na época. Mas adolescente é uma criatura idiota, e que só faz o que acha que quer. Pode desejar ser um grande atleta, poeta ou cientista, mas dificilmente faz algo para que isto se torne realidade. O mesmo é válido para mim com 15 anos. Eu teria me perdido no mundo dos prazeres e da frivolidade se tivesse ido para o CETEC ao invés do São José. De nós quatro que saímos do RdL, só eu não repeti de ano, e só eu estudo em uma Universidade Federal - não que isto signifique grandes capacidades intelectuais ou volitivas, mas é sinal de que estudei mais do que os outros.

Se pudesse voltar para o passado e influenciar meus pais quando escolheram me colocar no São José, não mudaria a decisão deles. E minha, pois eu também quis ir para lá, ao invés do CETEC, e foi me dado voto de Minerva nesta questão. Não poderia dizer com certeza por que escolhi o que escolhi. Posso, contudo, imaginar que inconscientemente eu sabia o que fazer, e que queria um desafio à minha altura. Eu venci esse desafio. Se realmente voltasse no tempo, viveria muitas coisas diferentemente, mas nunca mudaria o fato de ter feito meu Ensino Médio no São José, pois foi lá que a pessoa que está aqui agora nasceu.

Argonautas do Asfalto - Prólogo

É tarde, mas não consigo dormir ainda. Ainda faltam muitos preparativos para minha viagem, mesmo que sejam preparativos imaginários. Amanhã de manhã, às 7 horas, embarco em um ônibus de linha para uma viagem de mais de 20 horas para Campo Grande, onde acontecerá o XXI Encontro Nacional dos Estudantes de Psicologia (ENEP). O ENEP foi o primeiro grande encontro de Psicologia de que participei, há quase um ano atrás. Cronologicamente, não faz tanto tempo assim, mas em meu coração parece ter se passado uma vida desde então. Com certeza o Andarilho que vagou para longe da segurança do lar então não é o mesmo que repete o feito agora.

O XX ENEP não foi minha única experiência em encontros em congressos: além dele, já fui em pelo menos outros quatro eventos fora desta zona de conforto que chamo de lar, seja em Porto Alegre ou em Caxias do Sul. Sei o que esperar deste encontro, mas há algo diferente no ar que antecede esta jornada. Nas outras vezes, viajei acompanhado de muitas pessoas - sempre um ônibus cheio de gente barulhenta querendo fazer festa. Amanhã, irei em um ônibus de linha por que nossa valorosa tentativa de fretar um veículo próprio sossobrou por falta de interesse da grande maioria de meus colegas. Apenas eu e mais seis companheiros, tanto da UFRGS quanto da UFCSPA, vão amanhã, contra todas as probabilidades e dificuldades, movidos apenas pelo desejo de participar do ENEP. Apenas nós, argonautas do asfalto, aceitamos o desafio de desbravar estas estradas e rodovias até a capital do Mato Grosso do Sul. Por quê? Não sei.

Meu Orkut diz que "o melhor profeta do futuro é o passado", mas pressinto que, mais uma vez, a página de relacionamentos está errada. Acostumei-me ao conforto de viajar em companhia ruidosa porém presente. Amanhã, enfrentarei um silêncio talvez desconhecido, na viagem mais longa que já empreendi (não a mais distante, entretanto). Posso estar enganado, mas acho que a viagem para Campo Grande será outra Jornada da Alma, onde conhecerei outras pessoas, mas encontrarei a mim mesmo no final.