domingo, 13 de julho de 2008

Argonautas do Asfalto - Parte I

Cheguei ontem de Campo Grande, depois de cinco dias de Encontro Nacional de Estudantes de Psicologia – ENEP. Estou cansado depois de 30 horas dentro de um ônibus, mas a vontade de escrever sobre o que vivi no Mato Grosso do Sul é maior do que o cansaço.

Minha viagem começou muito antes do dia cinco, quando estávamos procurando uma compania de turismo que fretasse um ônibus para irmos de forma mais coletiva e econômica. Se tivesse que resumir todo este trabalho em uma só palavra, esta palavra seria “frustração” – por não acharmos um preço bom, por meus colegas nunca se decidirem e por desistirem de ir na última hora. Por causa de tudo isto (e muitas outras coisas), cogitei a possibilidade de não viajar, ficar em Porto Alegre fazendo o que sempre faço. Mas, o bom Destino tinha outros planos para mim, pois convencido pelo meu pai e pelo Marcelo, decidi que iria para Campo Grande, custasse o que custar. A idéia de ir para o ENEP num ônibus de linha me soava desconfortável, mas ao mesmo tempo extremamente poética, pois apenas os mais determinados dentre nós decidiram enfrentar tamanha jornada, sem esperar por facilidades e mimos. Fomos para Campo Grande não como turistas, mas argonautas modernos, que audaciosamente desbravaram o asfalto entre o Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul. Talvez esteja exagerando um pouco, mas entre nós que viajamos, não há dúvidas de que somos teimosos.

Saímos de Porto Alegre dia 5 de julho de manhã. Levantei, peguei minhas coisas e fui de táxi para a rodoviária. Lá, encontrei Carol, Marcelo e Chico da UFRGS, e Dani, Lucas e Natanael da UFCSPA. “Sete viajantes? Número curioso” pensei “mas aposto que encontraremos um oitavo companheiro durante o caminho”. E lá pelo Paraná, encontramos William, da UNOESC, que viajava sozinho para o ENEP. Estava completo, enfim, nosso pequeno grupo.

A viagem em si foi sem grandes acontecimentos, apenas longa demais. Durante quase todo o trajeto, conversamos bastante, especialmente sobre o que faríamos quando chegássemos em Campo Grande, principalmente por que ninguém de nós fora inteligente o suficiente para anotar o endereço onde o evento ocorreria, e por que já tínhamos que pensar como faríamos para voltar. Entre uma parada e outra, li “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, um livro estranhamente apropriado para a ocasião. Finda a viagem, nos informamos bem onde ficava o estádio Morenão (no campus da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS), e fomos de táxi até lá.

Não há muito que dizer sobre o primeiro dia de ENEP: nos credenciamos, pegamos nossas pulseirinhas de participantes que diziam “Se joga na água CAPIVARA!”, reencontramos velhos amigos, montamos nossas barracas dentro de um ginásio, o Moreninho, e ficamos conversando. Arrumar nossas coisas para dormir fora de casa, seja em um encontro desse tipo, seja num acampamento, é sempre algo fascinante: as pessoas vão se ajeitando, encaixando as barracas e colchões de forma natural, simples, sem conflitos, e dentro de pouco tempo uma colorida cidade nômade se ergue onde antes existia apenas o chão de madeira.

Em encontros de estudante, no primeiro dia geralmente as refeições são por conta dos participantes, e por isso fomos procurar um restaurante ou barzinho legal que servisse alguma coisa comível. Campo Grande, como uma verdadeira cidade do interior (dizer isso para um campo-grandense é pedir para apanhar. Fiz isso várias vezes ao longo do encontro, just for fun), tem o comércio praticamente parado no domingo, e demoramos quase uma hora para encontrar um lugar para comer. Não é algo agradável de se fazer depois de um dia viajando de ônibus.

Geralmente, no primeiro dia de ENEP se faz uma espécie de plenária para decidir o regimento interno do encontro. Em termos práticos, isso quer dizer que se define quanto uma pessoa precisa participar de mesas redondas, oficinas e coisas do gênero para ganhar certificado – algo mui importante, considerando que nos cobram horas complementares em congressos e eventos externos para nos formarmos. Quando participei do XX ENEP, eu era bixo, guri verde, e não sabia que buraco negro de libido são essas plenárias, e participei tanto da primeira quanto da última. Para meu mais profundo sofrimento e desgosto. Está bem, é exagero da minha parte fazer tamanho drama por causa de um negócio tão chato quanto plenárias, mas fui para Campo Grande com a certeza de que só participaria disto se fosse extremamente necessário (e meu conceito de “necessário” é claro e limitado o bastante para que eu participe apenas se um cometa se aproxima da Terra e nossa decisão poderá salvar a humanidade). Mas, como sou uma pessoa tolerante, apareci no local onde se decidiria o regimento interno do encontro. Antes que se decidisse qualquer coisa, aconteceu uma apresentação de Maracatu bastante empolgante. O ritmo e a batida do tambor despertam em mim meu lado mais selvagem, e fiquei imaginando que quando nos levantamos e fomos dançar estávamos preparando nossos espíritos para uma batalha de tribos. E, bem, provavelmente eu não era o melhor guerreiro da tribo, se isto for medido pela ferocidade e ânimo que dançava, pois estava muito travado. Foi divertido mesmo assim.

Depois do Maracatu é que a “plenária” começou. Vi que a coisa não iria prestar quando um cidadão foi reclamar que o local onde ela estava sendo realizada era acadêmica e burguesa demais, e que uma discussão sobre sair para o gramado ou não começou. Depois que eu acordei decidi voltar para o alojamento. Não havia muito o que fazer por lá. Não me lembro como e quando, mas não demorou muito e decidi que iria junto com o Marcelo e a Carol para o show do Nando Reis que aconteceria em outra parte da cidade, no Parque das Nações Indígenas e que seria de graça. Não sou muito fã de shows e grandes aglomerados demográficos, mas senti que deveria ir. No ônibus, guiados pelas berrantes pulseirinhas laranjas, encontramos mais uns “Enepianos” indo para o show. Conversamos com eles e acabamos indo juntos para o show.

O tal Parque das Nações Indígenas, apesar deste nome muito bonito, não é nada indígena: a grama é artificial, as árvores foram plantadas em linha reta e o laguinho do meio provavelmente também não é natural. É bonito, contudo. O palco ficava defronte à um pequeno vale, que estava quase transbordando de gente. Apontei com a mão e disse para meus amigos que aquilo era um abismo de perdição. Falei um pouco por deboche, mas parte de mim falava muito sério.

Gostei do show. Apesar de geralmente preferir músicas gravadas em estúdio, entendo por que tantas pessoas vão ver seus ídolos ao vivo. Há uma energia muito forte no ar que contagia e nos faz pensar e agir de forma diferente. Ainda assim, não consegui deixar de comparar com o ritual “Espadão-Orgião” que Huxley relata em seu livro. Fiquei introspectivo a maior parte do tempo, apenas ouvindo a música e deixando que ela ressoasse dentro de mim. Minhas novas amigas, achando que eu estava simplesmente apático, várias vezes me sacudiram e me fizeram balançar os braços. Depois que me expliquei, elas sentiram-se um pouco culpadas, mas me senti valorizado. Na volta para o alojamento, eu, Marcelo, Dani e William disparamos na frente para pegar o ônibus antes que ele lotasse de gente saindo do show. Conseguimos, mas pegamos o ônibus errado, pois nos deram uma informação equivocada. Faz parte: não poderia visitar Campo Grande sem me perder nela em algum momento.

Em ENEPs, toda noite acontece uma festa. Naquele dia, seria a Festa Junina. Devo abrir um parênteses aqui, e explicar a dinâmica festiva dos encontros estudantis. Todas as festas são temáticas e têm nomes diferentes, mas são todas iguais. Festa à Fantasia? O pessoal põe umas roupas ridículas para dançar funk. TransENEP? Dançar funk travestido. Essa Festa Junina não fugiria à regra. Fui, não sei por que. Logo no ônibus me incomodei. Estava sonolento, e a bêbada mais ruidosa de todo o encontro, conhecida como Chiquinha devido à sua indumentária e penteado, sentou-se justamente no assento na nossa frente. Ela encarrapitou-se no encosto e ficou berrando o tempo todo. Eu não conseguia parar de pensar em como ela era murrinha, mas meus pensamentos ganharam um tom mais homicida depois que ela esfregou a mão na minha cara para me acordar. Se não fosse o Marcelo do meu lado dizendo “olha o social, cara” eu teria tentado jogar ela pela janela, ou pelo menos dado uns tapas nela. Chegando na chácara onde aconteceria a festa, essa mesma cachaceira me agarra e me puxa para dançar. Tudo devidamente documentado em imagens pelo meu mui amigo Marcelo. Desvencilhei-me dela assim que foi possível. Descobri que danço melhor do que lembrava, tanto que nem parecia que eu não fazia menor idéia do que estava fazendo.

Foi agradável por um tempo, mas chegou um ponto que tornou-se impossível para mim até mesmo ficar ali onde todas as pessoas estavam. Numa mímica perversa do show do Nando Reis, a música fustigava e feria meus ouvidos, e cada segundo debaixo daquele teto era uma tortura. Várias vezes corri para longe, para logo em seguida voltar e correr novamente, até que chegou o momento em que nenhum lugar ela longe o suficiente daquele barulho infernal. Quando o DJ baixou o volume levemente e um homem gritou “pô DJ!” percebi que aquilo não era para mim. Mais do que isso: toda minha existência é incompatível com este estilo de vida, este tipo de festa. Fiquei mais do que feliz em voltar para o alojamento.

I'm Back in Black

Voltei ontem de Campo Grande, depois de uma viagem assustadoramente longa mas muito bem acompanhada, seja por amigos ou memórias. Pretendo, dentro em breve, publicar um texto sobre minhas experiências por lá.