sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Trinta minutos

Depois de mais um longo dia de trabalho, Rogério entra em seu carro, para iniciar a jornada de retorno ao lar. Como se estivesse num ritual, ele tira a gravata, desabotoa a camisa, coloca a chave na ignição, sente o volante com as mãos e o assento com as costas, para só então ligar o motor e sair de sua vaga no estacionamento. Assim, ele lentamente prepara tanto seu corpo quanto sua mente para os trinta minutos de viagem pela frente - não por que a viagem fosse especialmente sofrida ou exigente. Na verdade, ele fazia todas estas preparações por que aqueles trinta minutos seriam os únicos em todo o seu dia em que ele se sentiria realmente feliz, e queria aproveitá-los ao máximo.

De forma tão ordenada quanto seu ritual, e de forma tão determinada quanto a estrada que o leva para casa, seus pensamentos também seguem o mesmo caminho de sempre, o mesmo caminho de todos os dias. Quando se senta dentro do carro e começa a tirar a gravata, Rogério pensa "que dia longo e cansativo." Quando desabotoa a camisa, ele volta sua atenção para seu pescoço, e, outra vez, percebe que ele está dolorido. Ao colocar a chave na ignição e sentir o volante em suas mãos, ele checa a quantidade de gasolina no tanque, e recapitula as últimas visitas que fizera ao mecânico. Finalmente, ele joga suas costas contra o assento, vira a chave na ignição e parte do seu local de trabalho. Finalmente, por que este é o ponto alto de seu dia. Na curta distância entre sua vaga no estacionamento e o portão de saída, Rogério é um Buda Iluminado, imperturbado e imperturbável - nenhum pensamento lhe constrange, nenhuma emoção o afeta, nenhuma sensação o altera. Este momento, porém, é curto, e assim que ele se vê de novo na mesma autoestrada que vê todos os dias, tanto indo, quanto voltando de casa, ele é outra vez visitado por um velho companheiro. Pelos primeiros dois ou três quilômetros, Rogério finge que seu amigo não está ali, diz para si mesmo que é perda de tempo gastar sua energia pensando nisso, coloca alguma música para tocar no rádio, cantarola para si. Seu companheiro, contudo, é persistente, e permanece ali, sussurrando no ouvido de Rogério, lembrando-o de que ele ainda está ali, juntinho dele, e que não irá a lugar nenhum nos próximos trinta minutos.

No quarto ou quinto quilômetro, quando percebe que não conseguirá fazer seu amigo ir embora, Rogério se resigna. Normalmente, isto acontece quando ele passa por aquela árvore engraçada na beira da estrada. A árvore não era tão engraçada assim - se Rogério tivesse a mostrado para outra pessoa, ela provavelmente perguntaria "o que essa árvore tem de especial?" Nada, ele diria. Nada que os outros possam ver, pelo menos. O que aquela árvore tinha de engraçado, de especial, era que ela lembrava Rogério de tempos mais leves, mais felizes. Era aquele eucalipto que ficava do lado do prédio de salas de aula de sua antiga faculdade em Porto Alegre, onde ele e seus amigos tantas vezes se apoiaram e tomaram chimarrão, dormiram sob sua sombra, conversaram, riram e até mesmo choraram. Geralmente, eram essas lembranças que faziam Rogério resignar-se com a companhia que tinha para a viagem, e a conversar com ele.

Este companheiro, como a coisa engraçada da árvore, não era nada que outras pessoas poderiam ver - era etéreo, e acessível apenas para Rogério. Ele o chamava de vários nomes; normalmente, tentando diminuir seu tamanho dentro do carro, ele o chamava de "meu superego", e fazia algumas piadas sobre o duvidoso estatuto científico da psicanálise; outras, quando ele estava com dor de cabeça, ele o chamava de "essa idéia outra vez", para poupar trabalho de pensar a respeito. Porém, quando ele estava mais lúcido, e via o mundo ao seu redor com mais clareza, o nome que ele dava para o seu companheiro era o mais simples, e o mais contundente. Nesses dias, ele o chamava de "Minha Pergunta."

Sim, sua pergunta, por que do sexto quilômetro da viagem em diante, ele tentava de algum jeito responder à pergunta que seu companheiro, tão execrado e ainda assim tão querido, lhe fazia: "por que eu ainda estou aqui?"

Nesses dias, pelo menos naquele trecho do espaço e tempo, Rogério deixava junto de sua gravata todas as as suas defesas, suas desculpas e seus temores, fazia um balanço geral de sua vida e chegava à uma conclusão, a mesma de sempre, e jurava para si próprio que, com base nessa conclusão, ele mudaria tudo em sua vida. Contudo, essa forte resolução sumia no momento em que ele, já fora do carro e dentro de sua casa, escutava a voz de sua mulher, Dóris. Por ela, Rogério abandonou toda sua vida prévia: sua família, seus amigos, seu emprego e sua cidade, tudo para ir morar com ela. Era a Dóris quem ele culpava por se encontrar em tão miserável situação e, paradoxalmente, era por causa dela que ele não fazia absolutamente nada para mudar.

A ironia não passa desapercebida de Rogério nesses dias, por que, nesses dias, sem nenhum véu a cobrir seus olhos, ele vê as suas fraquezas pessoais expostas, e o preço que ele paga por evitá-las. Com as mãos no volante, ele sabe que sua coragem vai desaparecer quando tirar o pé do acelerador e colocá-lo no chão de sua garagem, que sua raiva se transformará em contida resignação, e o grito de dor entalado na garganta será suprimido para poder dizer, sem nenhum tremor que o denuncie, "oi amor, como foi seu dia?" para sua mulher. Ele sabe de tudo isso, e portanto, deseja ainda mais aproveitar os trinta minutos de liberdade que tem entre a escravidão apática de seu emprego e o doce cárcere da paixão que tem em seu lar.

"Por que eu ainda estou aqui?" Rogério se pergunta, e encontra muitas maneiras de responder à esta questão. Primeiro, como bom intelectual, ele faz uma retomada histórica, explicando cronologicamente como chegara ali. Recorda os primeiros meses de faculdade, as primeiras baladas, as primeiras bebedeiras, os primeiros beijos. Sem se deter na nostalgia dos detalhes, ele lembra como e quando encontrou Dóris pela primeira vez. De saia branca nos joelhos, sapatilha preta e gel nos longos cabelos castanhos, ela ia para uma festa, a mesma que Rogério iria. Alguma coisa nela chamou sua atenção, e, do mesmo modo, algo nele chamou a atenção dela. Não demorou muito para que na festa ambos se procurassem e se agarrassem com desejo. Entre um beijo demorado e outro, conversavam bastante. Percebiam que tinham muito em comum, e que simpatizavam muito um com outro por serem tão parecidos. Com a distância do tempo e a clareza da estrada, Rogério acompanha, como quem relê um romance, a meteórica paixão que nasceu naquela festa. Ele, moço e inexperiente, nunca tinha tido um "relacionamento sério" antes, e não sabia exatamente o que fazer com um. Ela tampouco tinha experiência nessa seara, mas tinha muitas idéias sobre como um "relacionamento sério" deveria ser. Aqui, Rogério pega um cigarro e começa a fumar, por que aqui ele percebe onde as coisas começaram a dar errado.

Com nicotina no sangue, Rogério vai mais rápido em sua análise. Lembra como Dóris era romântica, e assistia a todos aqueles filmes água com açúcar que lhe davam sono, de tão previsíveis que eram. Lembra do dia em que ela, muito séria, veio lhe dizer que se mudaria para muito longe com sua família, e queria saber se ele continuaria a amando. Ele, atordoado pela notícia, ficou sem palavras. Gostava dela tanto assim? Manteria o namoro como ela queria? Enquanto recorda das lágrimas nos olhos de Dóris quando lhe disse naquele dia que não sabia, Rogério olha outra vez para o medidor de gasolina. "Quase vazio" diz para si mesmo de forma mecânica. Na verdade, o tanque está pela metade, o que daria para fazer aquele trajeto pelo menos umas sete ou oito vezes mais. Entretanto, parar no posto de gasolina logo em frente lhe acrescentaria mais quatro ou cinco minutos ao tempo total de viagem. Seriam mais quatro ou cinco minutos de liberdade, de solidão, para aproveitar a súbita lucidez que tomou conta de seu cérebro.

Pára o carro, desce e vai até a lojinha do posto pra comprar balas de hortelã enquanto o frentista enche o tanque. Faz um esforço pra lembrar onde havia parado. Sim, as lágrimas de Dóris. Sempre que ela chorava, ele cedia e fazia o que ela pedia. Não apenas as lágrimas, mas as acusações também o sensibilizavam tremendamente, especialmente insultos como "seu insensível" e "você é frio." Foi assim que o relacionamento se manteve, por cinco anos, à distância - todas as vezes que Rogério manifestava estar descontente, Dóris acusava-o de querer traí-la, de não amá-la, de ser frio e insensível. Ele se rendia, e então, ela voltava a ser a criatura amável de sempre, e fazia planos de irem morar juntos, casarem, terem filhos, envelhecerem juntos e serem felizes para sempre. Por algum motivo que ele não sabia explicar, Rogério detestava estas conversas. "Papo Conto de Fada", ele os chamava, mas apenas para si, por que temia enfurecer Dóris, caso ela percebesse a nota de desprezo que poderia aparecer em sua voz. Não é que ele não gostasse de Dóris - na maior parte do tempo, ela era uma garota bastante do seu agrado: atraente, sorria com freqüência, amante fogosa e com uma conversa razoável. Aqui, enquanto fumava mais um cigarro, e esperava o frentista lavar o parabrisa, Rogério encontrou a resposta para sua pergunta: eu ainda estou aqui por causa de Dóris.

Será que eu amo ela? Ele se perguntou, mas não, não era essa a pergunta que lhe incomodava. Ainda hoje, ele sabia que gostava de Dóris, e que era um homem de sorte por ter se casado com ela. O que ele não sabia era: valeu à pena vir até aqui?

Com as mãos outra vez firmes no volante, ele recapitula o último ano. Faltando um ano para sua formatura, Dóris lhe telefonou para lhe dar as boas novas: tinha conseguido um emprego longe da casa dos pais, e queria que ele se mudasse com ela. Rogério, já sabendo que se dissesse "não sei", ou qualquer outra coisa que indicasse hesitação, faria Dóris chorar, aceitou o convite. Pediu transferência na faculdade e conseguiu também um emprego próximo do de Dóris, deixando para trás toda sua história.

Faltando quinze minutos para estacionar seu carro em casa, ele chega à velha e temida conclusão de sempre: valeu à pena? Não, não valeu, ele responde para si sem hesitar. Seu trabalho atual era, na melhor das hipóteses, medíocre. A cidade onde moravam era morta e o relacionamento caminhava para destino similar. Rogério sabia que, passadas os primeiros momentos de carinho, Dóris o encheria de perguntas - por que demorou tanto? Por que olhou para a vizinha? Por que ele quase não conversava mais com ela? Dependendo da resposta que desse, e do humor de Dóris nesse dia, ele sabia que ela choraria, e ele outra vez cederia ao seu pranto. Vale à pena?

E eu, pergunta Rogério, com raiva. E eu? Como fico? Todos os planos que abandonei para ficar com ela, neste fim de mundo? É assim que ela retribui meu amor? Nunca sou o bastante, e, ao mesmo tempo, não posso viver minha vida sem que ela chore e implore por mim! É isso que eu quero para mim?

Falta agora apenas um quilômetro para Rogério chegar em casa. Três minutos, quatro talvez, antes dele chegar em casa. Era pouco tempo, e uma eternidade ao mesmo tempo. Mais uma vez, ele encontrou a resposta que seu companheiro queria - ir embora, isso era o que Rogério mais desejava. Teria ele coragem de dizer isso para Dóris, depois de tanto tempo? Deveria ele aproveitar o a distância que ainda tem para tentar uma fuga alucinada pela cidade? Não, não, já não há mais como: o portão da garagem já está aberto, e ele entra com o carro, da mesma maneira que sempre entrou. Será que, dessa vez, acontecerá o mesmo que sempre acontece quando ele entrar em casa?

domingo, 31 de julho de 2011

Utopias (9)

Mais uma utopia anarquista: bolo'bolo! Junto com "Zonas Autônomas" de Hakim Bey, este livrinho, escrito por alguém que se identifica apenas por PM (Polícia Militar?) é, na minha opinião, uma das mais interessantes contribuições da teoria anarquista à mudança social.

Apesar de aparentar ser mais um panfleto ideológico, "Bolo'bolo" é um trabalho bastante sólido, um daqueles textos que dá pra perceber que o autor estudou bastante para criá-lo. Diferente de "Zonas Autônomas" e "Utopias Piratas", "Bolo'bolo" não é empiricamente embasado, pelo menos não de forma direta. É bem provável que as propostas do livro tenham sido postas em prática em algum lugar do mundo, considerando que ele é bastante popular entre os anarquistas e outras correntes políticas mais underground, mas não sei dizer se o livro em si foi escrito com base em alguma experiência do autor. Em todo caso, PM cita diversas fontes da biologia e da psicologia evolucionista para justificar seu modelo de utopia.

E em que consiste este modelo? De longe, é a proposta mais simples de todas as que eu já li. Basicamente, PM propõe uma mudança na maneira como vivemos nossas relações sociais. Ao invés de nos mantermos dependentes de alguma estrutura externa e impessoal, como o Capital, o Estado e o Mercado, nós deveríamos fazer com que todas as nossas relações sejam diretas e pessoais. No mundo ideal de PM, não existiria nenhum princípio centralizador como o governo para dizer o que as pessoas podem ou não podem fazer - dentro do limite razoável, tudo seria possível. "OK", você deve estar pensando "esse cara é o Rei do Óbvio. Todo mundo quer isso! Como é que ele espera conseguir isso?" É uma boa pergunta, e uma que eu fico muito feliz em poder responder: mudando toda nossa rede social. PM sugere, como alternativa às cidades superlotadas, desagradáveis e estressantes de hoje, que vivamos em bolos, comunidades intencionais e autossuficientes energeticamente de até 500 pessoas. Este número, ele justifica, é pequeno o bastante para que conheçamos todos os nossos vizinhos pessoal e diretamente, e grande o suficiente para ainda para podermos escolher com quem desejamos conviver. Cada bolo seria independente dos demais, ainda que possa estabelecer relações de amizade e parceiria com seus vizinhos próximos (e mesmo bem distantes).

Bolo'bolo significa, ao mesmo tempo, o plural de bolo e o estado político mundial que PM espera estabelecer, onde a unidade política mais importante é a comunidade intencional de até 500 pessoas. Aliás, preciso explicar algumas coisas sobre a "língua universal" que ele propõe. Para o autor, cada bolo deve ser tão autônomo e autodeterminado quanto possível, e isso inclui a sua linguagem. Só por que dois bolos estão geograficamente próximos um do outro, não quer dizer que ambos necessitem falar português. Cada um pode ter o seu próprio dialeto, ou inventar a sua maldita língua própria desligada de toda e qualquer família filológica, se se seus membros assim decidirem. Entretanto, apesar da autonomia, os bolos precisam se comunicar. Para isso, PM propõe a asa'pili, a língua do mundo. Ele pegou fonemas desconexos entre si, e atribuiu-lhes símbolos e significados universais, e que poderiam ser utilizados em qualquer parte do planeta. "Asa" é mundo, "pili" é linguagem. Colocando-se o apóstrofe, cria-se a palavra para designar a linguagem do mundo. Ao todo, são apenas 29 palavras, que descreveriam e apontariam as experiências essenciais de todas as pessoas neste mundo. No livro, ele descreve em detalhes propostas para cada um destes termos, mas como eu acho que um resumo de tudo seria algo simplesmente inútil, considerando quão bom de ler é o livro, vou apenas listar os 28 termos e falar daquilo que mais me chamou a atenção em alguns deles:

Dysco: Comunicação
Ibu: Indivíduo
Bolo: Comunidade
Sila: Hospitalidade
Taku: Caixa de madeira com os pertences pessoais do ibu
Kana: Subdivisão do bolo
Nima: Identidade cultural do bolo
Kodu: Forma de produção agrícola dos bolos
Yalu: Nutrição, alimentação e comida
Sibi: Bens e necessidades materiais
Pali: Energia
Suvu: Água
Gano: Espaço
Bete: Saúde e seus cuidados
Nugo: Cápsula de veneno a que cada ibu tem direito
Pili: Linguagem ou comunicação
Kene: trabalho compulsório
Tega: Comunidade que une 20 bolos (bairro)
Dala: Assembléia entre vários bolos
Dudi: Delegado do bolo na dala
Vudo: Congregação de vários tegas (comarca)
Sumi: Congregação de vudos (região, estado ou província)
Asa: a Espaçonave Terra
Buni: Troca de presentes entre ibus e bolos
Mafa: Sistema de presentes socialmente organizado
Feno: Acordo de trocas mais ou menos permanente entre bolos
Sadi: Mercado de trocas
Fasi: Meios de locomoção e direito de ir e vir
Yaka: Duelo entre ibus ou grupos maiores

Estas palavras que o autor inventou podem parecer bobas (e desconfio que PM queria que elas soassem pelo menos um pouquinho idiotas, para que não fossem sacramentadas e cristalizadas), e pode parecer coisa de imbecil propor palavras novas para conceitos antigos. Contudo, apesar de achar este assunto interessante, vou encerrá-lo dizendo apenas que, dentro do sistema de bolo'bolo, elas fazem sentido e são úteis. Outros dois assuntos que considero importantes mas que fogem do escopo deste post são Nugo e Yaka, que são as maneiras como o autor incluiu a violência em seu mundo. Seria correto dar a todas as pessoas deste mundo uma maneira tão eficaz e próxima de acabar com a própria vida? E devemos instituir um sistema que dê vazão aos nossos piores instintos? Deixo a dúvida no ar, pra quem quiser discutir isso nos comentários.

O que mais me chamou a atenção no livro é o que há por trás da proposta de sua sociedade. Nos seus primeiros nove capítulos, o livro fala sobre a atual miséria existencial do mundo, que é independente de nossa classe social ou localização geográfica - ricos, pobres ou remediados; engenheiros high-tech, técnicos em eletricidade ou miseráveis - todos nós sofremos de algum jeito por causa do atual sistema econômico em que vivemos. PM chama a este sistema de A Grande Máquina de Trabalho do Mundo (A Máquina, para os íntimos). O papel da Máquina é nos fazer trabalhar e produzir o tempo todo, sem que percebamos quão miseráveis nos sentimos fazendo isso e esquecendo o que realmente queremos e gostamos. É como o comecinho do filme "Clube da Luta", em que o personagem-narrador fala em como ele tinha um emprego de merda, que o sobrecarregava física e emocionalmente, para que ele tivesse dinheiro para comprar mesinhas de centro engraçadinhas e kits de tempero que ele guardava ao lado da geladeira permanentemente vazia. Absolutamente, não era aquela a vida que ele queria para si, mas por comodismo, e pela Máquina recompensar seus esforços com dinheiro para comprar porcarias, ele seguia nela, minuto a minuto perdendo um pedaço da sua alma. Diariamente, somos bombardeados com mensagens de trabalho, dever e renúncia. "Trabalhem pelo futuro de seus filhos" a Máquina nos diz, e nós, obedientes, baixamos nossas cabeças, estudamos aquilo que não queremos estudar, trabalhamos com aquilo que não queremos trabalhar, e postergamos sempre nosso prazer e nossa felicidade, por que, se estamos felizes, é por que não estamos produzindo. Isto realmente nos faz bem? Os dados epidemiológicos de saúde, que mostram quão presente é a depressão e o estresse crônico em nossas vidas, me fazem pensar que não. E precisamos viver desta maneira? Bolo'bolo defende que não, e, diferente de muitos teóricos das ciências sociais que temos por aí hoje (olá, Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS! Aquele abraço pro Deleuze e pro Guattari! Já criaram algum conceito altamente abstrato, redundante e inútil hoje?), oferece um modelo diferente.

Neste modelo diferente, nós voltaríamos ao paleolítico, onde nossos antepassados trabalhavam apenas três ou quatro horas por dia, e dedicavam o resto de seu tempo para cuidar de si próprios: amavam, pintavam, dormiam, brincavam, rezavam, viajavam. lembro que, logo após a ocupação da reitoria da UFRGS em protesto contra a maneira como o Parque Tecnológico estava sendo implantado aqui em Porto Alegre, um meio de comunicação importante e com um arrasto para a direita fez uma piada que só quem quer voltar à idade da pedra e é meio retardado seria conta o tal Parque Tecnológico. Fico imaginando uma resposta parecida para o meu texto, defendendo o progresso e o desenvolvimento econômico como as coisas mais importantes do mundo. Mas, exasperado, eu grito: progresso para ONDE? Desenvolvimento DO QUÊ? Onde ficam as pessoas no meio disso? Como elas se beneficiam? Quem se dá bem com o tal do progresso? Os grandes executivos? Nem eles, eu aposto, que de tão preocupados que ficam com dividendos e ações e lucros que esquecem de usufruí-los! Alguma coisa está muito errada com o mundo, nós estamos sofrendo por causa disso, e mesmo assim insistimos em fazer mais do mesmo - mais trabalho, mais economia, e mais dinheiro pra lavar minha consciência com drogas e bens materiais que podem apagar essa dor que nunca se vai, e que pede sempre mais e mais pra ficar quietinha no canto, como se fosse nosso cafetão.

Bolo'bolo quer mudar isso. Nesta sociedade, nosso tempo seria nosso de verdade, e não do patrão ou da empresa. As coisas ficariam mais lentas, já que ninguém ficaria trabalhando 24 horas por dia para que tudo funcionasse sem nenhum problema, mas e daí? Sempre teríamos todo o tempo do mundo para fazermos o que bem entendessemos, sem pressa nenhuma. Li em algum canto escondido da internet que "para quem não tem pressa, todos os lugares estão à distância de uma caminhada". No bolo'bolo, seria sempre assim, não apenas para viagens, como para o próprio trabalho. A sociedade seria baseada tanto nos pequenos prazeres, como o de comer torta de chocolate depois do almoço, como na felicidade de construir algo novo e positivo para o mundo, ao invés de ficarmos girando a roda dentada do progresso para outra pessoa ficar girando outra roda teoricamente mais privilegiada. Esta é a parte mais bonita do livro. Ao invés de cair na mesma falácia que os partidos comunistas e socialistas defendem, de engrandecer uma classe social e tripudiar em outra, bolo'bolo reconhece que todos nós sofremos por causa do sistema, mesmo os ditos favorecidos.

Resta, por fim, a pergunta de um milhão de dólares: isso funcionaria no mundo real? Por mais sólido e bem construído que o livro seja do ponto de vista teórico, resta saber se ele poderia sair do plano das idéias e ser implantado neste mundo de carne, osso e sangue em que vivemos. Num capítulo intitulado "Cronograma Provisório", PM defende que, em até cinco anos após a publicação original do livro (1983), nós poderíamos instituir o bolo'bolo, e que todos os atrasos seriam de nossa exclusiva responsabilidade. Será mesmo? Eu olho pela janela do meu quarto, e vejo o mesmo mundo angustiado e sofrido em que eu nasci, em 1988, e não vejo nem bolos, nem sila, nem bete: apenas kene e dor. Será que nós nos atrasamos tanto assim, ou será que PM subestimou o poder da Máquina sobre nossas ações, ou mesmo nossa natureza egoísta e reacionária? Sinceramente, não sei. Um bolo sozinho e isolado no mundo poderia dar certo por algum tempo, vindo a se tornar até mesmo uma Zona Autônoma Permanente, porém, no fim, ele se desmancharia, como as utopias piratas e mesmo a nossa ocupação da reitoria da UFRGS. Para que bolo'bolo venha a se tornar realidade, precisa acontecer em todo o planeta, praticamente ao mesmo tempo. Será que somos capazes de fazer uma coisa dessas?

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Julho não passará em branco

Uma época, muito tempo atrás, eu tinha o compromisso pessoal de escrever pelo menos um post por dia para o blog. Este compromisso, porém, teve que ser abandonado por causa das muitas responsabilidades que assumi desde o terceiro ano de faculdade, e acabei diminuíndo a freqüência obrigatória de posts de 1 por dia para pelo menos 1 por mês.

Então, aqui está o post de julho.

Mas não pensem que postei isso só pra não me sentir culpado! Não senhor! Tenho planos para o próximo mês, planos que envolvem escrever mais do que apenas um texto de mea culpa. Primeiro, retomarei a minha série sobre utopias, para a qual já tenho dois textos planejados. Já comecei a escrever um texto sobre os dois últimos filmes da série Harry Potter (não por que ninguém nunca pensou em escrever sobre isso, ou por que não temos textos o bastante sobre esses filmes e esta série, mas por que eu gostei e quero escrever a respeito), e, dependendo do meu humor, pretendo escrever uma resenha sobre o livro que acabei de ler, "Memórias de um Doente dos Nervos", e algo sobre disciplina e Kung Fu, como já fiz antes por aqui.

Anyway, este blog não morreu. Não ainda. Só está em coma, e como aquele episódio de House provou pra todo mundo, pacientes em coma profundo há muito, muito tempo eventualmente acordam para fazer alguma coisa interessante, e morrerem em uma gloriosa explosão de heroísmo. Ou ficam lá, fazendo suas necessidades deitados, e morrem sem ninguém notar. Sei lá.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Descobertas Psicológicas Através da Neurologia

Em algum de seus livros, Maslow falou que o processo científico envolve muito amor, pois o pesquisador precisa amar seu tema de pesquisa para poder estudá-lo. Caso contrário, por que perder tempo com bobagens? Nesse mesmo livro, ele também falou de como, durante sua tese de doutorado, ele olhava com carinho para os chimpanzés que ele estava estudando, e como ele gostava de observá-los.

Depois de duas semanas estudando a obscura patologia chamada neuroacantocitose, começo a identificar em mim mesmo este afeto de que Maslow falava. É uma coisa sutil, que se manifesta das maneiras mais bobas, como ler o título de um artigo e já imaginar sobre o que ele irá falar; olhar as referências e ver os mesmos títulos de sempre; decorar os termos mais complicados (como "herança genética autossômica recessiva"), apenas para mostrar que eu andei estudando; olhar os nomes dos autores dos textos mais citados e considerá-los como velhos amigos - sou praticamente "faixa" do Adrian Danek nessas alturas do campeonato, que, pelo grande número de artigos publicados sobre o assunto, me leva a crer que é o maior entendido do mundo em síndromes neuroacantocitosas. É um superlativo bastante limitado (afinal de contas, quantas pessoas estudam neuroacantocitose no mundo, além dele e de mim?), mas mesmo assim, só consigo pensar no Danek com respeito, por que graças à ele, tive a oportunidade de aprender bastante sobre neurologia.

Por que, sim, estou aprendendo bastante sobre uma nova ciência. Na maioria dos casos, não entendo boa parte do que está escrito nos artigos (creatinofosfoquinase? O que é isso?). Porém, com cada artigo que leio, novas informações são adquiridas, e as antigas são ressignificadas (creatinofosfoquinase, por exemplo, é uma enzima cuja quantidade na corrente sangüínea é utilizada como critério diagnóstico para as neuroacantocitoses). E isso é muito divertido.

domingo, 5 de junho de 2011

Breve comentário sobre uma revisão bibliográfica

Por causa de uma série de fatores, acabei tendo que fazer uma revisão bibliográfica sobre neuroacantocitose, uma doença neurodegenerativa rara pra caramba, que afeta uma em cada sei lá quantos milhões de pessoas. É tão raro que eu quase só tenho encontrado estudos de caso bastante pontuais a respeito, como "neuroacantocitose tratada com carbamazepina" ou "neuroacantocitose e sintomas de depressão".

Porém, o mais engraçado, e o que me fez escrever um texto aqui, é a grande quantidade de estudos de caso indianos que eu encontrei. Apesar de eu ter que fazer um certo esforço para não ler nenhum desses artigos em voz alta imitando um sotaque estereoticamente indiano, sou obrigado a reconhecer que os artigos são de muito boa qualidade.

Outra coisa que essa pesquisa me fez perceber: eu gosto de estudos de caso, muito mais do que estudos de larga escala. Parece que, por se focar em apenas uma pessoa, há mais espaço para detalhes, e para descrever o processo por trás daquele paciente, daquela história. Fico pensando se não deveria fazer um estudo de caso como trabalho de conclusão de curso.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Tempo e Técnica

Em Análise do Comportamento, existem dois conceitos ao mesmo tempo opostos e complementares: Regras e Contingências. Regras neste contexto não são determinações externas de autoridade, e sim todo e qualquer comportamento verbal que funciona como antecedente para outros comportamentos. Em outras palavras, regras são quaisquer sugestões, ordens, leis ou algorítmos que pré-determinam para nós como devemos nos agir. Nós estamos o tempo todo formulando regras para nós mesmos, como "se eu colocar o dedo na tomada, vou tomar um choque", "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura" e "Deus ajuda quem cedo madruga". De um ponto de vista evolutivo, tal comportamento é bastante adaptativo, por que nos permite aprender algo sem necessariamente ter que entrar em contato com este algo.

As contingências, por outro lado, são este "algo" que não necessariamente precisamos contatar. Dito de outra forma, as contingências são as qualidades do ambiente ao nosso redor, e que nos fazem agir da maneira como agimos. Por exemplo, estar apaixonado é algo que 99% das novelas brasileiras aborda, mas só sabemos como é estar apaixonado de fato quando somos atacados pela flecha do Cupido. Da mesma forma, é bem diferente o seu pai dizer que colocar a mão no fogo machuca, e ser teimoso e colocar a mão no fogo para daí, sim, descobrir que fogo machuca!

A distinção entre estes dois conceitos na vida real para nós, seres verbais, é bastante confusa: como é que eu vou saber se o que eu aprendi foi através de contingências diretas, ou a partir de regras dadas por outrem em algum momento da minha vida? Não poderíamos considerar as regras como um tipo diferente de contingência, e encontrar uma diferença entre ela e outros tipos de contingência? A resposta para estas perguntas é "sim, regras são contingências, e elas possuem diferenças", mas não é isso que quero falar nesse post hoje. Na verdade, apenas falei sobre regras e contingências por que, no momento, eles me parecem a maneira mais clara de expor o que ando pensando sobre a diferença de aprender com alguém e aprender diretamente: Conhecimento versus Experiência.

Como psicoterapeuta em formação, aprendi muito lendo os textos de outras pessoas, onde elas relatam sua própria experiência. Este aprendizado por regras foi essencial para mim, e continuará sendo até o dia em que eu resolva me aposentar. Entretanto, depois de quase três anos atendendo, eu noto uma grande diferença na maneira como eu me comporto hoje como terapeuta, e como eu me comportava quando eu comecei a atender. Além de eu me sentir mais confiante, eu percebo que minha atenção está mais aguçada, e que eu sou muito mais capaz de encontrar "pontos de apoio" para intervenções terapêuticas. Agora, me pergunto: como serei depois de 30 anos trabalhando como psicólogo? Olho outros profissionais, já a muito tempo "no mercado", e percebo que eles são ainda mais capazes do que eu de fazer estas intervenções.

Esta observação me fez chegar à conclusão de que, apesar dos ensinamentos (regras) dos outros serem importantes para a formação de qualquer profissional, em qualquer área, a experiência direta é ainda mais, por que, quanto mais experiência se têm, mais capacitado se é para adquirir ainda mais. É quase como que uma "singularidade tecnológica" acontecendo nos teus neurônios, constantemente refinando e expandindo tuas habilidades, ao ponto de, depois de 60 ou 70 anos, tu te tornares um semideus na tua área profissional. Claro, como todos nós morremos um dia, é importante também passar um pouco dessa experiência adiante, para que outras pessoas possam partir de um ponto mais avançado do que nós um dia começamos.

"Knulp" - a história de um andarilho

Como meu nom de plume indica, eu tenho uma simpatia especial por andarilhos. Começou com o personagem principal de Samurai X, que se ampliou à minha admiração pela história de "Na Natureza Selvagem", ao meu gosto pelo livro "No Fio da Navalha" e se tornou depois de algum tempo em idealização de toda uma classe de personagens, reais ou imaginários, que tomaram como missão de vida caminhar pelo mundo sem nenhum apego além daquele à própria causa. Como a minha escolha de palavras indica, tem uma boa dose de "wishful thinking" da minha parte em achar que todas as pessoas que vagam o mundo são nobres e dedicadas a um Bem Maior, mas acho que o que importa no final é ideal que o arquétipo do andarilho me inspira do que a maneira como ele se manifesta no mundo.

Então, esse post é para falar de coisas ideais, e de coisas que fracassam em atingir o ideal. "Knulp" também. Esse é o título de um dos livros mais desconhecidos do Nobel de Literatura Herman Hesse - até o momento, só encontrei uma pessoa além de mim que tivesse lido ele em uma mesa de bar. Francamente, não é algo realmente surpreendente, por que, se comparado com suas outras obras mais conhecidas, especialmente "O Lobo da Estepe", "Demian" e "Sidartha", há muito pouco pathos na história. O personagem principal, apesar de compartilhar muitas semelhanças com os personagens principais desses outros livros (que, por sua vez, compartilham muitas semelhanças com o próprio Herman Hesse, que eu imagino que era um andarilho à sua própria maneira), não sofre intensamente. A pergunta filosófica que os outros fazem, "qual o meu lugar neste mundo?", é respondida antes mesmo do começo do livro. Nós acompanhamos Knulp tomar a decisão de não conformar-se em ter uma vida mediana como todas as outras pessoas, e viver vagando de cidade em cidade, de baile em baile, de boa ação em boa ação, mas este momento marcante passa muito rapidamente no livro (pelo menos na minha opinião, e se comparado com outros livros do Hesse), e logo voltamos a ver sua vida em movimento, sem que este conflito tão típico dos contos de Hesse esteja marcadamente presente.

Se, por um lado, não acho surpreendente que a história não seja muito conhecida, por outro, acho uma pena, por que o sofrimento menos intenso do personagem principal faz com que os outros aspectos da vida de um andarilho sejam tratados com maior sensibilidade e atenção. Em vários momentos da história, Knulp encontra velhos amigos, agora casados e estabelecidos como mestres em alguma profissão, que lhe perguntam "e tu, por que não fez o mesmo? Por que tu preferiu essa vida de vagabundo, sempre a andar por aí, sem aprender uma profissão, sem se tornar um cidadão de bem?" Por um lado, estes amigos querem muito o bem de Knulp, que por isso sempre encontra pouso durante os rigorosos meses de inverno, e lhe fazem esta pergunta por que acreditam que esta é a única maneira de ser feliz. Mas, por outro, existe a inveja de estar preso em um único lugar, a único destino. Ao contrário deles, Knulp pode viver livre e como bem entende.

Entretanto, mesmo para o personagem principal o mundo não é preto e branco, e mesmo para ele existe a contradição e o paradoxo. Pode ser que ele sempre consiga responder àquela pergunta, ou evadi-la de maneira engraçada, mas o fato é que nem ele tem certeza de ter feito a coisa certa. Não teria sido melhor permanecer em uma só cidade, casar-se com uma mulher direita, e aprendido uma profissão, como todo mundo ao seu redor fez? Teria ele sido mais feliz? Talvez. Mas, se isto tivesse acontecido, quem teria levado alegria e bondade de um canto a outro, na velocidade de seus pés? No fim, Knulp confronta-se com seus pecados, e os coloca diante de Deus, para que Ele o julgue. E, no fim, é Ele quem o absolve. Knulp pode não ter sido um mestre em nada, contudo, ele foi um razoável tocador de gaita, um bom dançarino e alguém cuja companhia sempre foi agradável, e que, em alguns instantes, fez o mundo de alguém mais feliz. Não seria este seu destino: tornar-se mestre em não ser mestre em coisa alguma? Não sei.

O livro me encantou por vários motivos, alguns dos quais eu já expliquei aqui. Porém, o principal deles é o que me faz gostar de toda a obra de Herman Hesse: ela é mais um chamado à seguir o próprio coração. Batido e clichê, eu sei, mas não serão as coisas mais importantes em nossa vida justamente as mais repetitivas, como amor, amizade, carinho e compaixão? Na minha opinião, Knulp, tanto o livro, quanto o personagem, vivem estes ideais, da forma como eles melhor conseguem vivê-los, e este é seu grande valor, independente de terem feito grandes conquistas no mundo ou não.

Considerações filosóficas de final de tarde sobre educação

Atendendo muitos adolescentes, eu fico impressionado com a atitude que muitos pais têm em relação ao comportamento dos seus filhos. Quando eles vêm falar comigo, sempre fazem questão de dizer "doutor, eu dou tudo pra ele: roupa de marca, comida da boa, TV da Sky, me esfalfo trabalhando por ele e ele se comporta desse jeito! Tem cabimento, doutor?"

Nessa hora, ao ouvir tão fatídica pergunta, eu me faço de morto, mas normalmente preciso me controlar para não perguntar de volta "mas o senhor ensina ele o que fazer ao invés de agir dessa maneira?" Me controlo, por que tenho medo de desorganizar esse pai ou essa mãe, colocando no colo dele ou dela uma responsabilidade muito grande, que talvez eles não percebam possuir: a educação do seu filho.

Não quero defender apenas um lado aqui: normalmente, os adolescentes (e as crianças) que eu atendo fazem coisas terríveis. Mas daí eu pergunto: onde estão os adultos para controlar ela? Quem vai lá, aponta o que está errado e ensina como fazer direito? Se eu fizesse todas estas perguntas, aposto que duas coisas aconteceriam:

1) O pai/mãe ia me dizer "mas doutor, eu já estraguei todos os meus cintos e chinelos de tanto que bati nesse guri!"
2) Eu ia perder o paciente, por que o pai/mãe ia se sentir ofendido.

Ofender só funciona em um lugar nesse mundo: no seriado House, e olha que mesmo lá ele já teve sua cota de sofrimento por pisar nos calos da pessoa errada. Além disso, ofender seria incorrer no mesmo erro que esses pais incorrem: machucar ao invés de ensinar. Tomar uma surra ensina que não dá pra ser pego, e que se você consegue fazer o que quer sem que ninguém saiba, está tudo certo. Xingar na terapia também: se o doutor não souber, não acontece nada. É uma maneira primária de pensar, e a maioria dos meus leitores devem estar muito acima dela. Entretanto, não dá pra dizer o mesmo de grande parte da população.

Então, pra finalizar esse post, vou dizer algumas pérolas de senso-comum, mas que a experiência como psicoterapeuta me mostraram serem verdadeiras. A primeira é que "pai é quem cria", está lá, presente em nossos sucessos e também em nossos fracassos. A segunda é "bater não é educar" - se surra adiantasse alguma coisa, os presídios estariam cheios de santos e almas iluminadas, e não seriam considerados os piores lugares para se passar a vida. Terceiro, o ensino mais eficaz é o exemplo, a presença. Eu posso fazer meus filhos lerem vários tratados filosóficos sobre Ética, mas se eu não mostrar, através do meu comportamento, como colocar isso em prática, tudo o que eu vou estar fazendo é ensinando eles a justificarem os próprios erros. Justificativas normalmente não servem para nada, por que elas normalmente visam tornar correto o incorreto, ao invés de corrigi-lo e mudá-lo. E, em quarto e último lugar, o que vale para meus (no momento hipotéticos) filhos, vale para meus pacientes também: se eu quero que eles ensinem seus filhos a serem mais educados, eu tenho que ensinar da maneira que eu considero correta.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Osama e a Primavera dos EUA

Então, Osama morreu. Nessas alturas do campeonato, isso não é novidade para mais ninguém, considerando que esta notícia já deve ter aparecido umas 15 vezes na programação normal da Globo (sem contar as chamadas do Plantão da Globo, a Globo News e as filiais regionais), e agora, ao invés de meramente passar a informação adiante, já nos damos a liberdade de emitir pequenos comentários a respeito deste acontecimento histórico. Toda vez que falamos do Osama, falamos o que nós achamos disso tudo. Teoricamente, damos a nossa opinião "pessoal". Falo "teoricamente" e coloco o adjetivo "pessoal" entre aspas por que as opiniões que correm por aí são tão similares que não consigo acreditar que todo mundo falando sobre a morte do Osama e os aspectos políticos de fato formulou sua opinião por conta própria, e sim foram à mesma fonte descobrir o que eles precisavam achar.

Em outras palavras: todo mundo fala a mesma coisa sobre a morte do Osama e sobre os Estados Unidos, e num país com tendências esquerdistas e anti-imperialistas como o nosso, o comentário mais comum que eu vi por aí é o bom e velho "Fuck the USA." Ele pode variar a forma e o conteúdo, mas a função é sempre a mesma: falar mal dos Yankees. E eu, que vivo em um ambiente particularmente esquerdista e anti-imperialista, ouço bastante disso. Eu não tenho nada contra a esquerda, muito menos contra a posição anti-imperialista (o que quer que seja isso). Em muitos casos, eu acabo concordando com o que dizem a respeito dos EUA: cadê a foto do corpo do Osama? Não foi o governo dos Estados Unidos quem armou o Talibã e as guerrilhas do Bin Laden para lutarem contra os soviéticos? Não fizeram uma série de escolhas políticas antidemocráticas e antiéticas no Oriente Médio de apoiar ditadores com base em quão amigáveis eles são e não quão respeitosos eles são de seu povo? Pois é, eu concordo com tudo isso, e eu poderia escrever um post só sobre como os Estados Unidos da América são uma superpotência opressiva e que só se importa com seu bem estar. Mas eu não vou fazer isso, por que outros blogueiros já devem ter feito esse serviço por mim, de maneira muito mais competente e dedicada do que eu jamais faria.

O que eu quero falar nesse post aqui não é sobre política: é sobre afeto. Diferente da maioria dos meus colegas esquerdistas e anti-imperialistas, eu morei nos EUA, e por isso eu acho que consigo ver os EUA para além do seu governo, e lembrar que existe um povo morando lá. Encontrei esse link aqui em alguma lista de sites por aí, e alguma coisa nas fotos e nos títulos me fez sentir alguma coisa que estava adormecida à muito tempo. "Osama está morto" diz o site "e é primavera na América", que traz trinta fotos da chegada da primavera ao distante país do norte. Eu vivi isso quando morei lá, e só agora eu percebo quão importante é essa época do ano. Depois de talvez três ou quatro meses escondidos em casa, o gelo começa a derreter e os estadounidenses (eu sou chato com essa coisa de "americano", por que também sou meio esquerdista e anti-imperialista) finalmente podem sair de casa, tomar banho de piscina, se jogar na grama e tomar banho de sol. Olhem para as fotos e me digam: tem alguém fazendo alguma coisa que a gente não faça aqui no Brasil? São patetas, são idiotas, mas são pessoas, e elas também querem ser felizes.

Junto com a neve, outra coisa derrete: o medo. Um dos comentários que ouvi a respeito de todo esse episódio é que "sair pra comemorar a morte de alguém são dez passos atrás na evolução." Talvez seja mesmo. Contudo, quem saiu para as ruas de Washington, Nova York e outras cidades comemorar a morte do líder terrorista Osama bin Laden não saiu para comemorar a morte de uma pessoa, e sim celebrar o fim do medo. Nos últimos dez anos, todos os Estados Unidos se viram cobertos por uma sombra, uma ameça indefinida e por isso muito mais assustadora, que podia se esconder em qualquer canto, e atacar qualquer lugar. Osama era só um homem, mas era o homem que encarnava essa sombra. Agora que ele foi morto por soldados estadounidenses, parece que a sombra morreu junto com ele, como que exorcizado. "É só ilusão" dirão os comentaristas "a Al Qaeda vai vir com mais força ainda agora, e eles vão voltar a ter medo outra vez." É bem provável que sim. Contudo, meu apego àquele país me faz querer acreditar que não, que a morte de bin Laden deixou o mundo mais seguro, e que a sombra morreu de fato, ou pelo menos ficou severamente ferida com esse golpe, por que eu não penso nos Estados Unidos apenas como uma organização com um exército comandada por um cara chamado Obama, e sim como uma nação, composta por pessoas que sofrem tanto quanto eu, e pensar que elas estão mais felizes e tranquilas agora que seu maior inimigo não pode mais atingi-los também me faz sentir mais feliz.

Sei que, do outro lado do mundo, alguma mãe chora por seu filho morto por demônios americanos, e o sofrimento dessa mãe é tão grande e importante quanto o sofrimento que os EUA passou nos últimos dez anos. Só que eu acho que já existe gente o suficiente na internet brasileira para falar sobre essa dor, e muito poucos para falar sobre a dor yankee.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

As Dimensões da Personalidade

Podemos fazer piada a respeito dos psicólogos e como eles estão sempre analisando os outros e emitindo diagnósticos, mas o fato é que todas as pessoas fazem a mesma coisa - elas coletam informações, julgam e tiram uma conclusão a respeito dos outros. A diferença dos psicólogos é que eles ativamente procuram ferramentas de avaliação mais eficazes do que o senso comum normalmente utilizado. Isso é "teorização" - a criação de teorias. De certa forma, o senso comum é a teoria que surgiu da experiência das pessoas normais, e da compilação dos dados coletados por estas ao longo de várias e várias gerações. Até certo ponto, ele é útil e nos ajuda a nos guiarmos pela sociedade, e até mesmo a nos mantermos vivos. Porém, o senso comum perde grande parte de sua validade em questões mais finas, onde é necessário maior critério de observação do que a sua avó percebeu quando passou de ônibus no bairro pobre da cidade.

E é aqui que entram os psicólogos, sociólogos, antropólogos e outros cientistas envolvidos no estudo do comportamento humano: nós desenvolvemos modelos conceituais utilizando métodos bastante refinados, como a experimentação, a observação sistemática, a pesquisa-ação, a pesquisa genética e a comparação com outras espécies de mamíferos. Cruzando e analisando todos os dados assim coletados, podemos criar teorias muito mais refinadas e capazes de predizer comportamentos do que as nossas avós conseguiam (por mais sábias que fossem).

Uma das teorias que mais gosto é a utilizada pela Terapia Multimodal. Ela foi desenvolvida por Arnold Lazarus na metade do século passado, e postula que a personalidade humana é composta por sete dimensões: Comportamento, Afeto, Sensação Corporal, Imaginação, Cognição, Relações Interpessoais e Biologia. O que eu gosto nesta teoria é, além de sua simplicidade e abrangência, sua aplicabilidade: não só vários tratamentos adequados podem ser planejados com base nela, como também leigos podem utilizá-la para melhor compreender os outros seres humanos ao seu redor.

Partindo de uma perspectiva analítico-comportamental, onde tudo o que uma pessoa faz é considerada como comportamento, cada dimensão da Teoria Multimodal é uma classe comportamental. Em outras palavras, cada dimensão é um tipo de coisa que nós fazemos. Trocando em miúdos, a modalidade do comportamento engloba tudo o que nós fazemos com nosso corpo e os outros possam ver, como caminhar, falar, pular e escrever. O afeto são todas as emoções, sentimentos e humores que sentimos. A sensação corporal é o que sentimos dentro do nosso corpo. A imaginação e a cognição são aquilo que chamamos de "mente" - a primeira é responsável pela criação e manipulação de imagens que só nós vemos, como rever acontecimentos passados e ensaiar cenas futuras, e a segunda é responsável pelos nossos julgamentos, avaliações e crenças. Já as relações interpessoais são todos os comportamentos envolvidos no trato com outras pessoas, e, por fim, a biologia é todo nosso funcionamento corporal, bem como a maneira como cuidamos dele (alimentação, exercícios, uso de medicação e drogas). Como os leitores mais atentos devem ter percebido, existe muita sobreposição entre as modalidades, sendo às vezes impossível distinguir entre elas. Porém, segundo Lazarus, isso é tanto esperado como necessário. Apesar de dividirmos a personalidade em aspectos para melhor compreendê-la, ela é, em última análise, uma estrutura e um processo único e total, e mais importante do que classificar uma manifestação humana corretamente como sendo "Cognição" ou "Interpessoal" é menos importante do que levá-la em consideração na hora de realizar o diagnóstico.

Entretanto, mesmo sendo um processo único e total, nós percebemos fenômenos diferentes dentro dela, e nos são úteis estas diferenças. A principal delas, na minha opinião, é a Hierarquia das Modalidades. Todos nós temos em nossa personalidade as sete dimensões citadas acima. Contudo, algumas serão mais prevalentes do que as outras, e se manifestarão primeiro ou com mais força. Por exemplo, pessoas que vivem no "mundo da lua " teriam como principal modalidade a Imaginação, enquanto que a modalidade Comportamento ficaria bem abaixo na hierarquia. Outro exemplo, que Lazarus dá em um dos seus livros, é a ordem de ativação modal. Na Terapia Cognitiva elaborada por Aaron Beck, nós primeiros temos um pensamento, que elicia um sentimento, e então agimos. Para Lazarus, as coisas são mais variadas e complicadas que isto. Uma pessoa poderia ficar ansiosa ao assistir uma tragédia na TV por que imaginou algum familiar entre as vítimas, sentiu uma sensação de peso no estômago, julgou esse peso como um sinal de que alguém morreu, e então se entupiu de remédios para controlar o nervosismo, enquanto outra ficaria ansiosa por que primeiro sentiu o peso no estômago, fez um julgamento e então pensou na família toda morta. Apesar do processo ser parecido, o tratamento terá que ser completamente diferente para cada uma destas pessoas, levando em consideração como elas reagem ao mundo.

Este jeito de ser é historicamente determinado. Tomemos este excelente blogueiro que vos fala como exemplo. Penso que a minha modalidade primária é a Imaginação - hoje mesmo quase tive um treco ao imaginar uma perna necrosada (yuk). É razoável acreditar que eu nasci com essa predisposição, mas o fato de meu pai ter me levado para ver todos os filmes da saga Star Wars (além de alguns de Star Trek e toda a série Smallville), bem como me incentivado a ler livros de aventura e coisas parecidas me parece muito mais relevante, por que fortaleceu minha capacidade de criar imagens e ser afetado por elas. Ignorar isso em um tratamento comigo seria basicamente ignorar a maneira mais eficiente de lidar com meus problemas. Outras pessoas, obviamente, vão ter históricos diferentes do meu, e muito provavelmente terão modalidades primárias diferentes da minha, e não só o tratamento, como também viver com elas, será bastante diferente.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ser Humano

Tigre preso
Em gaiola de papel
Gaiola essa
Que ele mesmo escolheu

Nostalgia, Perda e Dor

Acho que uma das muitas coisas que crianças, e às vezes adolescentes, não entendem é a nostalgia. Por terem caído aqui no mundo a muito pouco tempo, tudo parece não apenas novo, mas também eterno - as coisas sempre foram assim desde que elas se conhecem por gente. Porém, as crianças crescem, as coisas mudam, e quando elas percebem, sentem falta. No que parece pouco tempo atrás, as pessoas falavam da década de 1980 com esse sentimento de falta. Eu nunca fiz isso por que, poxa vida, eu nasci em 1988, e não vi nada das coisas interessantes daquela década. A década de 1990, contudo, é outra história: eu tive minha infância nessa época, e sou culpado de todos os crimes que as crianças cometiam naquela época.

Um dia desses, vi aquele vídeo no YouTube onde crianças (de hoje) são apresentadas a objetos que eram usados 20 ou 30 anos atrás, como disquetes, fitas cassete e telefones de discar, e tinham que adivinhar para que serviam. Enquanto elas faziam suas apostas (algumas bastante próximas), eu me dei conta que eu sabia exatamente o que cada uma daquelas porcarias fazia, por que eu cresci com elas! Eu me senti não só velho, como também saudoso daquelas coisas - me peguei dizendo para mim mesmo "aquela época sim é que era boa", e desejando voltar a um tempo onde celular era coisa de grã-fino e se podia sumir na rua sem nenhum esforço se assim se desejasse, a internet não existia e todos os amigos que moravam longe se comunicavam por cartas. As coisas eram mais difíceis de se conseguir, e por isso muito mais belas, por serem mais raras, e o esforço daqueles que as procuravam era muito mais merecedor de elogio do que é hoje.

Pelo menos na minha cabeça.

No mesmo momento em que eu flagrei este fragmento de desejo, eu pensei "que bobagem, pelo amor de Deus." Continuei sentindo, pensando, imaginando como o mundo era mais bonito em 1990 por que me fazia (e ainda faz) me sentir bem, mas o meu senso de honestidade comigo mesmo me trouxe, como um secretário diligente, todos os dados que eu sei a respeito da década de 1990, da tecnologia e do mundo em geral. Obviamente as coisas não eram melhores 20 anos atrás - os meios de comunicação, além de ser de menor qualidade, eram totalmente controlados por três famílias; comprar livros era uma coisa que só se fazia em cidade grande e dos títulos que estavam disponíveis ali no estoque da livraria; amigos que moravam longe trocavam cartas, mas depois de um tempo qualquer um enche o saco de ficar escrevendo à mão (ou na máquina de escrever) e esperando os Correios levarem tua mensagem; e apesar do meu romantismo a respeito de todo o lance de "sumir nas ruas sem o celular", eu sei quão chato, pra não dizer trágico e desesperador, pode ser uma pessoa desaparecer sem deixar vestígios. Além de tudo isso, existe o fato de que a tecnologia, toda ela, era muito inferior à que temos hoje, desde aparelhos de som até os modelos de psicoterapia e saúde mental. Resumindo, mesmo que fosse possível voltar ao estado tecnológico de 20 anos atrás, não seria desejável, muito menos vantajoso, fazê-lo por que estamos muito melhor hoje (pelo menos neste sentido).

Então, tenho essas duas coisas acontecendo ao mesmo tempo dentro de mim - a nostalgia e a idealização do meu tempo de criança, junto com a clara noção de que estou vendo o passado através de lentes cor-de-rosa. Afetivamente, eu anseio pelos meus tempos de infância, e racionalmente, eu prefiro os dias de hoje. Por que? Não quero que a resposta para esta pergunta seja excessivamente emotiva, nem racionalista ao ponto de ser psicologicamente aleijada. Ambas as reações, por mais discrepantes que sejam, estão corretas, por que foram construídas a partir de informações coletadas de modos muito diferentes. É como a eletricidade, que é ao mesmo tempo corrente alternada e luz contínua, ou os fótons, que são simultaneamente onda e partícula. É um paradoxo, uma pergunta que não precisa de resolução, e sim de uma síntese.

Hoje, esse homem de 22 anos que escreve para este blog, racional e analítico, consegue ver as vantagens que o progresso científico trouxe para a humanidade e para si mesmo, pois ele lembra das dificuldades que ele e outras pessoas enfrentaram por não existirem tecnologias suficientemente avançadas em sua infância. Por outro lado, ele sente falta daquele tempo por que, quando ele era criança, ele era inegavelmente feliz. Viver era simples, uma grande brincadeira que só acabava quando precisava dormir. Os problemas a resolver eram simples, e quando não se conseguia fazer algo, as "pessoas grandes" ao seu redor o ajudariam. Não existia pressão, nem questões de vida ou morte. Hoje, porém, parece que o mundo vai desabar a qualquer momento sobre minha cabeça; as questões com que me deparo são, sim, de vida e morte, e são tão complicadas que não existe mais nenhuma "pessoa grande" que possa resolvê-las, a não ser eu. A brincadeira acabou, e é no sono que eu encontro meu descanso. Se meu intelecto percebe que muitas coisas mudaram para melhor de 20 anos para cá, meu coração percebe que muitas outras também mudaram, e mudaram para pior.

Essa semana, meu pai disse que era muito mais fácil lidar comigo quando eu tinha cinco anos, por que eu era uma criança feliz. Eu não engolia sapos ou levava desaforos para casa, por que eu não sabia como fazer isso. As ofensas batiam em mim, mas eu logo esquecia delas, por elas simplesmente não serem parte da brincadeira. Porém, em algum ponto. eu aprendi a engolir sapo, e deixei de ser uma criança feliz para ser... adulto, talvez. Nesse ponto, algo se perdeu, a brincadeira acabou e eu me tornei igual a todas as outras pessoas no mundo. Maturidade? Ser maduro é ser "normótico"? Eu acho que não - apenas seguir os outros apenas por que não se sabe para onde ir é mau sinal, especialmente se as pessoas que você segue também não sabem para onde vão (aquele adesivo de carro "não me siga, também estou perdido" é mais verdadeiro do que pode parecer num primeiro momento). Algo se perdeu, se rompeu, se foi, e eu fui expulso do Paraíso, que agora busco sem achar. Alguém pode me indicar o caminho? Eu não sei.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Experiências Cinemáticas - O Exterminador do Futuro III

Acabei de assistir "O Exterminador do Futuro 3 - A Rebelião das Máquinas". Como eu escrevi posts a respeito dos dois primeiros filmes, sinto ser necessário fazer o mesmo com o terceiro. Aliás, fiquei me coçando para não pegar o laptop, levar ele para a sala e fazer um "liveblogging" enquanto eu o assistia.

Ao contrário dos outros dois filmes, que gostei muito, esse me deixou... em dúvida. Eu não sei se gosto dele e elogio seus méritos, ou se eu não gosto, e falo mal daquilo que eu não gostei. Acreditem, a disputa é forte aqui. Acho que vou começar falando mal e apontando aquilo que vejo como erro, para só aos poucos começar a trazer à tona aquilo que considero os pontos positivos do filme. Acho que a estrutura que estou dando para este texto não é por acaso, por que eu fui entrando na história, me envolvendo com os personagens, gostando deles e torcendo por eles, pra não dizer gostando do filme de maneira geral, conforme os minutos foram passando.

A primeira coisa que eu pensei quando passou dos créditos foi "dá pra ver que o James Cameron não dirigiu esse daí." Talvez isso seja só impressão minha, por que eu li em algum lugar da internet que ele perdeu os direitos autorais da séries já faz um bom tempo, que o novo dono da franquia queria botar ela outra vez pra ganhar dinheiro, e isso me fez ter um viés a respeito do negócio. Entretanto, acho que, mesmo com o viés, é notável que James Cameron não enconstou o dedo em "O Exterminador do Futuro 3". Digam o que quiserem do cara - que ele é um mercenário, que ele tortura seus empregados, que ele é completamente louco - só não digam que ele não sabe fazer filmes marcantes (e rentáveis). Ele consegue criar uma estética e um ritmo envolventes, que te fazem ficar completamente sem ar, esperando o que vai acontecer na próxima cena. A sensação que eu tive hoje foi que tentaram imitar a estética e o timing que Cameron deu aos dois primeiros filmes, e que fizeram uma imitação muito bem feita. Entretanto, como aqueles chalés de Gramado imitando casas alemãs podem atestar, a cópia nunca fica igual ao original. Não é impossível que a cópia supere o original, só que é improvável, e não foi o que aconteceu em "Exterminador do Futuro 3". Ainda nos 15 minutos iniciais, eu pensei também "fizeram esse filme só pra ganhar dinheiro". Uau, grande conclusão a minha! Como se os dois primeiros tivessem sido filmados por que o Cameron queria mudar o mundo com sua arte (só pra constar, ele mudou: a cultura pop e o tamanho da conta bancária dele). Só que os dois primeiros têm uma diferença. Com eles, eu imagino que Cameron tenha procurado os produtores de Hollywood e dito "olha só, eu tenho esse roteiro aqui que é do caralho, e vai dar muito dinheiro pra vocês e pra mim". Com oterceiro, eu imagino que quem quer que seja dono dos direitos autorais agora deve ter pensado "eu tenho essa franquia que rendeu muito dinheiro, vou inventar uma história nova e ganhar mais ainda". Não acho que isso seja problemático em si, ou que só sai filme ruim desse jeito. O que eu acho é que, se a história tivesse vindo em primeiro lugar, ela teria sido muito melhor. Claro que eu não sei como é que foi o processo da produção e filmagem de "O Exterminador do Futuro 3" e eu posso estar falando uma grande bobagem, mas minha opinião é essa.

Além disso, eu tenho evidências que atestam ao meu favor. Elas não são do filme em si, mas do contexto cinematográfico dos últimos dez anos. Conforme Mr. Plinkett muito sabiamente apontou em seu review do último filme da série "Jornada nas Estrelas", a última década foi dura para o cinema, por que a competição aumentou muito. 30 anos atrás, o lançamento de um filme era um grande evento, que chamava a atenção da mídia e do público, e, se fosse bom, poderia ficar muito tempo em cartaz, e as pessoas continuariam indo assisti-lo, por que as décadas antes de 1990 eram chatas pra caralho e tudo que o povo tinha para fazer era ir ao cinema ou fazer sexo (ou, se você gostasse de viver perigosamente, os dois, ao mesmo tempo - muitos dos meus leitores devem ter sido concebidos desta maneira). Hoje a situação é completamente diferente. Todos os anos nós vemos centenas de lançamentos de filmes novos, que, além de competirem entre si, precisam competir com as séries de TV, a internet, a pornografia, a pirataria e o zoológico. Um filme pra chamar a atenção precisa ser muito, muito bom (como "A Origem") ou muito, muito familiar. Como Hollywood é um negócio essencialmente conservador e dirigido por gente medíocre que só quer ganhar dinheiro, nós temos poucos filmes muito, muito bons, e temos muitos filmes muito, muito familiares. Por isso que nós estamos tendo esta onda de filmes baseados em seriados antigos, continuações que não precisariam de fato existir, "gritty reboots" e coisas simplesmente bizarras como a adaptação para o cinema de "Banco Imobiliário" por Ridley Scott. "Exterminador do Futuro" é uma série extremamente conhecida, e que se lançarem outro filme agora mesmo, vai encher os bolsos de quem investiu nele.

No fim, o que importa é que o público reconheça os elementos mais conhecidos da série. Referências aos filmes anteriores, como"I'll be back", "hasta la vista, baby" e "you're terminated, fucker", aparecem do início ao fim da película, mas as mais óbvias aparecem no começo, quando os dois exterminadores, Arnold e a Dinamarquesa Peituda (mais a respeito dela abaixo) aparecem pelados nos lugares mais improváveis e vão procurar roupas e armamentos para cumprirem suas missões. Digo que as referências iniciais são as mais óbvias por que o diretor do filme queria que o público notasse a referência, e que dissessem para si mesmos "ei, eu conheço essa cena!" Dito de outra forma, a cena sabe que o papel dela é chamar a atenção e fazer as pessoas que assistem o filme se sentirem em casa com o material familiar. Com estas cenas, eu tive a mesma impressão que eu tenho quando assisto os episódios mais retardados de "Smallville" - eu sei o que vai acontecer agora, mesmo que os elementos não sejam exatamente os mesmos. A cena em que isto ficou mais óbvio foi Arnold entrando no bar para conseguir roupas - ele está seguindo o mesmo padrão dos dois filmes anteriores. Porém, desta vez, não é um bar cheio de machos usando couro e fazendo pose de macho, é uma despedida de solteira, cheia de mulheres bêbadas esperando pelo show de striptease masculino ao som de Village People. Aqui devia ser o momento em que eu encarno o Shayamalan e digo "What a Twist!", mas acabou sendo o momento em que eu disse "meh." A perseguição de carro na cidade, além de me fazer pensar onde diabos está o exército nessas horas pra parar aquela perda total da cidade, me deu a impressão de que o diretor estava adotando a abordagem da Crise de Meia-Idade: na falta de algo, compense com algo muito grande ou muito caro. Um homem de 40 anos sofrendo de dúvidas existenciais compra uma Ferrari e arranja uma amante 20 anos mais nova, esse filme pegou uma cena empolgante do segundo filme, aumentou ela em dez vezes e disse "pronto, fiz melhor." Sim, a cena é legal, mas não tanto quanto a do segundo filme, por que fica claro que é uma imitação (de novo). O problema que eu vejo aqui é que o filme é previsível demais para qualquer um que tenha ido no cinema mais de uma vez na vida. Eu sabia o enredo e o final da história do primeiro "Exterminador do Futuro", e portanto não tinha como me surpreender com ele. Mesmo assim, eu passei o tempo todo em expectativa, com medo de que Sarah Connor ou Kyle Reese morressem nas mãos daquele assassino metálico implacável. No segundo, de novo, eu sabia como ia terminar, por que devo ter visto a porcaria do filme mais de dez vezes na "Tela Quente" e, mesmo assim, de novo eu me preocupava com os protagonistas e seu destino. Eu sabia intelectualmente o que ia acontecer, mas intuitivamente, alguma coisa ainda me dizia que algo podia dar errado e o filme acabar de um jeito diferente. O terceiro foi o contrário: a estrutura utilizada já é tão conhecida que eu não preciso ler o roteiro pra saber o que vai acontecer em seguida. Cena de perseguição? OK, eles vão sobreviver, e então vamos ter uma cena bem curta explicando o que nós, o público, precisamos saber para entender a próxima cena, que vai ser mais cheia de ação do que o seu final de semana num puteiro em João Pessoa. A obrigação de cada cena era fazer a próxima vir sem problemas, só isso.

Ah, e quanto à Exterminatrix, Dinamarquesa Peituda: tirando a cena em que ela aparece pelada, achei que ela foi um desperdício. O conflito entre os viajantes do tempo é um aspecto central de "O Exterminador do Futuro", por que mostra as diferenças entre os lados em guerra. No primeiro filme, temos um conflito entre a máquina fria e indestrutível, que usa da força bruta para conseguir o que quer, contra um humano frágil, porém inteligente e habilidoso, e que deixa claro que sua motivação principal é afetiva, e não "programática". No segundo, temos um conflito de máquina versus máquina, só que uma delas é comandada por uma criança humana - chata e que quase estragou o filme, mas compassiva e determinada. Contudo, o conflito sempre foi entre homens. O terceiro filme mudou isso e colocou uma mulher como adversária. E não explorou nenhuma das possibilidades (exceto a parte em que ela aparece pelada, e a parte em que ela infla os próprios peitos, cenas pelas quais eu sou muito agradecido). Ela seria tratada diferente pelos humanos? Usaria mais da astúcia e menos da força bruta? Seduziria os policiais para convencê-loa a ajudá-la? Nenhuma destas questões foi explorada de maneira adequada. Talvez foi feita uma piada (peitos infláveis, lembra?), mas nada além disso, o que é uma pena.

OK, você que leu meu texto até aqui deve estar pensando "depois de todos estes problemas, sobrou algo pra se gostar nessa porcaria?" Ao que eu lhes respondo, bravos leitores: sim, sobra, e bastante coisa. Apesar do começo ruinzinho, o filme tem um conflito importante, e que não é tratado como algo superficial ou deixado em segundo plano para os efeitos especiais. Talvez seja só eu e meus processos intelectuais hipertrofiados que veja na série "Exterminador do Futuro" como um intrigante estudo filosófico sobre Destino, Livre Arbítrio e Natureza Humana. O primeiro tem um ar de pesadelo, quase filme de terror, por nos fazer pensar "e se um dia as nossas criações se voltarem contra nós? Teremos qualquer chance contra elas?" O segundo dá maior enfoque para as relações humanas, e até que ponto nós podemos escolher o que acontece em nossas vidas. Particularmente importante nesse filme é a relação de John Connor com sua mãe, e com Arnold, que apesar de ser um andróide "incapaz" de emoções, acaba virando uma figura paterna para ele. O terceiro filme trouxe a questão "como é a vida de alguém que sabe ser o futuro Salvador da Humanidade, e que sofreu muito por causa disto?" John Connor começa o filme sozinho, vivendo de trabalhos braçais e fugindo de tudo que lhe faça lembrar de seu passado e de seu futuro. Ele está vivendo muito abaixo do que ele poderia viver, mas ele prefere que seja assim, por que sabe que, para atingir seu potencial, o mundo precisa acabar, e muita gente precisa morrer. Não vemos mais a sua relação com a mãe, que morreu alguns anos antes da história atual. Para alguns, isto pode ser uma pena. Eu, por outro lado, penso que o diretor aproveitou bem a situação, e permitiu que Connor, agora um jovem adulto, desenvolvesse outras relações - no caso, um relacionamento amoroso com uma mulher que conheceu ainda na juventude. De maneira geral, achei a maneira como a relação se construiu bastante positiva, por ser diferente do molde hollywoodiano normal. Sim, em alguns momentos eu tive que gritar "ÉDIPO!" e pensar se John Connor não está tentando substituir sua mãe por sua mulher, mas isso não vem ao caso.

John Connor, Kate Brewster e mesmo o Exterminador são personagens comoventes, e é possível acreditar que eles existiriam. Sei que o filme é relativamente absurdo em sua premissa (quem aqui esqueceu que John Connor é filho do soldado que ele mesmo mandou viajar através do tempo para proteger sua mãe?), mas dentro dela, os personagens parecem humanos, e não pedaços do roteiro que ganharam o poder da fala. O dilema do Destino versus Livre Arbítrio se manifesta com toda força através de seu comportamento: o Dia do Julgamento Final é inevitável, a guerra contra as máquinas vai acontecer e 3 bilhões de pessoas vão morrer, mas um andróide precisa seguir sua programação à risca, ou pode ele escolher o que fazer? Um último ponto importante que precisa ser destacado: o final do filme não é previsível. Isso ganha pontos comigo.

Resumindo tudo: "Exterminador do Futuro 3" é um bom filme. Ele deixa muito a desejar quando comparado com os filmes anteriores, mas, apesar de seus defeitos, ainda diverte e nos faz pensar sobre a vida, o universo e tudo mais.

domingo, 20 de março de 2011

Utopias (8)

Temos, em nossa sociedade, a idéia bastante entrincherada de que "se todo mundo fizesse o que bem entendesse, tudo ia virar um caos, e todo mundo iria morrer". Com base nessa idéia, votamos em nossos governantes e lhes conferimos poderes para regular nossas vidas, na esperança de que eles nos protejam da desordeme façam os trens saírem da estação na hora. Essa idéia é bastante poderosa, e influencia todos os aspectos de nossas vidas, mas será que ela é necessariamente verdadeira? Será que, se os indivíduos pudessem fazer o que mais desejam, a sociedade seria destruída por dentro?

Não se sabe de nenhum caso no mundo onde isto tenha acontecido em larga escala. Porém, desde a antigüidade, percebe-se a existência de pequenos lugares, no tempo e no espaço, onde as pessoas se reuniram, não seguiram as leis de nenhum governo além do próprio desejo, deixaram todos fazerem o que queriam, e o resultado final não foi um banho de sangue. A este fenômeno, o autor anarquista pós-moderno Hakim Bey deu o nome de "Zona Autônoma Temporária", por serem espaços onde, por um tempo limitado, as leis do governo não se aplicam, e são criadas de forma tácita por aqueles que ali convivem. Existem, ainda, as Zonas Autônomas Permanentes, que costumam durar mais tempo, e as Zonas Autônomas Sazonais, que existem em algumas épocas do ano, como as férias de verão são para as crianças em idade escolar.

A idéia da TAZ (Temporary Autonomous Zone, em inglês), como eu já disse, é uma manifestação do movimento anarquista pós-moderno, que dá enfoque a construção de redes subversivas e pequenos focos de resistência libertária, ao contrário do anarquismo mais tradicional, que visa a revolução anarquista em todos os cantos do mundo. Apesar da TAZ parecer uma idéia mais derrotista do que a Revolução Total, penso que ela é uma meta muito mais realista, e uma maneira muito mais concreta de mudar o mundo. Se buscamos a Revolução Total, qualquer coisa menor do que o mundo inteiro é um fracasso. Além disso, fazer com que todo o planeta adira ao mesmo sistema político me parece ser o exato oposto do ideal de liberdade anarquista, por que não respeita a vontade individual. Em outras palavras, a revolução parece uma coisa muito distante, tanto no tempo, quanto de mim mesmo. O que seria eu no meio de algo tão grande?

A TAZ é o exato oposto disto. Ela pode acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar onde duas ou mais pessoas assim desejem. Normalmente, ela envolve alguma atividade como criar algo, mas pode ser muito bem apenas uma festa. E por ser tão próxima e envolver tanto o indivíduo, estar e ajudar a constituir uma TAZ normalmente é uma experiência afetiva bastante forte. Independente do que se faça, fazer um ato de criação junto de outras pessoas, seguindo o mesmo ideal e buscando o mesmo objetivo te dá uma sensação de unidade com elas muito grande, tanto que, mesmo muito tempo depois, quando a TAZ já foi reabsorvida pelo sistema e desaparecido, o sentimento de ter vivido algo tão intenso persiste. Baseado nas minhas experiências anteriores, talvez seja incorreto dizer que as Zonas Autônomas sejam temporárias ou que desapareçam, por que este sentimento de que falo não é meramente relembrar passivamente: ele é a marca indelével que a TAZ deixou em você, e que te faz querer sentir aquilo outra vez e em outros lugares. Te faz querer que outras pessoas conheçam essa maravilhosa sensação, e te faz querer criar outra vez uma ilha de liberdade nesse mar de escravidão, nem que seja por apenas uma hora.

Desse modo, a TAZ nunca morre, por que ao fim de cada uma, fica não só a vontade de recriá-la, como o conhecimento de como fazê-lo. Na primeira vez que se participa de uma experiência desse tipo, esse conhecimento é um tanto quanto instável. Porém, conforme se entra e sai em TAZ, ele vai se tornando mais sólido, e vai mudando o indivíduo, que, por sua vez, possibilita a mudança de outras pessoas. A Revolução Total não é atingida, mas, pouco a pouco, o caminho em sua direção é pavimentado, uma TAZ de cada vez.

Utopias (7)

E, conforme o prometido, dedico este post a comentar o livro "Utopias Piratas: mouros, hereges e piratas", do autor anarquista Peter Lamborn Wilson. Diferentemente dos livros anteriores, que delineavam sociedades perfeitas conforme a imaginação e crenças pessoais do autor, esta obra faz um levantamento histórico de sociedades reais. Assim sendo, elas são muito menos "perfeitas" do que as obras anteriores, mas também são muito mais interessantes, por terem existido de fato em algum ponto da história. Claro, as preferências pessoais do autor ainda exercem papel central na descrição destas comunidades, mas, de alguma maneira, elas são diminuídas pelas evidências materiais por trás do livro, enquanto que utopias totalmente imaginárias são "experimentos mentais" absolutos, e possuem pouca (ou nenhuma) evidência empírica comprovando sua viabilidade. Então, feitas estas considerações, vamos ao que interessa: Utopias Piratas!

O autor, um autodeclarado "piratólogo amador"escreveu este livro com base em suas pesquisas a respeito das antigas "repúblicas piratas". Elas existiram em todos os lugares do mundo onde a pirataria foi forte, como no Caribe ou em Madagascar, mas sua principal fonte de dados são as repúblicas mouras do Mar Mediterrâneo - Tunis, Algiers e Salé. O interesse de Wilson nestas micro-nações reside no fato de que elas apresentaram um funcionamento político muito diferente de todos os outros estados da época. Primeiro, toda sua economia era baseada na pirataria e no saque, com pouca ou nenhuma produção própria. Os corsários e piratas profissionais do Mediterrâneo atacavam barcos europeus, pegavam sua carga e sua tripulação e os vendiam nos mercados destas cidades, as únicas que lhes garantiam porto seguro e a possibilidade de comprar novos mantimentos, bem como o de gastar o dinheiro dos saques. Segundo, estes estados, apesar de estarem localizados dentro do que seria o então Império Turco-Otomano, desfrutavam de um grau de autonomia bastante elevado. Se o sultão, ou algum funcionário do alto escalão, decidisse cobrar seu tributo de Tunis ou Algiers, ele não só não receberia um tostão, como teria uma grande dor de cabeça, graças aos esforços dos piratas em manterem-se independentes de qualquer governo central. Além disso, era muito comum que, em cada uma destas cidades, existissem embaixadores e consules especialmente designados pelas nações navais européias, como Holanda e Inglaterra, para estabelecer pactos de não-agressão (isto é, os piratas não atacariam os seus navios mercantes) e, de vez em quando, libertar súditos escravizados por piratas. Terceiro, junto com esta autonomia política, veio junto uma forma muito distinta de governar. Em seu conjunto, Tunis, Algiers e Salé não eram chamadas de "Repúblicas Piratas" por conveniência estilística, mas por que, de fato, elas funcionavam de maneira muito mais democrática que qualquer outro governo de então. Não vou me lembrar dos detalhes aqui (e posso até estar confundindo as coisas), mas Salé, que é considerada por Wilson como a mais autêntica das repúblicas piratas, governava a si própria através de uma espécie de "câmara dos deputados", onde os capitães se candidatavam para mandatos de um ano, e eram eleitos por seus pares. Apesar de apenas uma certa parte da população poder se candidatar, era bastante possível que alguém de uma classe inferior, como por exemplo um escravo, subisse na vida, se tornasse um capitão, comandasse uma frota de considerável tamanho e entrasse para o conselho diretor (que, se não me engano, era chamado de Divã).

Uma crítica que poderia ser feita a estas utopias, e que considero bastante válida, vem do próprio nome dado a elas: piratas. Ora, como todos nós sabemos, a pirataria envolve o saque de navios mercantes, escravização das tripulações saqueadas, violência, estupro e muito, muito rum, tanto que utilizar o termo "Utopia Pirata" parece um contra-senso. Agora, até que ponto nós podemos desconsiderar a experiência destas cidades-estado baseados neste argumento moralista? Será que os piratas eram estas criaturas cruéis que vemos em filmes como "A Ilha do Tesouro"? Será que todos eram sadistas consumados, que viviam para matar, torturar, estuprar e saquear? Wilson defende que as coisas não eram bem assim. Sim, eles eram ladrões que atacavam navios mercantes, mas apenas se achassem que não corriam riscos e que seria uma presa fácil. Se percebessem que tinham uma briga dura pela frente, não se atreviam a atacar. Além disso, apesar de existirem relatos de prisioneiros torturados e estuprados, existem também relatos de escravos capturados que foram muito bem tratados pelos seus proprietários, sendo até mesmo libertos depois de algum tempo de trabalho não-tão-forçado. O que Wilson defende é que, apesar dos piratas dessas repúblicas não serem exatamente exemplos de seres humanos, eles não estavam fazendo nada de diferente do que as nações estados maiores como Inglaterra e Holanda faziam, e que, se eles são tão mal falados até hoje, é por que eles não deixaram nada por escrito, ao contrário do que acontece nos países mercantes da Europa.

Muitos dos piratas que moravam em Tunis, Algiers e Salé não eram de origem moura, ou de alguma outra população dominada pelo Império Turco-Otomano, e sim europeus renegados que fugiram de suas cidades de origem para se converterem ao Islã e viverem vidas menos restritas do que a viviam anteriormente. Na Europa cristã de então, todos os prazeres sensuais, como comida, bebida e sexo, eram vistos como pecaminosos, e que quanto menos eles fossem aproveitados, mais pura era nossa existência, e maior a nossa possibilidade de entrar no Paraíso após a morte e sentar ao lado direito de Deus. Para a Igreja, o Islã, que então não possuía nenhum destes tabus, era visto como uma grande religião da perdição, e que portanto deveria ser destruída o mais rápido possível. Todos os cristãos "acreditavam" nesta história, mas a imagem de odaliscas sensuais dando de beber e de comer para um sultão eram atraentes demais para muitos europeus. E, aqui está a parte engraçada: muitos europeus converteram-se ao Islã, mas quase nenhum muçulmano se converteu ao Cristianismo para defender as frotas cristãs dos piratas islãmicos. Por que? Esta pergunta assustava os europeus cristãos, que então fizeram todo o possível para demonizar os piratas, que, em muitos aspectos, eram muito mais democráticos e próximos dos ideais republicanos a que hoje aderimos do que, digamos, a Rainha da Inglaterra.

Por fim, o último ponto levantado por Wilson em defesa das repúblicas piratas foi a semelhança delas com as Zonas Autônomas de Hakim Bey. Ao contrário do que acontecia nos reinos cristãos do outro lado do Mediterrâneo, os governos piratas não interferiam na vida particular de seus "cidadãos", e os deixavam muito mais livres para fazerem o que bem desejavam. Apesar desta qualidade ser exatamente o que esperaríamos de um porto pirata licencioso e pecaminoso, não era o caos generalizado que dominava as repúblicas (como "Piratas do Caribe" nos levaria a crer). Isso fica óbvio pelo fato das repúblicas piratas terem existido de maneira contínua por um tempo bastante longo. Pelo contrário, elas eram bastante organizadas, com sistemas políticos e militares sofisticados, e deram muito trabalho antes de serem destruídas ou desaparecerem. Mas, além disso, elas foram o primeiro embrião de uma nova possibilidade de sociedade, mais libertária e menos opressora, que garante autonomia total ao indivíduo, sem por isso degringolar em entropia. Repito, elas não eram sociedades perfeitas e sem injustiças. Contudo, ainda me pergunto: será que o maior risco que elas ofereciam para as nações européias era mesmo a pirataria?

Bom, demorei, porém postei. Espero que vocês gostem das minhas considerações a respeito de "Utopias Piratas". Como passou-se um grande tempo entre a leitura do livro e a escrita deste post, devo ter deixado muita coisa de fora, e escrito algumas outras bobagens incorretas. Por favor, não se atenham ao meu texto como referência final no assunto, e leiam o livro, publicado pela Editora Conrad. Para o próximo texto desta série, pretendo seguir a linha anarquista, e escrever sobre o conceito de Zona Autônoma, ou, quem sabe, sobre Bolo'bolo.

Justin Bieber, Restart e outros modismos musicais

Hoje em dia, temos duas grandes modas na música brasileira: Restart, e falar mal de Restart. No cenário mundial, algo parecido acontece com as fãs fanáticas por Justin Bieber de um lado, e os fãs fanáticos por falar mal do adolescente com voz de menina do outro. Em grande parte, o que eu sei desses dois fenômenos se restringe ao que vi na mídia, ou em algum blog por aí (que normalmente se restringem a duvidar da sexualidade dos supra citados músicos). Então, para não dizerem que eu sou um alienado da cultura pop, realizei o supremo esforço de abrir a página do YouTube e ouvir algumas músicas de Restart e Justin Bieber, para então dizer minha opinião a respeito. Sabe qual foi a minha conclusão? Não é tão ruim assim.

"Mas como assim, Andarilho?" você me pergunta "como é que você pode não detestar e desejar a morte de músicos tão ruins?" Ou, se você é fã de algum desses cantores, pode me perguntar "como é que você pode não achar o que eles fazem um orgasmo em forma de música?" Eu respondo a ambas as perguntas.

Sinceramente, nem Restart, nem Justin Bieber constituem o que eu chamo de "boa música". Ambos dependem pesadamente de refrões para serem enfiados na memória coletiva lembrados pelo público, usam todo tipo de truques possíveis para chamar a atenção de seu público-alvo (meninas de 13 anos) e não são nada originais. Qualquer pessoa que tenha vivido 22 anos numa sociedade ocidental já ouviu esse tipo de música milhares e milhares de vezes tocando na rádio antes do advento da Revolução Colorida e do Ataque do Menino com Cara de Menina. São músicas que apelam da maneira mais simplória aos sentimentos dos ouvintes, e são muito facilmente relembradas. Eu não tenho nenhum problema com isso.

"O QUÊ?" alguém deve ter gritado ao ler a última frase do parágrafo anterior, depois de cuspir todo seu café na tela do computador. Então, agora que o choque já passou, repito o que disse: eu não me importo com músicas baratas, extremamente comerciais ou que só possuem apelo por aderirem ao menor denominador comum. Não tenho nenhum problema quanto a isso por que 90% de todas as músicas já feitas na história caem nesta categoria. É a chamada Lei de Sturgeon: 90% de tudo que já foi feito é lixo. Isso se aplica aos nossos dias, aos dias de nossos antepassados, e se aplicará aos dias de nossos descendentes.

Imagino que algum vivente que leia este blog, indignado com a minha afirmativa de que quase tudo que a humanidade produz é cacaca, iria me apontar a música da década de 1970, o rock brasileiro da década de 1980, os grandes compositores clássicos como Bach, Mozart e Chopin, e perguntar se eles são porcaria também. Ao receber esta pergunta, eu diria que não, eles não são porcaria - eles são aqueles que nós nos damos ao trabalho de relembrar, coisa que não acontece com todos os outros compositores e músicas de suas épocas que nós graciosamente relegamos ao esquecimento. A humanidade produz uma grande quantidade de idéias (memes) a todo momento, e querer manter todos eles em nossa memória coletiva seria muito nocivo para a civilização, pois nos tornaríamos incapazes de diferenciar o excelente do horroroso. E na maioria das vezes, só por que algo é popular, não quer dizer que este algo seja bom. Querem um exemplo além de Restart e Justin Bieber? Sugar Sugar. Numa época em que os Beatles, Jimmy Hendrix e Bob Dylan estavam em seu auge, essa era a música mais popular, a que tocava em todas as rádios. Ela é ruim? Não. Ela fez alguma diferença no cenário mundial? Também não. Beatles, Hendrix e Dylan fizeram? Hell yes. Por que nós lembramos mais deles do que The Archies, se eles não eram tão populares? Por que eles eram muito, muito bons, e revolucionaram a maneira de fazer música, enquanto que Sugar Sugar é só mais uma dessas músicas que grudam no seu ouvido e não saem nunca mais.

Então, ao invés de ficar falando mal de Restart e Justin Bieber, e como eles são a prova definitiva de que a música morreu, pare de ouvir Atlântida FM e vá ouvir alguma música nova, que talvez pouca gente escuta mas que te dá calafrios. Quem sabe você não descobre um novo Paul McCartney.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Um problema para a ciência da Psicoterapia (epílogo) - Sete Livros e Um Destino

Depois de quase cinco anos fazendo trabalhos acadêmicos e colocando referências no final da maioria deles, não consigo mais citar um livro em um texto sem depois dar as informações necessárias para que outras pessoas possam lê-los e ver por conta própria se o que eu falei a respeito deles é verdadeiro ou não. Então, como eu sou um nerd incorrigível como eu adoro a ABNT como eu defendo o livre conhecimento, passo aqui a lista dos sete livros que chamaram minha atenção enquanto eu escrevia o post anterior, mais alguns que eu penso serem tão importantes quanto eles. É importante ressaltar que só agora eu percebi que, dos sete livros que chamaram minha atenção, eu só tenha começado a ler um, por que os outros foram comprados apenas recentemente e/ou se perderam na minha longa lista de "livros por ler". Para balancear este problema, listarei mais sete livros que eu realmente li, e cuja leitura considero vital para qualquer empreitada séria em Saúde Coletiva.

Os Sete Que Eu Não Li
1) Neurociencia Aplicada a la Conducta Criminal y Corrupta - Elba Tornese e René Ugarte
2) A Practical Guide to Acceptance and Commitment Therapy - Steven Hayes e Kirk Strosahl
3) Psicoterapia Personalista - Arnold Lazarus
4) Buddha's Brain - Rick Hanson e Richard Mendius
5) Metacognitive Therapy for Anxiety and Depression - Adrian Wells
6) Relational Frame Theory - Steven Hayes, Dermot Barnes-Holmes e Bryan Roche
7) The Neuroscience of Psychotherapy - Louis Cozolino

Os Sete Que Eu Li (pelo menos um pouco)
1) Mindfulness for Two - Kelly Wilson e Troy DuFrene
2) Emotional Disorders and Metacognition - Adrian Wells
3) Learning RFT - Niklas Törneke
4) Psicoterapia Analítica Funcional - Robert Kohlenberg e Mavis Tsai
5) Processos Humanos de Mudança - Michael Mahoney
6) Psicoterapia Breve e Abrangente - Arnold Lazarus
7) The Will to Believe and other essays in popular philosophy - William James

Pensei em escrever também uma pequena justificativa para cada livro, mas depois mudei de idéia, primeiro por que ia estragar a surpresa do leitor descobrir por conta própria o que estes livros tem de atraente, e segundo por que ia dar trabalho demais para um domingo às cinco da manhã. Entretanto, é interessante notar o que essa lista diz a meu respeito. Por exemplo, depois de escrever essa lista, percebi que todos os livros, exceto um, são sobre psicoterapia ou neurociências, e que não há um livro sequer sobre Saúde Coletiva. Isto significa que eu não li nenhum livro sobre este assunto, ou que eu considerei todos os que li irrelevantes para o propósito deste post. Qualquer que seja a resposta correta, eu preciso ler mais. Aceito sugestões.

Um problema para a ciência da Psicoterapia

A ciência da Psicoterapia, como ela é ensinada e difundida nos dias de hoje, tem um problema seríssimo, na minha opinião. Temos mais de 100 anos de conhecimento acumulado, diversos modelos teóricos altamente eficazes para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos e muitos profissionais competentes, tanto no "campo", atendendo pacientes, quanto na "academia", pensando e fazendo pesquisa básica. Desde que Freud começou sua revolução psicanalítica, nós avançamos muito, tanto que até me atrevo a dizer que finalmente começamos a entender aquilo que chamamos de "natureza humana". Então, qual é o problema?

O problema que eu vejo é que, apesar de todo esse conhecimento acumulado ao longo de um século, o índice de transtornos mentais parece estar aumentando ao invés de diminuindo. Um leitor atento e bem informado poderia por a culpa disso nos maus métodos diagnósticos preconizados pelas principais organizações psiquiátricas do mundo, que acabam enviesando nosso olhar de modo a ver mais doenças, mas penso que há mais por trás do nosso problema do que apenas um erro estatístico, por que ainda é possível ver muitos homens e muitas mulheres sofrendo profundamente sem nunca receberem nenhum diagnóstico psiquiátrico de brinde. O que quero dizer com este longo rodeio é que 90% das grandes descobertas no campo da psicoterapia não refletem em mudanças positivas para a vasta maioria da população, e parte do problema se encontra justamente no treinamento dos profissionais da área da saúde mental, especialmente o dos psicoterapeutas. Falo deste ramo profissional por ser o que melhor conheço, por eu mesmo ser um psicoterapeuta em treinamento, e por achar que este é o ramo com o maior potencial desperdiçado. Explico por que.

No começo do século XX, quando Sigmund Freud começou a psicanálise, a idéia de tratar problemas de saúde que não podiam ser atribuídos a causas biológicas óbvias era um tanto quanto nova, e precisava se fundamentar em outras ciências. Freud, por ser neurologista, fundamentou a nova ciência que estava nascendo na tradicional clínica médica, que consiste (de maneira resumida) em atender um paciente de cada vez, escutar seus problemas com bastante atenção e então formular um tratamento adequado para as necessidades daquele indíviduo particular. Para treinar novos psicanalistas, era necessário encontrar pupilos brilhantes que se interessassem por este tipo de problema, e se dispusessem a passar por uma longa e trabalhosa análise didática, que serviria, entre outras coisas, para tornar o futuro psicanalista consciente de seus próprios problemas psicológicos, até então inconscientes. Este modelo foi o melhor que Freud conseguiu criar, e era suficiente e adequado para os tempos em que ele viveu. Entretanto, da maneira como eu vejo, o mundo e suas necessidades mudaram, mas a maneira de treinar terapeutas continua essencialmente o mesmo.

No imaginário popular, quem entra para a faculdade de Psicologia, ou para a residência em Psiquiatria, vai trabalhar com pacientes, montando seu consultório em um bairro acessível, ou atendendo no postinho em alguma favela vila comunidade bastante afastada do centro da cidade. Na faculdade, apesar de vermos muito mais coisas para além da Clínica "pura e simples", e de em nossa formação nós sermos obrigados a ver muitas outras coisas para além dela, essa mentalidade se mantém praticamente intacta. Talvez, a imagem que nós, acadêmicos, temos da Psicologia Clínica é ainda mais engessada do que a da população, justamente por que nós sabemos em detalhe como deve ser uma clínica: primeiro, ela deve acontecer em um consultório, tecnicamente chamado de "setting terapêutico", que deve ter uma série de características físicas (duas poltronas em distância confortável, talvez um divã e uma mesa de centro, aspecto neutro ou agradável, sala de espera com revistas mais ou menos atuais e, se você mora em uma cidade úmida e quente como Porto Alegre, um ar condicionado bem calibrado), durar de quarenta à sessenta minutos e ser realizada com apenas um paciente por vez. Dependendo da orientação teórica do psicoterapeuta em questão, esse número de "um paciente por vez" pode aumentar consideravelmente, podendo virar "um grupo famíliar por vez" ou "um grupo terapêutico por vez". Mesmo assim, o problema persiste, por que não é amplo o bastante.

Treinar psicoterapeutas é caro, por que envolve pelo menos cinco anos de muito estudo na faculdade, comprar muitos livros e pagar muitas idas a congressos, sem contar as eventuais pós-graduações que podem aparecer no caminho. Os psicoterapeutas formados sabem que precisaram ralar muito para conseguirem seu diploma, e por isso cobram um preço justo por seus serviços. Quanto é esse preço, você quer saber? Segundo o site do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, o preço mínimo para uma consulta psicológica é de R$81,62, e o preço máximo é de R$139,93, mas é notório e sabido que profissionais a mais tempo no mercado podem cobrar muito mais do que isso por sessão. Quem é que pode pagar um preço desses? Quem tem casa própria, carro na garagem, renda fixa mais ou menos elevada, e que possui os meios necessários para comparecer pelo menos uma vez por semana ao consultório do psicólogo ou do psiquiatra. Quem são essas pessoas? Os membros das classes econômicas A e B. É bem possível que pessoas que pertencem às classes C, D e E paguem por sessões de psicoterapia, mas com grande sacrifício financeiro e pessoal. Quando este sacrifício não é possível ou desejável, existe a possibilidade de procurar ajuda gratuita em clínicas-escola, hospitais públicos e dispositivos do SUS como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS, antigamente conhecidos como "CAIS Mental"), ou a Unidade Básica de Saúde (UBS, popularmente chamado de posto de saúde). Os serviços oferecidos nestes lugares, contudo, não atende às necessidades de quem os procura, seja por falta de equipe, seja por que a dita equipe está sobrecarregada. Em outras palavras, quem não tem dinheiro, não tem acesso à psicoterapia, de maneira geral (e, também de maneira geral, quem mais precisa de tratamento psicológico é justamente quem menos chance tem de pagar por ele).

Depois de toda essa exposição, você poderia ficar incomodado com toda essa minha ênfase na psicoterapia e dizer "OK, teus argumentos fazem sentido, mas a psicoterapia NÃO é a única ferramenta de saúde mental de que dispomos. Existem muitos outros serviços e modelos que poderiam dar conta desse problema, e que são muito mais vantajosos em termos de custo-benefício." Você poderia ainda me listar algumas destas alternativas, como aquelas desenvolvidas pela Psicologia Social Comunitária, a Psicodinâmica do Trabalho e a Terapia Comunitária, e me indicar toda uma série de leituras a respeito delas para saber de suas aplicações práticas. Eu aceitaria sua resposta, por que conheço estas linhas de trabalho, e as respeito. Entretanto, apesar de elas irem além da visão restrita que a maioria dos psicoterapeutas têm a respeito do tratamento em saúde mental, elas possuem um grande defeito: elas não são cientificamente embasadas. Todas elas, até onde eu sei, foram desenvolvidas por indivíduos excepcionalmente criativos, as aplicaram aos problemas do "mundo real" e colheram frutos, mas elas não foram devidamente testadas e reguladas como as teorias de psicoterapia modernas foram. Isto significa que elas podem ser fundamentadas em idéias inadequadas a respeito do comportamento humano, e no longo prazo causarem mais dano do que benefício. Esta é uma profecia que não precisa se realizar.

Olhando por cima do meu ombro, dentre os muitos livros espalhados no tapete do meu quarto, sete chamam minha atenção. Estes livros, apesar de obviamente terem sido escritos por pessoas tão reais e imperfeitas quanto eu, não representam apenas o que estas pessoas pensam a respeito da saúde mental, ou o que elas gostariam que fosse verdadeiro a respeito da natureza humana. Não, todos estes livros são o produto final de décadas de pesquisa rigorosa, do acúmulo do conhecimento de milhares de indivíduos inteligentes, que dedicaram boa parte de suas vidas para desvendar os mistérios por trás do nosso comportamento, do nosso pensamento e da nossa emoção. São livros de psicopatologia, personalidade, psicoterapia e neurociência e eu não tenho a menor dúvida de que, dentro deles, se encontra a resposta para o sofrimento psíquico, e que, com base neles, poderia se fazer uma verdadeira revolução na Saúde Coletiva brasileira. Quero dizer com isto que eles são o caminho, a verdade e a luz? Não, nada disso. Quero dizer que com o conhecimento que eles nos oferecem, podemos melhorar a vida de muitas pessoas, se os usarmos para reformular a maneira como a saúde mental é abordada e tratada em nosso país, por que não são apenas uma "sugestão educada". Entretanto, eles não oferecem uma resposta para todos os nossos problemas, por que eles foram escritos dentro do mesmo paradigma de treinamento de psicoterapeutas que critiquei acima. É preciso encontrar uma maneira de empregar este conhecimento em larga escala, não "um paciente a cada cinquenta minutos no consultório", mas "dez mil pessoas, o tempo todo, em qualquer lugar", desenvolver métodos para utilizar tudo isto que sabemos em salas de aula, em empresas, em calçadas movimentadas e mesmo filas de banco. Isto não significa que os dias da clínica e da psicoterapia individual estejam contados e que ela será abandonada. Significa que, no futuro, ela deixará seu lugar central no quadro geral da Saúde Coletiva para ocupar um outro, mais periférico. Entretanto, ao assumir este novo lugar, ela será finalmente livre, e trabalhará com o que ela sabe fazer de melhor, estimulando o crescimento pessoal e a realização de quem a procura.