domingo, 20 de março de 2011

Utopias (7)

E, conforme o prometido, dedico este post a comentar o livro "Utopias Piratas: mouros, hereges e piratas", do autor anarquista Peter Lamborn Wilson. Diferentemente dos livros anteriores, que delineavam sociedades perfeitas conforme a imaginação e crenças pessoais do autor, esta obra faz um levantamento histórico de sociedades reais. Assim sendo, elas são muito menos "perfeitas" do que as obras anteriores, mas também são muito mais interessantes, por terem existido de fato em algum ponto da história. Claro, as preferências pessoais do autor ainda exercem papel central na descrição destas comunidades, mas, de alguma maneira, elas são diminuídas pelas evidências materiais por trás do livro, enquanto que utopias totalmente imaginárias são "experimentos mentais" absolutos, e possuem pouca (ou nenhuma) evidência empírica comprovando sua viabilidade. Então, feitas estas considerações, vamos ao que interessa: Utopias Piratas!

O autor, um autodeclarado "piratólogo amador"escreveu este livro com base em suas pesquisas a respeito das antigas "repúblicas piratas". Elas existiram em todos os lugares do mundo onde a pirataria foi forte, como no Caribe ou em Madagascar, mas sua principal fonte de dados são as repúblicas mouras do Mar Mediterrâneo - Tunis, Algiers e Salé. O interesse de Wilson nestas micro-nações reside no fato de que elas apresentaram um funcionamento político muito diferente de todos os outros estados da época. Primeiro, toda sua economia era baseada na pirataria e no saque, com pouca ou nenhuma produção própria. Os corsários e piratas profissionais do Mediterrâneo atacavam barcos europeus, pegavam sua carga e sua tripulação e os vendiam nos mercados destas cidades, as únicas que lhes garantiam porto seguro e a possibilidade de comprar novos mantimentos, bem como o de gastar o dinheiro dos saques. Segundo, estes estados, apesar de estarem localizados dentro do que seria o então Império Turco-Otomano, desfrutavam de um grau de autonomia bastante elevado. Se o sultão, ou algum funcionário do alto escalão, decidisse cobrar seu tributo de Tunis ou Algiers, ele não só não receberia um tostão, como teria uma grande dor de cabeça, graças aos esforços dos piratas em manterem-se independentes de qualquer governo central. Além disso, era muito comum que, em cada uma destas cidades, existissem embaixadores e consules especialmente designados pelas nações navais européias, como Holanda e Inglaterra, para estabelecer pactos de não-agressão (isto é, os piratas não atacariam os seus navios mercantes) e, de vez em quando, libertar súditos escravizados por piratas. Terceiro, junto com esta autonomia política, veio junto uma forma muito distinta de governar. Em seu conjunto, Tunis, Algiers e Salé não eram chamadas de "Repúblicas Piratas" por conveniência estilística, mas por que, de fato, elas funcionavam de maneira muito mais democrática que qualquer outro governo de então. Não vou me lembrar dos detalhes aqui (e posso até estar confundindo as coisas), mas Salé, que é considerada por Wilson como a mais autêntica das repúblicas piratas, governava a si própria através de uma espécie de "câmara dos deputados", onde os capitães se candidatavam para mandatos de um ano, e eram eleitos por seus pares. Apesar de apenas uma certa parte da população poder se candidatar, era bastante possível que alguém de uma classe inferior, como por exemplo um escravo, subisse na vida, se tornasse um capitão, comandasse uma frota de considerável tamanho e entrasse para o conselho diretor (que, se não me engano, era chamado de Divã).

Uma crítica que poderia ser feita a estas utopias, e que considero bastante válida, vem do próprio nome dado a elas: piratas. Ora, como todos nós sabemos, a pirataria envolve o saque de navios mercantes, escravização das tripulações saqueadas, violência, estupro e muito, muito rum, tanto que utilizar o termo "Utopia Pirata" parece um contra-senso. Agora, até que ponto nós podemos desconsiderar a experiência destas cidades-estado baseados neste argumento moralista? Será que os piratas eram estas criaturas cruéis que vemos em filmes como "A Ilha do Tesouro"? Será que todos eram sadistas consumados, que viviam para matar, torturar, estuprar e saquear? Wilson defende que as coisas não eram bem assim. Sim, eles eram ladrões que atacavam navios mercantes, mas apenas se achassem que não corriam riscos e que seria uma presa fácil. Se percebessem que tinham uma briga dura pela frente, não se atreviam a atacar. Além disso, apesar de existirem relatos de prisioneiros torturados e estuprados, existem também relatos de escravos capturados que foram muito bem tratados pelos seus proprietários, sendo até mesmo libertos depois de algum tempo de trabalho não-tão-forçado. O que Wilson defende é que, apesar dos piratas dessas repúblicas não serem exatamente exemplos de seres humanos, eles não estavam fazendo nada de diferente do que as nações estados maiores como Inglaterra e Holanda faziam, e que, se eles são tão mal falados até hoje, é por que eles não deixaram nada por escrito, ao contrário do que acontece nos países mercantes da Europa.

Muitos dos piratas que moravam em Tunis, Algiers e Salé não eram de origem moura, ou de alguma outra população dominada pelo Império Turco-Otomano, e sim europeus renegados que fugiram de suas cidades de origem para se converterem ao Islã e viverem vidas menos restritas do que a viviam anteriormente. Na Europa cristã de então, todos os prazeres sensuais, como comida, bebida e sexo, eram vistos como pecaminosos, e que quanto menos eles fossem aproveitados, mais pura era nossa existência, e maior a nossa possibilidade de entrar no Paraíso após a morte e sentar ao lado direito de Deus. Para a Igreja, o Islã, que então não possuía nenhum destes tabus, era visto como uma grande religião da perdição, e que portanto deveria ser destruída o mais rápido possível. Todos os cristãos "acreditavam" nesta história, mas a imagem de odaliscas sensuais dando de beber e de comer para um sultão eram atraentes demais para muitos europeus. E, aqui está a parte engraçada: muitos europeus converteram-se ao Islã, mas quase nenhum muçulmano se converteu ao Cristianismo para defender as frotas cristãs dos piratas islãmicos. Por que? Esta pergunta assustava os europeus cristãos, que então fizeram todo o possível para demonizar os piratas, que, em muitos aspectos, eram muito mais democráticos e próximos dos ideais republicanos a que hoje aderimos do que, digamos, a Rainha da Inglaterra.

Por fim, o último ponto levantado por Wilson em defesa das repúblicas piratas foi a semelhança delas com as Zonas Autônomas de Hakim Bey. Ao contrário do que acontecia nos reinos cristãos do outro lado do Mediterrâneo, os governos piratas não interferiam na vida particular de seus "cidadãos", e os deixavam muito mais livres para fazerem o que bem desejavam. Apesar desta qualidade ser exatamente o que esperaríamos de um porto pirata licencioso e pecaminoso, não era o caos generalizado que dominava as repúblicas (como "Piratas do Caribe" nos levaria a crer). Isso fica óbvio pelo fato das repúblicas piratas terem existido de maneira contínua por um tempo bastante longo. Pelo contrário, elas eram bastante organizadas, com sistemas políticos e militares sofisticados, e deram muito trabalho antes de serem destruídas ou desaparecerem. Mas, além disso, elas foram o primeiro embrião de uma nova possibilidade de sociedade, mais libertária e menos opressora, que garante autonomia total ao indivíduo, sem por isso degringolar em entropia. Repito, elas não eram sociedades perfeitas e sem injustiças. Contudo, ainda me pergunto: será que o maior risco que elas ofereciam para as nações européias era mesmo a pirataria?

Bom, demorei, porém postei. Espero que vocês gostem das minhas considerações a respeito de "Utopias Piratas". Como passou-se um grande tempo entre a leitura do livro e a escrita deste post, devo ter deixado muita coisa de fora, e escrito algumas outras bobagens incorretas. Por favor, não se atenham ao meu texto como referência final no assunto, e leiam o livro, publicado pela Editora Conrad. Para o próximo texto desta série, pretendo seguir a linha anarquista, e escrever sobre o conceito de Zona Autônoma, ou, quem sabe, sobre Bolo'bolo.

Nenhum comentário: