domingo, 31 de julho de 2011

Utopias (9)

Mais uma utopia anarquista: bolo'bolo! Junto com "Zonas Autônomas" de Hakim Bey, este livrinho, escrito por alguém que se identifica apenas por PM (Polícia Militar?) é, na minha opinião, uma das mais interessantes contribuições da teoria anarquista à mudança social.

Apesar de aparentar ser mais um panfleto ideológico, "Bolo'bolo" é um trabalho bastante sólido, um daqueles textos que dá pra perceber que o autor estudou bastante para criá-lo. Diferente de "Zonas Autônomas" e "Utopias Piratas", "Bolo'bolo" não é empiricamente embasado, pelo menos não de forma direta. É bem provável que as propostas do livro tenham sido postas em prática em algum lugar do mundo, considerando que ele é bastante popular entre os anarquistas e outras correntes políticas mais underground, mas não sei dizer se o livro em si foi escrito com base em alguma experiência do autor. Em todo caso, PM cita diversas fontes da biologia e da psicologia evolucionista para justificar seu modelo de utopia.

E em que consiste este modelo? De longe, é a proposta mais simples de todas as que eu já li. Basicamente, PM propõe uma mudança na maneira como vivemos nossas relações sociais. Ao invés de nos mantermos dependentes de alguma estrutura externa e impessoal, como o Capital, o Estado e o Mercado, nós deveríamos fazer com que todas as nossas relações sejam diretas e pessoais. No mundo ideal de PM, não existiria nenhum princípio centralizador como o governo para dizer o que as pessoas podem ou não podem fazer - dentro do limite razoável, tudo seria possível. "OK", você deve estar pensando "esse cara é o Rei do Óbvio. Todo mundo quer isso! Como é que ele espera conseguir isso?" É uma boa pergunta, e uma que eu fico muito feliz em poder responder: mudando toda nossa rede social. PM sugere, como alternativa às cidades superlotadas, desagradáveis e estressantes de hoje, que vivamos em bolos, comunidades intencionais e autossuficientes energeticamente de até 500 pessoas. Este número, ele justifica, é pequeno o bastante para que conheçamos todos os nossos vizinhos pessoal e diretamente, e grande o suficiente para ainda para podermos escolher com quem desejamos conviver. Cada bolo seria independente dos demais, ainda que possa estabelecer relações de amizade e parceiria com seus vizinhos próximos (e mesmo bem distantes).

Bolo'bolo significa, ao mesmo tempo, o plural de bolo e o estado político mundial que PM espera estabelecer, onde a unidade política mais importante é a comunidade intencional de até 500 pessoas. Aliás, preciso explicar algumas coisas sobre a "língua universal" que ele propõe. Para o autor, cada bolo deve ser tão autônomo e autodeterminado quanto possível, e isso inclui a sua linguagem. Só por que dois bolos estão geograficamente próximos um do outro, não quer dizer que ambos necessitem falar português. Cada um pode ter o seu próprio dialeto, ou inventar a sua maldita língua própria desligada de toda e qualquer família filológica, se se seus membros assim decidirem. Entretanto, apesar da autonomia, os bolos precisam se comunicar. Para isso, PM propõe a asa'pili, a língua do mundo. Ele pegou fonemas desconexos entre si, e atribuiu-lhes símbolos e significados universais, e que poderiam ser utilizados em qualquer parte do planeta. "Asa" é mundo, "pili" é linguagem. Colocando-se o apóstrofe, cria-se a palavra para designar a linguagem do mundo. Ao todo, são apenas 29 palavras, que descreveriam e apontariam as experiências essenciais de todas as pessoas neste mundo. No livro, ele descreve em detalhes propostas para cada um destes termos, mas como eu acho que um resumo de tudo seria algo simplesmente inútil, considerando quão bom de ler é o livro, vou apenas listar os 28 termos e falar daquilo que mais me chamou a atenção em alguns deles:

Dysco: Comunicação
Ibu: Indivíduo
Bolo: Comunidade
Sila: Hospitalidade
Taku: Caixa de madeira com os pertences pessoais do ibu
Kana: Subdivisão do bolo
Nima: Identidade cultural do bolo
Kodu: Forma de produção agrícola dos bolos
Yalu: Nutrição, alimentação e comida
Sibi: Bens e necessidades materiais
Pali: Energia
Suvu: Água
Gano: Espaço
Bete: Saúde e seus cuidados
Nugo: Cápsula de veneno a que cada ibu tem direito
Pili: Linguagem ou comunicação
Kene: trabalho compulsório
Tega: Comunidade que une 20 bolos (bairro)
Dala: Assembléia entre vários bolos
Dudi: Delegado do bolo na dala
Vudo: Congregação de vários tegas (comarca)
Sumi: Congregação de vudos (região, estado ou província)
Asa: a Espaçonave Terra
Buni: Troca de presentes entre ibus e bolos
Mafa: Sistema de presentes socialmente organizado
Feno: Acordo de trocas mais ou menos permanente entre bolos
Sadi: Mercado de trocas
Fasi: Meios de locomoção e direito de ir e vir
Yaka: Duelo entre ibus ou grupos maiores

Estas palavras que o autor inventou podem parecer bobas (e desconfio que PM queria que elas soassem pelo menos um pouquinho idiotas, para que não fossem sacramentadas e cristalizadas), e pode parecer coisa de imbecil propor palavras novas para conceitos antigos. Contudo, apesar de achar este assunto interessante, vou encerrá-lo dizendo apenas que, dentro do sistema de bolo'bolo, elas fazem sentido e são úteis. Outros dois assuntos que considero importantes mas que fogem do escopo deste post são Nugo e Yaka, que são as maneiras como o autor incluiu a violência em seu mundo. Seria correto dar a todas as pessoas deste mundo uma maneira tão eficaz e próxima de acabar com a própria vida? E devemos instituir um sistema que dê vazão aos nossos piores instintos? Deixo a dúvida no ar, pra quem quiser discutir isso nos comentários.

O que mais me chamou a atenção no livro é o que há por trás da proposta de sua sociedade. Nos seus primeiros nove capítulos, o livro fala sobre a atual miséria existencial do mundo, que é independente de nossa classe social ou localização geográfica - ricos, pobres ou remediados; engenheiros high-tech, técnicos em eletricidade ou miseráveis - todos nós sofremos de algum jeito por causa do atual sistema econômico em que vivemos. PM chama a este sistema de A Grande Máquina de Trabalho do Mundo (A Máquina, para os íntimos). O papel da Máquina é nos fazer trabalhar e produzir o tempo todo, sem que percebamos quão miseráveis nos sentimos fazendo isso e esquecendo o que realmente queremos e gostamos. É como o comecinho do filme "Clube da Luta", em que o personagem-narrador fala em como ele tinha um emprego de merda, que o sobrecarregava física e emocionalmente, para que ele tivesse dinheiro para comprar mesinhas de centro engraçadinhas e kits de tempero que ele guardava ao lado da geladeira permanentemente vazia. Absolutamente, não era aquela a vida que ele queria para si, mas por comodismo, e pela Máquina recompensar seus esforços com dinheiro para comprar porcarias, ele seguia nela, minuto a minuto perdendo um pedaço da sua alma. Diariamente, somos bombardeados com mensagens de trabalho, dever e renúncia. "Trabalhem pelo futuro de seus filhos" a Máquina nos diz, e nós, obedientes, baixamos nossas cabeças, estudamos aquilo que não queremos estudar, trabalhamos com aquilo que não queremos trabalhar, e postergamos sempre nosso prazer e nossa felicidade, por que, se estamos felizes, é por que não estamos produzindo. Isto realmente nos faz bem? Os dados epidemiológicos de saúde, que mostram quão presente é a depressão e o estresse crônico em nossas vidas, me fazem pensar que não. E precisamos viver desta maneira? Bolo'bolo defende que não, e, diferente de muitos teóricos das ciências sociais que temos por aí hoje (olá, Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS! Aquele abraço pro Deleuze e pro Guattari! Já criaram algum conceito altamente abstrato, redundante e inútil hoje?), oferece um modelo diferente.

Neste modelo diferente, nós voltaríamos ao paleolítico, onde nossos antepassados trabalhavam apenas três ou quatro horas por dia, e dedicavam o resto de seu tempo para cuidar de si próprios: amavam, pintavam, dormiam, brincavam, rezavam, viajavam. lembro que, logo após a ocupação da reitoria da UFRGS em protesto contra a maneira como o Parque Tecnológico estava sendo implantado aqui em Porto Alegre, um meio de comunicação importante e com um arrasto para a direita fez uma piada que só quem quer voltar à idade da pedra e é meio retardado seria conta o tal Parque Tecnológico. Fico imaginando uma resposta parecida para o meu texto, defendendo o progresso e o desenvolvimento econômico como as coisas mais importantes do mundo. Mas, exasperado, eu grito: progresso para ONDE? Desenvolvimento DO QUÊ? Onde ficam as pessoas no meio disso? Como elas se beneficiam? Quem se dá bem com o tal do progresso? Os grandes executivos? Nem eles, eu aposto, que de tão preocupados que ficam com dividendos e ações e lucros que esquecem de usufruí-los! Alguma coisa está muito errada com o mundo, nós estamos sofrendo por causa disso, e mesmo assim insistimos em fazer mais do mesmo - mais trabalho, mais economia, e mais dinheiro pra lavar minha consciência com drogas e bens materiais que podem apagar essa dor que nunca se vai, e que pede sempre mais e mais pra ficar quietinha no canto, como se fosse nosso cafetão.

Bolo'bolo quer mudar isso. Nesta sociedade, nosso tempo seria nosso de verdade, e não do patrão ou da empresa. As coisas ficariam mais lentas, já que ninguém ficaria trabalhando 24 horas por dia para que tudo funcionasse sem nenhum problema, mas e daí? Sempre teríamos todo o tempo do mundo para fazermos o que bem entendessemos, sem pressa nenhuma. Li em algum canto escondido da internet que "para quem não tem pressa, todos os lugares estão à distância de uma caminhada". No bolo'bolo, seria sempre assim, não apenas para viagens, como para o próprio trabalho. A sociedade seria baseada tanto nos pequenos prazeres, como o de comer torta de chocolate depois do almoço, como na felicidade de construir algo novo e positivo para o mundo, ao invés de ficarmos girando a roda dentada do progresso para outra pessoa ficar girando outra roda teoricamente mais privilegiada. Esta é a parte mais bonita do livro. Ao invés de cair na mesma falácia que os partidos comunistas e socialistas defendem, de engrandecer uma classe social e tripudiar em outra, bolo'bolo reconhece que todos nós sofremos por causa do sistema, mesmo os ditos favorecidos.

Resta, por fim, a pergunta de um milhão de dólares: isso funcionaria no mundo real? Por mais sólido e bem construído que o livro seja do ponto de vista teórico, resta saber se ele poderia sair do plano das idéias e ser implantado neste mundo de carne, osso e sangue em que vivemos. Num capítulo intitulado "Cronograma Provisório", PM defende que, em até cinco anos após a publicação original do livro (1983), nós poderíamos instituir o bolo'bolo, e que todos os atrasos seriam de nossa exclusiva responsabilidade. Será mesmo? Eu olho pela janela do meu quarto, e vejo o mesmo mundo angustiado e sofrido em que eu nasci, em 1988, e não vejo nem bolos, nem sila, nem bete: apenas kene e dor. Será que nós nos atrasamos tanto assim, ou será que PM subestimou o poder da Máquina sobre nossas ações, ou mesmo nossa natureza egoísta e reacionária? Sinceramente, não sei. Um bolo sozinho e isolado no mundo poderia dar certo por algum tempo, vindo a se tornar até mesmo uma Zona Autônoma Permanente, porém, no fim, ele se desmancharia, como as utopias piratas e mesmo a nossa ocupação da reitoria da UFRGS. Para que bolo'bolo venha a se tornar realidade, precisa acontecer em todo o planeta, praticamente ao mesmo tempo. Será que somos capazes de fazer uma coisa dessas?

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Julho não passará em branco

Uma época, muito tempo atrás, eu tinha o compromisso pessoal de escrever pelo menos um post por dia para o blog. Este compromisso, porém, teve que ser abandonado por causa das muitas responsabilidades que assumi desde o terceiro ano de faculdade, e acabei diminuíndo a freqüência obrigatória de posts de 1 por dia para pelo menos 1 por mês.

Então, aqui está o post de julho.

Mas não pensem que postei isso só pra não me sentir culpado! Não senhor! Tenho planos para o próximo mês, planos que envolvem escrever mais do que apenas um texto de mea culpa. Primeiro, retomarei a minha série sobre utopias, para a qual já tenho dois textos planejados. Já comecei a escrever um texto sobre os dois últimos filmes da série Harry Potter (não por que ninguém nunca pensou em escrever sobre isso, ou por que não temos textos o bastante sobre esses filmes e esta série, mas por que eu gostei e quero escrever a respeito), e, dependendo do meu humor, pretendo escrever uma resenha sobre o livro que acabei de ler, "Memórias de um Doente dos Nervos", e algo sobre disciplina e Kung Fu, como já fiz antes por aqui.

Anyway, este blog não morreu. Não ainda. Só está em coma, e como aquele episódio de House provou pra todo mundo, pacientes em coma profundo há muito, muito tempo eventualmente acordam para fazer alguma coisa interessante, e morrerem em uma gloriosa explosão de heroísmo. Ou ficam lá, fazendo suas necessidades deitados, e morrem sem ninguém notar. Sei lá.