domingo, 28 de setembro de 2008

Coisas que não quero para minha vida.

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Fonte: Subnormality.

Eu e a Psicanálise

É bem comum, entre pessoas leigas, confundir Psicologia com Psicanálise. A primeira é a ciência ampla que estuda todo o espectro de fenômenos humanos, e a segunda uma abordagem teórica-clínica que, apesar de ser uma parte muito importante da Psicologia, não é sua totalidade. Ainda assim posso garantir, com possibilidade máxima de erro em 1%, que todos os estudantes de Psicologia do Brasil, estejam formados ou não, ao falarem de seu campo de atuação para alguém que acabaram de conhecer (num barzinho, por exemplo), já tiveram que responder a comentários sobre análise e Freud (os mais comuns sendo “tu está me analisando?” e “o que Freud diria sobre meu hábito de [insira bizarrice aqui]?"). E posso garantir também que todos foram capazes de responder de forma mais ou menos satisfatória, sendo fãs de Freud and buddies ou não.

Creio que seja necessário um pouco de história para explicar por que isto acontece. Como vocês podem imaginar, o mundo era um lugar muito diferente em 1895 do que é hoje. A diferença que acredito ser mais significativa para este texto é na Psicologia, tanto como ciência quanto como fenômeno.

No final do século XIX e início do XX, a ciência dominava porções cada vez mais amplas da natureza, através da adoção de metodologias mais rigorosas, que consistiam em estudar essencialmente apenas aquilo que podia ser visto e quantificado de alguma maneira. Reinava o pensamento no mundo ocidental que, através da ciência e da racionalidade, nada seria impossível. E é neste ambiente que nasce a Psicologia. Tomando como modelo as ciências mais velhas, os psicólogos da época buscam estudar a consciência e descobrir suas partes utilizando a mesma metodologia que fizeram o sucesso da Física e da Biologia. Mas como estudar um objeto tão complicado como o ser humano desta maneira? Por causa disto, a Psicologia tornou-se uma ciência humana um tanto quanto distante dos seres humanos que se propunha a estudar. Esta fé na racionalidade não se restringia apenas à ciência, e estendia-se a praticamente toda a sociedade ocidental. Falava-se muito em virtudes, e escondia-se todo o tipo de pecado e sujeira, especialmente a sexualidade, que era reprimida de forma muito dura.

E, no meio de tudo isto, longe da academia e cuidando de sua clínica particular, se encontrava o jovem neurologista Sigmund Freud. Ele estudara junto com alguns dos mais renomados psicopatologistas e psiquiatras da época, especialmente Josef Breuer, com quem escreveu o agora clássico “Estudos sobre a Histeria”. Com base neste livro, Freud desenvolveu uma teoria revolucionária do comportamento humano: não somos criaturas completamente racionais, nem virtuosas. Somos, na maioria dos casos, determinados por variáveis inconscientes e pouco louváveis, e que somos criaturas essencialmente sexuais. Se dissermos isto hoje em alguma palestra por aí, poderemos causar certo mal-estar entre os presentes, mas nada digno de nota, pois isto se tornou parte do senso comum. Na hipócrita sociedade do começo do século XX, onde todos os homens de respeito tinham uma amante e falavam de castidade, isto foi um verdadeiro choque. Freud iniciara uma verdadeira revolução paradigmática, injetando sangue novo na Psicologia e na Psiquiatria, e até hoje seus escritos cheios de insights inspirados causam polêmica, e é impossível estudar Psicologia sem ler nenhum de seus textos.

Se ela ler este texto aqui, minha professora de História da Psicologia vai ter uma crise de consciência por ter me dado aula, pois resumi grosseiramente mais de um século de muitas reviravoltas, mas isto explica porque todos os estudantes de Psicologia são capazes de falar de Freud. Além de impossível, é indesejável para qualquer estudante de Psicologia não ler nenhuma de suas obras. Curiosamente, entre os psicanalistas que me dão aula não há nenhum freudiano. Nosso amigo Sigmund era um homem muito inteligente, e atraiu muitos discípulos, mas ele também era dogmático e tirânico, proibindo seus seguidores de alterarem sua teoria. Isto gerou muitas quebras de relacionamento e novas teorias psicanalíticas, que por sua vez também geraram muitas quebras de relacionamento e novas teorias psicanalíticas, tornando a psicanálise muito fragmentada. No nosso Instituto de Psicologia, os psicanalistas seguem os ensinamentos de Jacques Lacan, que pregou um “Retorno à Freud”, e reinterpretou toda a teoria psicanalítica original de forma muito... original. E é entre os lacanianos que devo situar minha relação com a psicanálise.

Já entrei na faculdade detestando a psicanálise. Meu pai, já formado em Psicologia, muito criticou os psicanalistas, e até me mostrou um livro absolutamente incompreensível (original, portanto) escrito por um. Era, no primeiro semestre, um ferrenho defensor das Terapias Cognitivo-Comportamentais e de sua adoção. Mas eu era bem dogmático também, e sem muitos argumentos. As conversas com meus colegas, as leituras e as aulas me levaram a um gradual afrouxamento de minhas convicções. Tive várias fases: a cognitiva, a comportamental, a humanista e também a psicanalítica. A cada leitura, a firmeza de minha fé era abalada, pois era levado a considerar todos estes pontos de vista, por absurdos que possam ter soado aos meus ouvidos, poderiam estar corretos. Tive a obrigatória crise existencial teórica pela qual todo bom estudante de Psicologia passa um dia. Convenci-me da veracidade de muitos deles, inclusive de muitos psicanalistas. Porém, por mais tolerante que me tornara, nunca ficara completamente satisfeito com a psicanálise que me é ensinada. Sim, eles podem estar certos apesar de serem incompreensíveis, herméticos e empolados, e posso no futuro tornar-me um lacaniano. Só que duvido muito.

Contudo, muito recentemente, cheguei à definitiva conclusão de que nunca serei um psicanalista. Em nome da diversidade teórica, inscrevi-me em dois cursos de extensão diferentes: o primeiro, era sobre “A Interpretação de Sonhos” de Freud, e foi dada por um dos maiores expoentes brasileiros em psicanálise lacaniana; o segundo, apesar de intitulado “Os Conceitos Fundamentais da Psicanálise Freudiana” também é dado por uma seguidora de Lacan. No minicurso sobre sonhos, o professor falou que a força de vontade é importante e nos trouxe muitos progressos, mas que no fim, somos sujeitos do desejo – ele manda em nós. E na última aula de “Conceitos Fundamentais...”, a professora falou que o amor não existe. Ele é uma mera ilusão, mas que podemos encontrar uma boa parceria e viver uma vida relativamente confortável. É a filosofia do status quo: vivemos nossa vida miserável fingindo que estamos no melhor dos mundos, pagamos o analista para ele ficar nos escutando e confirmando nossa mentira diária, mantemos tudo como está por que não há esperança e todos ficam felizes com isto. Nenhuma discussão epistemológica, nenhum texto absurdo falando sobre as gônadas das pombas e nenhum professor profundamente prepotente me convenceram de forma tão contundente que a psicanálise lacaniana é um absurdo e uma perda de tempo quanto estas duas afirmações, ditas de forma tão sóbria e com ares de tamanha sabedoria. Foi assim que descobri que não quero ser mais um destes acomodados.

É interessante notar que, pelo menos na UFRGS, existe uma dicotomia que meus bixos muito apropriadamente chamaram de “A Psicanálise versus o Resto do Mundo”. Neste conflito, a psicanálise coloca-se como defensora de toda subjetividade e liberdade humanas, contra todas as outras forças positivistas da ciência, que busca esmagar a tudo e a todos com sua objetividade controladora. Ó, a ironia!