sábado, 14 de abril de 2012

Aborto, Anencéfalos e Mulheres

Nos últimos tempos, tenho desenvolvido um interesse crescente por um tema que, antigamente, eu simplesmente ignorava: feminismo. Por um misto de preguiça, desconhecimento e preconceito, achava que o feminismo era apenas um tipo organizado de ódio aos homens, um movimento tão preconceituoso quanto qualquer grupo neonazista. Porém, quando comecei a conviver com feministas na universidade, e a me dar ao trabalho de estudar um pouco a respeito, percebi que o feminismo é a crença de que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, e a vontade para tornar esta crença realidade. Muita gente realmente acredita que as mulheres são iguais aos homens, que merecem tratamento igualitário e sem preconceito. Entretanto, também acreditam que não há nada por ser feito - a batalha já está ganha, as mulheres já são iguais aos homens em direitos, não vê quantas mulheres ocupam cargos de chefia em empresas importantes? É neste ponto que as feministas chamam a atenção para si, por que, embora muitos progressos tenham sido conquistados pelos direitos das mulheres, estas conquistas de maneira geral beneficiam apenas as classes econômicas mais elevadas, e não são tão fenomenais quanto queremos acreditar. Enquanto pensamos que vivemos em uma sociedade igualitária, todos os dias milhares de mulheressão agredidas, estupradas e mortas, muitas vezes pelos próprios maridos ou namorados, que recebem da sociedade a mensagem de que suas esposas não são suas companheiras, mas suas propriedades, e que podem fazer o que bem entendem com elas, quando bem entendem. E ao invés de causar horror, isto é tratado como se fosse absolutamente normal, por que ela usou uma saia muito curta, saiu da linha e foi desaforada, pulou a cerca.

Este pensamento também se aplica à gravidez e ao aborto. É no corpo feminino que os novos seres humanos são gerados, e é sem exagero que digo que este é o ponto mais importante de toda e qualquer sociedade de todos os tempos, em todos os cantos do mundo. Se não for possível criar mais membros de nossa cultura, como perpetuá-la? É uma tremenda responsabilidade ter um filho, e, apesar de toda esta responsabilidade, as mulheres não têm quase nenhuma liberdade para decidir se realmente desejam assumi-la. Por muito tempo, elas foram tratadas como fábricas de bebês, que devem parir um novo herdeiro por ano, para aumentar o patrimônio de seu dono, o marido. Colocar as coisas desta maneira é chocante, e respiramos com alívio ao pensarmos "ainda bem que não é mais assim." Bom, nem tanto. Até dois dias atrás, era proibido a realização do aborto de bebês anencéfalos, isto é, que se formam sem o crânio dentro do útero. Não apenas era proibido, como era considerado crime. Para evitar uma gravidez de alto risco, capaz de matar a mulher e causar seqüelas psicológicas graves, tanto mulheres quanto profissionais da saúde precisavam agir fora da lei, e correr o risco de serem presos. E, mesmo que o risco de ir para a prisão não fosse tão grande assim, ainda havia a certeza do estigma de ter feito um aborto.

Quando foi anunciado que o direito de fazer aborto de fetos anencéfalos seria decidido pelo Supremo Tribunal Federal, organizações religiosas e tradicionais se uniram, e levantaram bandeiras dizendo "defender a vida" por que crianças anencéfalas também têm direitos. No Facebook, e em diversas outras redes sociais, várias imagens e memes foram compartilhados defendendo a "vida" destas crianças, atacando as mulheres que fizeram aborto e quem quer que defendesse este direito. Em todas estas defesas da vida, se partia do pressuposto de que a mulher deve, sempre, não importam as circunstâncias, levar sua gravidez até o final, mesmo que isto a mate ou a coloque em risco de vida. É o dever dela, dado por Deus, e que portanto deve ser respeitado. Se ela sente medo, se ela não quer, se o bebê for incapaz de viver mais do que uma semana, ah, isso é irrelevante.

Por isso, apesar de ter sido uma grande conquista o direito de realizar aborto de fetos anencéfalos, ainda é uma conquista muito pequena. É como conquistar o direito de fazer operações para remover tumores malignos do útero, ou de ter um atendimento em saúde decente, ou de não apanhar do marido. É algo que consideraríamos óbvio, e não uma questão polêmica. Mesmo assim, a decisão do STF virou assunto de notícia, e foi transmitido ao vivo para todo o Brasil, como se fosse jogo da Copa do Mundo. As mulheres ainda são cidadãs de segunda classe, e qualquer movimento para mudar esta situação é vista como revolucionária, fantástica ou inimaginável.

Foi uma vitória triste, mas uma vitória mesmo assim, e merece ser comemorada. Não quer dizer que devemos nos acomodar, e sim nos esforçarmos ainda mais para que a injustiça contra as mulheres diminua e desapareça. Esta não é uma luta meramente feminina, mas de todos nós.