domingo, 3 de junho de 2012

Sobre comer carne

Acho que não é novidade pra ninguém, mas eu sou vegetariano. Isto é, eu não como carne. Fiz esta escolha por que não quero compactuar de maneira nenhuma com uma indústria que causa dor e sofrimento para seres vivos e conscientes apenas para satisfazer meu delicado paladar. E é por isso que eu fico especialmente incomodado com um certo argumento que frequentemente as pessoas me dão para justificar o por que elas continuam comendo carne: "eu não conseguiria viver sem".

Quero que fique claro: se você sentar comigo em um restaurante com um bife bem sangrento, eu não vou te fazer cara feia. Eu não vou dizer que você está comendo um cadáver, ou que você também é responsável pela morte de um ser vivo. Posso até pensar todas estas coisas, mas não direi nenhuma delas, por que não quero estragar o seu almoço e, principalmente, por que não quero forçar você a fazer algo que não acredita. O que colocamos em nosso prato é uma escolha ética muito importante, e o que você decide comer ou não deve ser algo que faça sentido para você, e não para mim. Levei pelo menos três anos cheios de dúvidas e recaídas para finalmente virar 100% vegetariano, e não tenho nenhum direito de acelerar o processo de ninguém. Agora, eu sou honesto com você, então, por favor, seja honesto comigo e não invente desculpas esfarrapadas como o argumento do "eu não conseguiria viver sem carne".

Sim, devem existir pessoas no mundo que precisam de carne para viver, seja por questões médicas, seja por que não há mais nada o que comer em sua região. Não estou falando destas pessoas. Paradoxalmente, estas pessoas que realmente precisam de carne para viver nunca usariam este argumento, por que o problema ético de comer ou não comer carne para elas é inexistente ou irrelevante. Estou falando de pessoas que vivem em uma situação financeiramente confortável, possuem boa educação e preocupam-se com problemas morais mas que, por algum motivo que eu não consigo realmente entender, excluíram as considerações alimentares da esfera da ética por que dizem para si mesmos que "bah, não dá pra viver sem carne. É da minha natureza, sabe?"

Quero pegar este argumento e brincar com ele um pouco. Vamos substituir os termos, e ver se muda alguma coisa:

Não conseguiria viver sem fumar crack. Eu sou viciado mesmo, sabe?

Não conseguiria educar meus filhos sem bater neles. É assim que as coisas tem que ser, sabe?

Não conseguiria viver sem estuprar mulheres. Elas tem que obedecer, entende?

Peguei pesado com as comparações, mas por um bom motivo. Todas elas possuem quatro características em comum com o argumento do "não posso viver sem carne." A primeira é que todas elas envolvem uma busca egoísta por benefícios para si, a despeito de se causar sofrimento ou dano para outros seres vivos. O ganho obtido, seja prazer, alívio ou obediência justificam o mal causado. A segunda característica é uma naturalização da própria escolha. Não se parte do princípio que tal comportamento é fruto de uma longa história de aprendizado, uma construção, e que outro comportamento pode ser aprendido para substituí-lo se assim for necessário. Não. Se parte do princípio de que as coisas sempre foram assim e sempre serão: comer carne é da nossa natureza, eu sou um viciado e preciso de crack, crianças precisam obedecer os pais, mulheres devem fazer sexo quando seus maridos assim desejam. Naturalizando a própria escolha, se exclui qualquer possibilidade de consideração ética e, portanto, de mudança, por que é necessariamente a escolha mais ética possível.

A terceira característica é uma conseqüência da segunda: todas as justificativas de certa forma denigrem o ser humano. Tal tipo de argumento desculpa e justifica um comportamento inadequado ou impensado com a exclusão da capacidade humana de mudar a si próprio quando necessário ou desejado. Dizer que "é assim que tem que ser" é basicamente admitir que se é mera marionete na mão de forças superiores, incompreensíveis e incontroláveis, e que não possui força para vencer uma coisa tão banal quanto a satisfação de um prazer tão baixo quanto o paladar.

A quarta e última característica é a desonestidade que vem embutida no seu fatalismo. Talvez seja moralismo da minha parte, especialmente no que diz respeito a comer carne, mas justificar o próprio prazer de forma tão determinista é mais preguiça de mudar um hábito tão incrustrado que limitou as tuas possibilidades existenciais do que uma verdadeira impossibilidade de mudar. "Eu não conseguiria viver sem carne" pode ser um argumento mais suave, diplomático do que simplesmente dizer "como por que gosto e não quero parar", mas é muito mais covarde, por que não expõe francamente o que lhe motiva a manter tudo na mesma.