sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Radical e Dogmático

Somos criaturas de linguagem, e vivemos entre palavras, cujos significados se perdem ou se modificam sem que nos demos por conta. Por isso, para mantermos a nossa clareza de julgamento, é necessário que revisemos estes significados de tempos em tempos, pois algumas palavras bem definidas podem esclarecer muitas coisas, e melhor orientar nossa conduta.

Quando alguém usa o termo "radical", dificilmente se refere a uma coisa boa. A "ala radical do PT" a que continua sendo de esquerda, os "muçulmanos radicais" e as "feministas radicais" todos tem uma coisa em comum: são vistos como agressivos, exagerados e inflexíveis, pelo menos por quem os define como radicais. Este adjetivo é usado para descrever indivíduos ou grupos que não apenas exageram, como também não querem deixar de exagerar de jeito nenhum, por que são eles que estão certos.

Entretanto, quando se procura pela palavra no dicionário (eu usei o Michaelis Virtual) o que se encontra é o seguinte:

1 Pertencente ou relativo à raiz.
2 Que parte ou provém da raiz.
3 Relativo à base, ao fundamento, à origem de qualquer coisa; fundamental.
4 Completo: Cura radical.
5 Que pretende reformas absolutas em política.

Nenhuma das definições oferecidas por este dicionário se enquadram naquelas que descrevi anteriormente. Por que? Não posso garantir com certeza, mas defendo a hipótese de que a palavra "radical", ao longo do tempo, teve seu significado primordial esquecido, e, por uma série de fatores históricos, como o surgimento de muitos grupos político-religiosos radicais violentos, passou a ser usado em outro contexto verbal. Por isso, quando hoje alguém te chama de radical, é por que esta pessoa provavelmente considera as tuas idéias, sentimentos e atitudes perigosamente exagerados, e que tu precisa diminuir a intensidade deles. Será mesmo? Todo radicalismo deve ser necessariamente combatido? Antes de responder esta pergunta, faço outra: a palavra radical é a mais adequada para descrever este tipo de pensamentos, sentimentos e comportamentos?

Vamos considerar outra palavra que também é usada para descrever condutas socialmente mal vistas - dogmático:

1 Relativo a dogma.
2 Conforme a um dogma.
3 Decisivo.
4 Que se pretende impor com autoridade; autoritário, sentencioso.
5 Pedantesco.

Comparando as definições das duas palavras, ficamos com a clara impressão de que, se quisermos descrever um grupo ou indivíduo conhecido por suas tendências terroristas, é linguisticamente mais adequado associá-lo a um adjetivo que o caracteriza como "pedantesco" e que "busca se impor com autoridade". Entretanto, não me parece inadequado continuar a descrevê-los como radicais, visto que eles também buscam reformas absolutas e mudanças completas em algum aspecto da sociedade. Então, faço uma terceira pergunta: pode uma só dessas palavras absorver o significado da outra?

Minha resposta agora é clara: não. Apesar de frequentemente as associarmos na vida real, elas descrevem aspectos diferentes do comportamento. O radicalismo implica em ir até a raiz de um problema, levar uma crença ou opinião até à sua conclusão lógica, enquanto que o dogmatismo se refere a considerar uma idéia como correta independente do que dizem os fatos, e tentar usá-la em mais situações do que ela poderia ser útil (além, é claro, de tentar impô-la a outras pessoas). Dentro desta perspectiva que aqui apresentei, ser radical não é um problema: pelo contrário, o problema maior que enfrentamos atualmente é a falta de radicalidade das pessoas, que acreditam em ideais de justiça, verdade e bondade, mas que não os realizam, não os levam a bom termo por que fazê-lo seria por demais desconfortável e incômodo. Sim, os terroristas são radicais, já que estão dispostos a explodir meio mundo por causa de suas crenças. Contudo, eles também são dogmáticos, e não aceitam a possibilidade de acreditarem em algo que esteja errado. É seu dogmatismo que torna seu radicalismo perigoso.

Se fossemos mais radicais - nos dispusessemos mais a correr riscos, a testar nossas idéias e levá-las até suas últimas conseqüências - e ao mesmo tempo temperarmos nosso dogmatismo natural com com generosas doses de tolerância, compreensão e empirísmo (deixar-se modificar pela experiência), talvez nosso mundo seria um lugar mais agradável de se viver, por que viveríamos muito mais de acordo com nossos valores mais profundos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Blogs e Produção de Conteúdo

No post de ontem, falei sobre a necessidade de mantermos a informação circulando livremente para que possamos criar uma sociedade mais livre. Falei um pouco sobre blogs, e o papel que andam cumprindo de quebrar o monopólio da Mídia Tradicional. Após ter publicado o texto anterior, percebi que há muito mais a ser dito sobre este assunto.

Antes de mais nada, é necessário dizer que, embora eu tenha falado em blogs (e tenha até colocado o termo no título desse texto), eles são apenas parte de um fenômeno mais amplo, que é conhecido por Conteúdo Gerado por Usuários (do inglês User Generated Content - UGC). UGC, de maneira geral, é todo conteúdo original produzido por pessoas que não estão diretamente ligadas à Mídia Tradicional, através de sites pessoais, vídeos, blogs, comentários em sites alheios, o diabo (quem tiver interesse, a Wikipedia tem um artigo sobre isso). Onde o UGC começa e onde ele termina não é muito claro para mim, já que é possível um jornalista contratado pela Zero Hora ter um blog pessoal, ou companhias mais tradicionais podem usar algum tipo de recurso UGC para interagir com seu público alvo. Ainda assim, o fenômeno é bastante claro, e pode ser resumido da seguinte forma: cada vez mais pessoas têm acesso direto aos meios de comunicação, sem a necessidade de algum mediador, como jornais, revistas ou emissoras de televisão.

Isto tem uma série de efeitos. O primeiro, do qual eu já falei no texto anterior, é a quebra do monopólio da informação. Como mais e mais pessoas estão compartilhando seus pontos de vista sobre os fatos importantes, não precisamos mais acreditar no que a Globo, a Record ou a CNN nos dizem. O caso da desocupação do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, é um bom exemplo disso. Enquanto que a revista Veja publica um artigo escrito por um senador do PSDB afirmando que tudo ocorreu dentro dos conformes, sem nenhuma morte ou violência, milhares de blogs e perfis no Facebook divulgam fotos e informes em primeira mão dos crimes cometidos pela Polícia Militar, como o assassinato de uma criança de um ano, a agressão gratuita contra jornalistas e partidários da esquerda, e a prisão ilegal de deputados e senadores ligados à causa dos direitos humanos que lá foram investigar o que estava acontecendo. Quem está falando a verdade aqui? Em última análise, eu não tenho como saber com certeza, por que não estive em Pinheirinho, mas não preciso aceitar a versão da Veja como a última palavra, e escolher em quem eu acredito, baseado em considerações racionais (por exemplo: será que a Veja teria algo a ganhar ao defender as causas do PSDB e atacar os partidos de esquerda, especialmente o PT? Muito provavelmente, para ficar nos eufemismos).

Há, contudo, outros efeitos do UGC que eu não discuti no post anterior. O primeiro deles é que só por que aumentou a quantidade de conteúdo disponível não quer dizer que este conteúdo seja de boa qualidade. É a famosa Lei de Sturgeon, que afirma que "90% de tudo que já foi feito é porcaria." Essa lei se aplica aos blogs, vlogs e tudo o mais que está sendo produzido por usuários da internet. Deve-se levar em conta que estes novos produtores de conteúdo não são profissionais da área. Como eu, ganham seu dinheiro trabalhando em alguma coisa não relacionada à mídia, e usam seu tempo ocioso para escrever um texto ou gravar um vídeo discutindo algum assunto do seu interesse. Eles não são pagos para isso. Aliás, é razoável dizer que eles precisam pagar para produzir conteúdo, seja através da conta da internet, seja utilizando um tempo que poderia ser empregado trabalhando para ganhar mais dinheiro. Neste caso, a Mídia Tradicional tem uma vantagem, que é a de contar com profissionais dedicados exclusivamente a produzir conteúdo, treinados e pagos para investigar, pesquisar, escrever e editar informações. Isto não significa que o conteúdo produzido pelos jornais e mídias tradicionais seja de melhor qualidade do que aquele gerado por usuários (as milhares de gafes que aparecem em sites profissionais como o G1 que o Cardoso adora cutucar são prova disso), mas que ele é feito em melhores condições, o que aumenta a probabilidade de ser de melhor qualidade, ou de ser mais amplamente distribuído.

Penso que ainda não existe nenhum blog que possa competir em influência com a Veja ou a Zero Hora principalmente por isso. Entretanto, também tenho a impressão de que a influência gerada pelo UGC é diferente daquela exercida pela velha mídia. Em primeiro lugar, ela é muito mais quantitativa do que qualitativa. Quando leio uma reportagem da Veja ou qualquer outra revista, é o nome dela, a "grife", que me diz que estou lendo informação de boa qualidade (ou não, já que é da Veja que estamos falando). Nas redes sociais, penso que a quantidade de pessoas compartilhando uma notícia é bastante importante, por que mostra o "buzz", ou a mobilização gerada pela notícia. Em segundo lugar, ela é muito mais pessoal e próxima. Aquilo que eu sei sobre o caso Pinheirinho eu não li na Veja: recebi de amigos e conhecidos, pessoas próximas, que conheço pessoalmente e em quem confio. Posso conhecer o nome de um ou dois jornalistas contratados pela Zero Hora ou pelo Pioneiro, e até mesmo ser capaz de identificar o estilo deles de tanto que li seus textos, mas continua sendo uma relação bastante impessoal e distante. Então, se minhas hipóteses estiverem corretas, não é possível, nem desejável, que um único blog se torne tão influente quanto uma revista de grande porte, por que então perderia sua característica pessoal e humana, e se tornaria apenas uma revista virtual. Entretanto, posso estar equivocado, e um site mantido por usuários, e não por profissionais da informação, se mantenha pessoal e próximo como a maioria dos blogs, mas exerça uma influência grande o bastante para ameaçar a grande mídia. Não posso citar nenhum exemplo disto até agora, mas portais de entretenimento como o Channel Awesome estão, penso eu, bastante próximos disto.

EDIÇÃO: Encontrei um texto do Cardoso que merece ser compartilhado aqui - "Cazaquistão e o oposto do sofativismo." É uma ótima leitura, e um ótimo exemplo do que falei no post anterior.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Informação e Anarquismo

Todas as culturas humanas, sem exceção, dependem da transmissão de informação. Como não podemos depender exclusivamente dos nossos instintos para sobreviver, o conhecimento acumulado ao longo das gerações, bem como aquele que está sendo descoberto e testado aqui e agora, é extremamente valioso. Não quero me alongar muito nesse ponto, mas, para mostrar o quanto isso é verdadeiro, olhe ao seu redor e pense: quais destes objetos que eu uso não foram fruto da troca de informação entre seres humanos? Os livros que você lê, a cadeira em que você se senta, o computador que você usa e até mesmo a construção que você habita são todos frutos do treinamento de alguém, que não seria possível se não fosse nossa capacidade de acumular e transmitir informação.

Então, quem detém os meios de propagação possui um poder bastante considerável. Os melhores exemplos disto são as universidades, que educam a "elite intelectual" de nossa sociedade, e as empresas de comunicação. Quem estiver de bem com estas instituições, está de bem com o poder estabelecido - ganha títulos de Doutor Honoris Causa, é chamado para dar sua opinião de especialista no Fantástico, maiores e melhores propostas de emprego, mais dinheiro e mais influência. Por outro lado, se você está de mal com essas instituições, pior pra você.

Sabendo que a distribuição da informação pode fazer qualquer pessoa ou projeto progredir ou afundar, sempre foi do interesse daqueles que buscam o poder controlar quais informações podem ser divulgadas para o público ou não. Isto fica óbvio quando olhamos de perto as práticas de qualquer ditadura moderna, e vemos que elas gastam uma energia considerável para manter a censura forte, e os jornais estatais como a única fonte de notícias para sua população. Para estados totalitários, qualquer informação dissonante da oficial é uma ameaça, e sua propagação deve ser impedida a qualquer custo. De cada acontecimento, só pode existir uma versão, a do governo, A Verdade, sendo todo o resto classificado como "propaganda subversiva", "mentira de comunistas" ou "lavagem cerebral". Por isso, é do interesse dos governantes ter uma relação de melhores amigos com os meios de comunicação, para que estas endossem "A Verdade" e não dêem espaço para qualquer outra possível explicação.


O problema é que isso não acontece apenas nos chamados estados ditatoriais, mas também nos chamados "estados democráticos". Pode ser que a censura não seja tão escrachada quanto na China ou na Coréia do Norte, mas acontece. A charge ali em cima é uma das coisas mais geniais que já vi na internet, não apenas por fazer uma comparação muito boa entre as antigas capitanias hereditárias e nossa mídia, como também por deixar clara a natureza oligárquica dos nossos meios de comunicação. Vivemos em um país livre? Sim, desde que nossa liberdade não interfira com os interesses das Grandes Famílias ali em cima. O melhor exemplo disso foi o caso em que o filho do sr. Sérgio Sirotsky foi acusado de estuprar uma menina menor de idade. Teoricamente, em uma sociedade livre, tal acontecimento seria de alguma maneira noticiado, por que é o filho de um cidadão bastante importante cometendo um crime bastante grave. Apareceu na RBS? Obviamente não. Aliás, o blogueiro que denunciou o caso foi encontrado morto de maneira misteriosa, o que é uma estranha coincidência, na minha opinião.

Por um lado, a informação deseja ser cara, por que seu valor é muito alto. Mas, por outro, a informação busca ser livre. Não posso garantir esta hipótese, mas tenho a impressão de que o primeiro sinal de que uma ditadura está enfraquecendo é a maior quantidade de fontes diferentes de informação. A maior disponibilidade de meios de notícia, fora do controle estatal, indica que é possível acreditar em outras versões da realidade que não aquela oferecida pelo Estado. Se esta disponibilidade não é a causa direta para a queda de regimes totalitários, certamente é uma variável muito importante a ser levada em conta. Os revolucionários anarquistas e socialistas europeus do século XIX certamente sabiam disso, tanto que, onde quer que fossem, fundavam algum jornal ou revista para servir de meio de transmissão de suas idéias. Como a censura era forte, volta e meia estes jornais e revistas eram fechados ou proibidos de circular, o que apenas fazia com que outros aparecessem em seus lugares.


Fico imaginando o que estes revolucionários do século XIX, especialmente os anarquistas, diriam da internet. Mais interessante ainda seria o que eles fariam com ela. A rede mundial de computadores é o maior experimento anarquista de que tenho conhecimento, com toda essa informação livre correndo por aí e passando de mão em mão, de tela em tela, sem nenhum controle externo muito forte. Também é interessante que os governos dos EUA e da Europa estejam tentando aprovar legislações anti-pirataria que cortariam drasticamente o fluxo de informações entre usuários da internet, como o SOPA, PIPA e a ACTA. Usando do discurso da "Lei e da Ordem", afirmam que a pirataria digital é um perigo para a propriedade intelectual e produção criativa mundial. Acho difícil acreditar nisso, especialmente se considerarmos todos os séculos em que os Estados dominaram os grandes meios de comunicação e transmissão de informação. Muito se debocha da internet, dizendo que ela é 35% pornografia, 35% figuras de gatinhos, 30% pornografia japonesa e 40% pessoas reclamando de barriga cheia (eu uso o sistema russo de porcentagem, a propósito), e que seu poder de propagação de informação ainda é inferior ao dos grandes jornais e revistas. Porém, ela tem o potencial para crescer muito, e tornar-se muito mais influente do que a Mídia Tradicional, e muito mais democrática, no sentido de qualquer um poder contribuir. Acho que os Estados já perceberam esse potencial, e estão tentando cortar o mal pela raiz.

E é aqui que a filosofia anarquista entra mais uma vez. Tal como falei no post anterior, a anarquia não é desordem, mas uma organização que não necessita de um ponto centralizador, como o Estado ou a Igreja. Nela, todos contribuem da maneira que podem. Isso ficou muito claro nas manifestações contra a aprovação das leis anti-pirataria, que foram mundialmente expressivas. Penso que os blogs hoje ocupam o mesmo papel dos antigos jornais subversivos, com muito mais poder de divulgação e muito menos riscos de repressão estatal. Contudo, esta situação não é dada, muito menos natural: é conquistada e merecida. Pode ser ingenuidade da minha parte (como todo bom idealista costuma ser), mas é a partir da colaboração mútua entre indivíduos livres que a nova sociedade está sendo construída, e não da invenção de "novos" sistemas políticos "perfeitos". Manter a internet livre, tal como ela é hoje, sem legislações repressoras, é a primeira e mais crucial tarefa desta construção.