quinta-feira, 9 de abril de 2009

Histórias que entretêm - Passeio Etílico em Uruguaiana (Parte II)

O problema com a tomada de decisões é que, uma vez tomada uma decisão, ela precisa ser posta em prática para que se torne efetiva. Por mais idiota que esta afirmação possa parecer, nem sempre é possível que isto aconteça. Veja por exemplo minha decisão de sair da rodoviária e ir até a estrada pedir carona para voltar para Porto Alegre: antes de eu começar a fazer isso parecia muito mais fácil. O álcool e a(s) noite(s) mal dormida(s) me deixaram fisicamente mais destruído do que podia imaginar, e caminhar mais que quinhentos metros foi um verdadeiro calvário. Sem contar o problema de saber onde ficava a estrada! Nunca fui muito bom em orientação, tendo me perdido em situações muito improváveis, e não era por que eu precisava de um milagre que ele iria acontecer. Aposto que aquela mulher que escreveu "O Segredo" também nunca esteve em Uruguaia sem um pila no bolso.

Outros problemas tornavam-se óbvios para mim enquanto me arrastava em qualquer direção em que acreditasse ficar a rodovia para a Capital: aparência e odor. Aparentemente, quando se farreia alucinadamente ao longo de 500 ou 600km por três dias a última coisa que passa em sua cabeça é higiene. Isso, pelo menos até você deixar o estado de entorpecimento ensandecido e perceber que, bem, você está todo vomitado, mijado e fedendo e que não gosta disso. Gostaria de pensar em como fiquei neste estado, mas meu superego, este grande filho da puta que tirou uma folga de três dias, resolveu fazer cerão agora que estou consciente, e recalca todas as informações relativas aos meus dias curtindo a vida adoidado. E, de mais a mais, dificilmente elas me ajudariam a conseguir carona.

Enquanto caminhava, contudo, fragmentos de capacidade racional retornavam à minha mente, e percebi que não ligar para meus pais foi a pior idéia que podia ter tido se quisesse evitar algum ataque cardíaco. Eu estava sumido por três dias inteiros. Não dá pra chegar em casa todo sujo e dizer que eu fui comprar cigarro e caí numa poça de lama. Quero dizer, até poderia fazer isso, mas duvido que fosse colar. Mas pensar nisso faz minha cabeça doer, então vou me concentrar no que pode me ajudar a voltar para casa, para daí então pensar em como explicar a situação.

Caminhando pela cidade, encontro uma multidão parada, olhando alguma coisa. Por uma mistura de curiosidade mórbida e instinto de rebanho, parei para olhar o que era tão interessante. Não era nada tão chamativo quanto um show itinerante ou uma pilha de cadáveres, mas, credo, era bizarro: era um fusca pendurado em uma árvore, e uma força tarefa de brigadianos e bombeiros estava tentando trazê-lo para baixo (sem muito êxito). Por um momento distraído de meus próprios problemas, passo a formular hipóteses de como isto teria acontecido e quem estaria por trás do volante naquele momento. "Devia ser alguém mais louco que o Bozo pra fazer isso" penso eu. Daí percebo que EU estive mais louco que o Bozo nos últimos três dias e que tinha acordado na rodoviária de Uruguaiana sem saber como tinha chegado ali. Uma pichação no fusca dizendo "pinheirinhos de alegria" e a placa de Porto Alegre só vieram corroborar a minha hipótese.

Para esclarecer o acontecido, pergunto para o cidadão ao meu lado o que se passa:

- Como é que esse fusca foi parar ali em cima?
- Bah, ninguém sabe. Ontem de noite eu ouvi um baita barulho vindo daqui. Vim ver e o fuca tava aí.
- Mas... o senhor não viu ninguém saíndo do carro depois dele ter batido?
- Não! Juro que não! Eu acho que esse carro é mal-assombrado! Mas, se alguém de carne e osso dirigiu ele, ou é muito bom motorista, ou deveria ser proibido de sentar até no banco do carona!
- É... faz sentido. Sabe me dizer pra que lado fica a estrada que vai pra Porto Alegre?
- Pra lá. Por que? E como tu ficou tão sujo?
- Eu caí... numa poça de lama... muito suja. Obrigado pela informação.

Saí daquele lugar o mais rápido possível, antes que o cidadão pudesse fazer mais perguntas que eu não gostaria (ou poderia) responder. Talvez fosse melhor não saber muita coisa naquela hora sobre o Fusca Voador e tentar ir pegar carona de uma vez. De novo, começo a me arrastar em qualquer direção, com a diferença que desta vez eu teoricamente sei para onde estou indo. Na rua, as outras pessoas olham para mim como se fosse uma criatura que escapou de algum circo. De certa forma, era mais ou menos isso que eu era - um fugitivo de uma esquete do Monty Python's Flying Circus.

Já na estrada, começo a pedir carona, levantando meu polegar toda vez que um carro potencialmente amigável passava por mim. Pedir carona, meus amigos, é fácil. O problema é conseguir uma, e a dificuldade aumenta exponencialmente quando se está sujo e fedido como eu estava. Assim sendo, possivelmente eu não deveria temer tanto que ninguém parasse para me levar consigo, mas sim ter medo de quem fosse insano o suficiente para me dar carona. Algumas horas mais tarde, quando o sol já estava quase se pondo no horizonte, e eu me resignava a ter que dormir no mato ao lado do acostamento, pára um caminhão. Fico um tanto quanto desconfiado, levando em conta todos os outros carros que pararam por mim mas arrancaram logo que sentiram o odor que eu exalava, mas o motorista sinaliza com a mão e me chama para chegar mais perto. O vento estava soprando na direção dele, fazendo com que fosse impossível ele não sentir minha catinga. Aproximo-me e conheço meu benfeitor: um típico gaudério, meio europeu e meio índio, todo pilchado e com um bigode de dar inveja até no Olívio. Coisa curiosa, ele também usava um tapa-olho. Em outro contexto, eu o julgaria como sendo um cidadão um tanto quanto lunático, mas ali, sozinho, numa estrada desconhecida e já anoitecendo, ele me parecia um sujeito muito simpático. Entabulei uma conversa, e, apesar de ser difícil entender alguém que não tira o cigarro da boca para falar, conseguimos nos comunicar:

- Oi, boa noite! Para onde o senhor vai?
- Tô indo para Florianópolis, entregar a carga aqui atrás!
- O senhor passa por Porto Alegre?
- Sim, eu tenho que falar com um amigo meu lá. Sobe aí que eu te levo!
- Muito obrigado, senhor!

Subo feliz, pensando que todos os meus problemas tinham acabado e que dentro em breve estaria limpo, bem alimentado e em casa. Deveria ter desconfiado do fato dele não ter ficado nem ao menos impressionado com meu cheiro, mas na hora eu simplesmente agradeci aos céus por isto.

Continua em outro post...