terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Eu e a Biologia

Como quase todo ser da minha geração, tive contato com a Biologia cedo na vida. Não cedo demais, nem muito tarde: na oitava série do Ensino Fundamental. Na época, eu ignorava a existência de assim chamada disciplina científica, pois tudo que tínhamos era a aula de Ciências Físicas e Biológicas (e estas duas últimas palavras eram devidamente ignoradas por nós, estudantes). No seu lugar, existia a parte da aula de Ciências que estudávamos os bichos e as plantas.

Só comecei a estudar Biologia com este nome no Ensino Médio, e como tudo que esta era negra de minha vida tocou, meu interesse pela fauna e flora transformou-se em franca aversão, graças aos constantes e cruéis talagaços que levava em aula, seja nas notas, na dificuldade de decorar tudo que iria cair na prova, o tom semi-morto que a professora dava aula, ou seja pelo péssimo relacionamento que tínhamos com ela. Talvez nem fosse tão ruim, mas as paixões adolescentes exageram em tudo - amor e ódio, e era difícil copiar qualquer coisa numa aula em que o conteúdo era mais vomitado do que escrito no quadro negro.

No cursinho, apesar de toda aquela pressão injusta e inútil de ter que acertar tantos por cento na prova, tive a chance de ter verdadeiras aulas de Biologia e me interessar pelo assunto. Não chegava a ser um interesse incondicional, total pela matéria, mas era muito mais do que tivera sentido nos anos passados. Na época, o que mais gostava em Biologia era a Botânica, pelo simples fato do professor ter feito piada a respeito dela ("semana que vem, a gente começa um novo assunto: Bostânica!"). Acertei 17 de 25 na prova, o que indica que não fora tão ruim quanto imaginava.

Paradoxalmente, foi na faculdade, estudando uma ciência que costuma reunir as pessoas mais avessas possíveis às Ciências Naturais, que passei a me interessar novamente pela Biologia. Não por ela como um todo, mas na parte que tange o ser humano: Genética, Bioquímica, Farmacologia, Etologia, Anatomia e Fisiologia Humanas. Talvez tenha esquecido algo, mas o que importa realmente foi listado. Quem acompanhou meu primeiro ano na Psicologia sabe que não foi uma tomada de interesse súbito, aliás, demorou bastante para tirar o ranço que sobrara do Ensino Médio dessa disciplina.

Um dos marcos desse caminho foi um curso de extensão sobre Psicologia Evolucionista que fiz. Inscrevi-me mais por saber que ganharia um certificado de participação de 15 horas/aula, e mercenário como agia, isso era tudo que importava. Mas o assunto, uma mistura de Psicologia Cognitiva com Neodarwinismo, era fascinante demais para ser ignorado. E para a grata felicidade de nós, filhos pródigos da Psicologia por buscarmos Darwin, dividimos a sala com estudantes de Biologia. The real stuff, e não só psicólogos com vocação para biólogos, que costuma ser o máximo que encontramos. Como todo e qualquer evento público que reúne um número considerável de pessoas, poucos dos presentes na sala se pronunciavam. Mas os que o faziam, tanto do Instituto de Biociências quanto do Instituto de Psicologia, não davam motivos para repreensões. Sobre o pessoal da Bio, posso dizer que eles eram realmente bem informados, e com freqüência faziam observações muito bem colocadas sobre o assunto em discussão. Não sei se posso dizer que nós, o pessoal da Psico, desempenhamos nosso papel de maneira tão satisfatória, mas fizemos o possível fazer o mesmo que eles com os assuntos que entedemos mais, como Filosofia e Comportamento Humano. Posso dizer com orgulho que foi uma troca proveitosa, e que aprendemos bastante com ela.

O curso não foi exatamente um turning point na minha vida acadêmica que me fez querer mais do que nunca estudar Biologia, mas deixou uma impressão tanto em mim quanto em meus colegas que deveríamos ter um contato mais próximo com aqueles leitores de revistas como a "Nature" e a "Scientific American", que realmente estudam Biologia.

Foi um processo longo e lento, mas certo e decidido que me levou a ter interesse nessa área. Uma professora nossa recomendou a cadeira de Bioquímica, pois nos facilitaria na hora de estudar Psicofarmacologia, além de ser fascinante por si só. A professora é suspeita, pois ela própria se considera algo muito próximo de uma Analista do Comportamento (criaturas que consideram a Consciência apenas um efeito colateral do funcionamento cerebral). Duas amigas minhas muito elogiaram a eletiva que estavam fazendo de Neuropsicologia, apesar da dificuldade da matéria. Outra vez, elas são suspeitas, pois as duas são bolsistas de iniciação científica com a professora da dita disciplina. A mais chocante de todas as indicações de que eu tinha que estudar assuntos biológicos veio de uma amiga minha que estuda justamente Biologia. Ela disse que adorava Bioquímica, e que eu iria adorar também se algum dia viesse a cursar tal disciplina. Não levei muito a sério esta afirmação, pois lembrei-me de todo o Ensino Médio oprimido pelo medo de rodar em Biologia - está bem, concedo que minha memória não é tão boa assim para lembrar todos os momentos que tive medo de me foder em uma prova sobre Botânica ou Fisiologia animal, mas uma compilação com os melhores piores momentos sou capaz de rodar em minha memória. Mas o que é passado é passado, e ele nunca se repete. Além do mais, eu não acreditaria se me dissessem dez anos atrás que eu iria diligentemente comer salada em quase todas as refeições. O mundo muda, não? E não fico triste com isso.

Já fazia algum tempo que meu interesse pelas Neurociências estava em estágio embrionário. Estava lá, mas em negação, pois toda vez que pensava "nossa, que assunto legal", imediatamente depois pensava "mas esse assunto é difícil pra caralho. Nunca vou gostar de estudar isso". São pensamentos assim que tornam estudantes promissores em profissionais medíocres, pois os levam a estudar só o que gostam e o que querem, deixando de lado o que não gostam e o que devem. Alguém me dizer que eu iria gostar de estudar um assunto que considero importante, porém cacete e complicadíssmo, era como um raio de luz que quebra a escuridão da noite. Se minha amiga gosta de Bioquímica, por que eu não haveria de gostar também?

"Condicionamento!" Escuto um colega meu com tendências à Analista do Comportamento dizer no fundo de minha mente como resposta a minha pergunta. Verdade. Eu poderia simplesmente deixar que meus condicionamentos me levassem aonde tenho sempre ido, e esquecer essa bobagem de estudar Neurociências e Biologia. Mas isso seria como viver com as potencialidades mutiladas. Os analistas do comportamento deliberadamente ignoram a parte mais importante e bela da existência humana, inexplicável para nossa Ciência, mas que qualquer poeta de qualquer época pode entender e fazer-se entender: nossa capacidade de transcendermos a nós mesmos e a nossos condicionamentos. Podem refutar meus argumentos baseados na minha falta de clareza ou na falta de evidências em tais afirmações, mas o batido ditado que diz que o pior cego é o que se nega a ver é muito verdadeiro para eles. Fui condicionado pela minha professora de Biologia a achar que o assunto que ela me ensinava era enfadonho, complicado demais e inútil. Mas dizer desta maneira, que minha professora me condicionou para tanto, é negar minha própria responsabilidade sobre meus atos e motivos.

Mas o que mais me marcou, apesar de na época ter parecido apenas belo, foi uma afirmação que nossa professora de Fisiologia fez durante uma aula sobre o sono e os sonhos. Ela disse que se dependesse de neurologistas ou de bioquímicos desvendar o verdadeiro sentido e significado dos sonhos, jamais chegaríamos perto da realidade, pois tudo seria tomado como reações bioquímicas ou funcionamento neuronal apenas. Está nas mãos de nós, psicólogos, encontrar esta resposta. Não deve ter soado como um desafio para muitos, mas para mim, era um desafio que deveria ser enfrentado e vencido. Em seu livro "Introdução à Psicologia do Ser", Abraham Maslow diz que a Psicologia tem um objeto de estudo que é exclusivamente seu e que a torna uma ciência em seu pleno direito, mas partes suas são objeto de estudo também da Sociologia e da Biologia. No presente contexto, fica claro que, se quisermos realmente compreender o ser humano, essa criatura parte animal, parte humana e parte divina, devemos estudar estas três disciplinas maiores de forma integrada e abrangente, e não nos contentarmos em virarmos especialistas de visão estreita, ao contrário do que faz a maior parte da viciada sociedade de estudantes de Psicologia do Brasil (ou pelo menos do Rio Grande do Sul), que prefere proibir pesquisas ditas "biologizantes" do que abrir seu pensamento para coisas novas e de outras áreas que não a sua, onde sentem-se seguros e confiantes, mas também permanecem limitados, ineficazes e incapazes de crescer.

Se realmente queremos crescer, e entender a nós mesmos, devemos evitar a segurança e o perigo de ficarmos acorrentados em nossas confortáveis prisões pessoais, no alto de nossas torres de marfim. E estudar Biologia é apenas um passo para tanto.