domingo, 6 de abril de 2008

Alterações

Adicionei, no fim da página, duas listas novas: minhas Leituras Atuais e minhas Leituras Futuras. Em outras palavras, livros que estou lendo e livros que quero ler.

Não estou bem satisfeito ainda com a maneira que o layout ficou, e é bem provável que eu mude as listas de lugar ou até mesmo as exclua e relate minhas leituras mais informalmente. Até lá, deixo como está.

Epifania

Acabo de perceber que este blog se transformou num blog de ciência. Nada mais natural, já que considero todo o processo científico de busca rigorosa da verdade mais do que importante, mas essencial até mesmo para a vida pessoal. E mesmo assim, sinto como se tivesse deixado algo de importante pelo caminho. Tento sempre ser coerente com o que digo, e no subtítulo deste site está escrito que o assunto do Espadachim Cego é, entre outras coisas que não quero abordar aqui, “Ciência, Filosofia e Transcendência”. As duas primeiras estão fartamente presentes aqui. Mas e a última, por onde anda?

Lembro-me de um sonho que tive, em que uma dama vestida de vermelho entregava-me uma rosa rubra e uma espada para matar o mal que habitava um velho casarão, cujos portões abriam-se diante de mim. Tinha uma missão, e os meios para cumpri-la. Entretanto, havia o risco de desvirtuar-me, encantar-me com coisas outras belamente irrelevantes, e assim abandonar meu caminho. Quando penso em meu futuro, não penso em fazer especialização, mestrado, doutorado, post-doc, pois que não é meu caminho fazer ciência até o fim. Mas quando vejo o histórico do blog, percebo que tenho feito isso, justamente e apenas isto – ciência. E novamente a sensação de ter deixado algo importante para trás me assola. Sei o que deixei para trás, ou pelo menos o que deixei ignorado e sem cuidados: minha transcendência, meu crescimento pessoal mais profundo. O saber que a ciência pode me dar é para a transcendência apenas um meio, e não um fim em si mesmo. Mas posso me iludir e confundir tudo. Temo não ser honesto comigo mesmo e colocar no centro da minha existência algo que deveria ser apenas secundário. E este é um risco permanente.

Eis minha mais recente epifania.

A Arte do Diagnóstico na Saúde Mental

No post anterior, citei um texto que tratava dos perigos de fazer diagnósticos em psiquiatria e psicologia utilizando-se apenas do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), de ignorar o “sujeito do sintoma” e tratar apenas o “sintoma do sujeito”. Além disso, criticou o modelo positivista de fazer diagnóstico, que deixa de lado três importantes tradições psicopatológicas – a fenomenologia, a psicanálise a daseinanálise. Um palestrante de nosso seminário criticou o DSM por ser frio, e não possuir a beleza artística que um guia como “Psicopatologia Geral” de Karl Jaspers possui.

Graças à sincronia do universo, tive o prazer de ler para a cadeira de Psicologia Humanista um texto diagnóstico daseinanalítico, escrito pelo eminente psicanalista e analista existencial Medard Boss. Faz algum tempo que me interesso por Análise Existencial, mas nunca tive a oportunidade de entrar em contato com esta teoria. Enfim, o diagnóstico é parte de um estudo de caso conduzido por Boss, o caso Ellen:

Se tentarmos, então, sumarizar uma vez mais as características individuais e formas fenomenais do modo de (Ellen) ser-no-mundo dentro das várias regiões-do-mundo... será melhor começarmos pelo mundo da paisagem (Umwelt): o ser-limitado e o ser-oprimido expressam-se aqui no escurecimento, na escuridão, na noite, no frio, na maré-baixa; as fronteiras ou limites mostram-se como as paredes de névoa úmida, ou como as nuvens; o vazio, como o Mistério; o anseio de liberdade (libertar-se do mundo) como a elevação no ar; o eu como um pássaro emudecido. No mundo da vegetação, o ser-restrito e o ser-oprimido mostram-se no esmaecimento e as barreiras no ar sufocante; o vazio, nas sementes; o anseio de liberdade, na urgência de crescer; o eu, na planta seca. No mundo das coisas encontramos o ser-restrito no buraco, no sótão, no túmulo; as barreiras estão nas paredes, na alvenaria, nas correntes, nas redes; a ânsia de liberdade no vaso da fertilidade; o eu na casca jogada fora. No mundo animal o ser-restrito é visto como ser-esburacado por dentro; as barreiras, como a terra ou a noite escura; o eu como um verme incapaz de ainda ansiar por liberdade; o vazio como simples vegetar. No Mitwelt, o ser-restrito é visto como ser-subjugado, oprimido, prejudicado e perseguido; o vazio, como a falta de paz, a indiferença, a submissão infeliz, a reclusão, a solidão; as barreiras, como algemas ou as víboras de todo dia ou como o ar sufocante; o vazio em si mesmo como o pequeno mundo (dia-a-dia); o anseio por liberdade, como a necessidade de independência, de desafio, de insurreição, revolta; o eu como covarde, niilista e, mais tarde, covardemente comprometido. No Eigenwelt, o mundo-do-pensamento, reconhecemos o ser-restrito na covardia, na indlugência, no abandono dos planos a longo prazo; as barreiras, nos fantasmas ou espectros acusadores e zombeteiros que a rodeiam e invadem por todos os lados; o vazio, no ser-norteado por uma única idéia, como a do Nada; o eu, na minhoca tímida, no coração gelado; o anseio de liberdade, no desespero. Finalmente, no Eigenwelt, o mundo-corporal, encontramos o ser-restrito no ser gorda; as barreiras ou paredes, na camada de gordura em que a existência dá murros; o vazio, no ser tola, estúpida, velha, feia, e mesmo ser morta; o anseio de liberdade no desejo-de-emagrecer; o eu, como um mero tubo que se enche e se esvazia de matéria.

A primeira vez que li este texto pensei: “ou seja: bulimica, gravemente depressiva com tendências suicidas. Poderia ter me poupado trabalho.” Admito que o DSM é uma ferramenta bastante limitada para diagnosticar pacientes, já que apenas descreve os sintomas externos visíveis, e não dá uma etiologia (origem, causa) dos transtornos, e que estudos fenomenológicos de caso poderiam cobrir esta lacuna. Mas demora muito mais escrever um relato desses do que fazer um diagnóstico pelo DSM (só digitando demorou um monte, imagina inventando). Vale lembrar que Ellen se matou durante o tratamento. E por causa da depressão, que nem de longe é um bicho papão. Claro, na época do velho Boss a psicoterapia era muito rudimentar se comparada com as técnicas que temos atualmente, portanto dá para dar um desconto para o fracasso dele em tratar Ellen. Também temos de convir que, por mais que tenha escrito, Boss deve ter se dedicado ao caso, e que o que menos desejava era a morte de Ellen. E fico pensando como ele, um psiquiatra, teria reagido se um manual de diagnóstico tivesse sido criado em sua época. Prefiro imaginar que teria ficado feliz com a ajuda de mais uma ferramenta, e continuaria a daseinanalisar seus pacientes.

É irreconciliável a prática de um diagnóstico rápido e preciso com uma descrição qualitativa detalhada? Acredito que não. Apesar de não ser capaz de ver como um relato como o de Boss pode ser útil para o progresso da Psicologia e da Psiquiatria (prefiro o estilo do neurologista Oliver Sacks, que trata mais diretamente dos sentimentos e impressões dos pacientes e de todos em volta, inclusive o próprio médico), acredito que é uma prática salutar, pois leva o psicoterapeuta a pensar melhor a respeito da vida de seus pacientes, seus sentimentos e sua relação interpessoal. Mas negar-se a usar o DSM-IV ou o CID-10 por que “subjetivam” os pacientes é coisa de ideólogo ignorante.