domingo, 31 de outubro de 2010

O Rootz e o Épico

É fato conhecido que, com a convivência, amigos íntimos acabam às vezes desenvolvendo formas próprias e peculiares de comunicação: olhares, gestos, palavras que, embora não digam nada para as outras pessoas, são carregadas de significados para aqueles que as usam. Entre eu e meus amigos, existe uma filosofia de vida, uma ética, que pretendo explicar aqui, apresentando e discutindo o significado de duas palavras que, embora sejam de uso corrente em Porto Alegre, ganharam um peso diferente para nós: Rootz e Épico.

Originalmente, a palavra "roots" significava "raiz" em inglês. Ela foi introduzida no português (pelo menos aqui em Porto Alegre, cabe lembrar) por fãs de Reggae, para descreverem músicas e coisas verdadeiramente "regueiras", de raiz, o mesmo que "true" representa para os fãs de Heavy Metal. Com o tempo, contudo, "roots" virou "rootz" (diferença meramente estética, por que a pronúncia é a mesma), e passou a significar muito mais do que apenas aquilo que é relacionado com o reggae. Agora, quando alguém diz que algo é rootz, ela quer dizer que aquilo merece respeito e admiração, por ser algo fora do normal. Por exemplo, quando alguém conta que caminhou do Centro até a Restinga para não pagar passagem de ônibus, outra pessoa, espantada, pode dizer apenas "rootz". Para eu e meus amigos, porém, esta palavra ganhou uma dimensão nova: quando queremos dizer que algo é rootz, queremos dizer que, além de respeitável, algo é digno de ser feito, quando não necessário. Usando o mesmo exemplo de antes, certamente consideraríamos o fato de alguém ter ido à pé até a Restinga como rootz não só por que é um longo caminho, como também por que a pessoa se exercitou até o seu limite, e ainda poupou R$2,45 em passagem. Mais do que isso, é rootz por que envolve superação de si mesmo.

Contudo, nada impede que algo rootz seja completamente inútil, quando não prejudicial. Eu posso emitir um série de comportamentos extremamente cansativos, que me colocam em situações complicadas ou de risco, e que mesmo assim não beneficiam ninguém, ou apenas a mim mesmo de maneira superficial. Esta categoria de rootz merece respeito, por ser algo difícil de se fazer. Ainda assim, receamos dar-lhe este título, pois sentimos que lhe falta algo. Eis então que entra o conceito de "épico". Normalmente, quando uma pessoa normal, fora do nosso círculo de amizades, fala que algo é épico, quer dizer que algo é muito grande ("meu pênis tem proporções épicas"), ou é relativo a um gênero literário ("os livros de J.R.R. Tolkien marcaram a literatura épica"). Na nossa concepção de "épico", estas definições não são excluídas ou deixadas de lado, mas são como que derretidos e incorporados a uma outra definição, mais abrangente. Pessoalmente, utilizei esta palavra muito poucas vezes de maneira concreta. Contudo, é ela que norteia toda a nossa ética de ação direta no mundo.

Quando me disseram que a reitoria da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre tinha sido ocupada, a primeira coisa que exclamei foi "Épico!" Por que esta ocupação foi épica? Não poderia ter considerado ela apenas rootz? Bem, certamente a ocupação foi rootz, por que ela envolveu acampar e dormir dentro de uma instituição de ensino superior que normalmente não se presta à dormitório, bater de frente com a reitoria e ter que mobilizar um corpo estudantil antes acostumado à apatia e à complacência. Isso É rootz, mas também muito mais. Ser épico, pelo menos da maneira como eu encaro as coisas, é agir de maneira rootz, isto é, enfrentar desafios cada vez maiores e mais complexos, sacrificar a própria vontade egoísta e correr riscos em nome de uma causa comum, pelo coletivo. Necessariamente, ser e fazer algo épico envolve a transformação do mundo a nossa volta, tornando-o mais belo, mais justo e mais verdadeiro. No fim das contas, ser épico é escrever uma nova história, tão grandiosa quanto "O Senhor dos Anéis" ou "Os Varões Assinalados", se não ainda maior, por que acontece aqui e agora, diante de nossos olhos, transformando um valor potencial em um valor vivo e real. Carregamos hoje a tocha que nos foi passada por aqueles que no passado foram considerados heróis, revolucionários e guerreiros, e continuamos sua obra da melhor maneira que podemos. Em suma, ser épico é ser rootz em nome do Bem Maior.

Cada vez mais, eu e meus amigos temos transcendido a esfera individualista da rooteria, e evoluído para seus níveis épicos e coletivos, não apenas em palavras ou sonhos, mas em atos concretos, como tudo que é realmente épico deve ser. Construímos uma oca no outrora desocupado e inútil pátio do Instituto de Psicologia, fomos para o meio do mato coletar material de construção, ocupamos reitorias, semeamos sementes e muitas outras coisas dignas de respeito. Porém, o que realmente importa é que estamos construindo um mundo melhor, e que, não importa o que acontecerá com nossos feitos depois que partirmos, nós lutamos como homens e mulheres dignos e dignas de respeito e admiração. Isto é ser épico. Isto é a vida que vale a pena ser vivida.

Utopias (6)

Aventuro-me agora em novos territórios. Ao invés de resenhar um livro sobre uma utopia ficcional, falarei sobre um livro que conta a história de um homem que dedicou sua vida a construir uma: Giuseppe Garibaldi. O livro a que me refiro são suas Memórias, organizadas por Alexandre Dumas, com base em relatos e diários escritos pelo guerrilheiro do século XIX. Por que escrevo sobre Garibaldi nesta série? Bem, preciso admitir que tenho um fraco por heróis de guerra. Talvez isto se deva ao fato de eu ter nascido e crescido em uma sociedade sem guerras, ter aprendido a respeito delas através de meios distantes como livros ou a TV e nunca ter presenciado uma morte. Acho justo que eu seja considerado ingênuo neste assunto por todos estes motivos. Ainda assim, não consigo deixar de admirar pessoas como Garibaldi, que passou quase a vida inteira lutando em nome de um ideal - a liberdade das nações. Por um ideal tão abstrato e distante, ele passou por inúmeras dificuldades e privações: fome, cansaço, perseguição inimiga, marchas forçadas e risco de morte. Terá tudo isso valido à pena todo esse sacrifício?

Penso não só na vida de Garibaldi, mas também nas vidas dos que lutam hoje para construir um mundo melhor. Não lutamos mais guerras, não pegamos mais em armas, mas continuamos a enfrentar muitos desafios, e a fazer muitos sacrifícios, que, apesar de não serem mais os mesmos que Garibaldi encarou, ainda são capazes de nos fazer questionar se não seria melhor abandonar toda esta confusão, nos preocuparmos apenas com a nossa sobrevivência e o nosso bem-estar, e deixar as utopias para os livros e para os idiotas. Lendo suas Memórias, fico imaginando se, em nenhum momento, Garibaldi fraquejou, e pensou em mandar tudo às favas: "dane-se a Itália! Danem-se as repúblicas! Eu vou montar uma rede de supermercados e lavar minhas costas com dinheiro!"

Não sei se ele chegou a pensar algo parecido com isto. Por ele ser humano e, portanto, frágil e imperfeito, imagino que em algum momento ele deva ter cogitado a possibilidade de levar uma vida pacata, levemente egoísta e reacionária. Porém, mesmo que ele tenha pensado, não levou estes planos adiante. Bem pelo contrário por que, até onde sabemos, ele continuou lutando pelo ideal das nações e pela liberdade de uma Itália unida e democrática até o final de sua vida. Pouco do que ele aspirava se concretizou, e não da maneira como ele desejava. Seria isso sinal de que seria melhor ele ter cuidado da própria vida? E nós, que nos metemos a mudar o mundo, não deveríamos aprender com este fracasso e parar de buscar algo inalcançável?

Na noite que passei na Reitoria da UFCSPA, tive uma conversa bastante produtiva com o Marcelo. Foi uma daquelas conversas que, embora se esqueça quase tudo o que foi dito, nunca se esquece o impacto que causou em nossos corações. Lembro, porém, de pelo menos uma coisa que discutimos. De fato, poucas revoluções foram bem sucedidas, e muito poucas mantiveram-se fiéis aos seus ideais. Contudo, nenhuma delas foi em vão, por que trouxe ao mundo uma nova maneira de ver e viver que mudou todo para sempre. A mudança efetiva pode ter sido pequena em extensão, mas inegável em sua existência. O Rei voltou a reinar na França depois da Revolução de 1789; Stalin tornou-se um ditador ainda mais cruel que os tsares; A República Rio-Grandense perdeu a guerra contra o Império e voltou a ser uma província, depois de 10 anos de lutas sangrentas. Agora, por causa disso, o Antigo Regime voltou a vigorar, a idéia do Comunismo perdeu o valor e o sonho de uma sociedade justa e democrática morreu? Não. As coisas mudaram, e para sempre. Talvez não da maneira como gostaríamos, mas mudaram. E é por isso que lutar sempre vale à pena.

Garibaldi não lutou em vão, e nem nós lutamos hoje. Construímos a sociedade do futuro e, mesmo que aos trancos e barrancos, evoluímos. Talvez seja por isso que admire Garibaldi: de certa forma, continuo hoje o trabalho que ele começou tanto tempo atrás, e que na verdade, era também a continuação de um trabalho ainda mais antigo que o dele. Vejo-me como parte de uma antiga e nobre linhagem de guerreiros, poetas e amantes que, malgrado seus insucessos, nunca perde a esperança de construir o Reino de Deus na Terra. Não viverei para ver tal proeza, mas resta-me o consolo de saber que, se isto um dia vier a acontecer, eu não fiquei de braços cruzados, e ajudei, da melhor maneira que pude, a tornar isto realidade.

Ainda na onda de falar sobre utopias que aconteceram de verdade, no próximo texto comentarei o livro "Utopias Piratas", escrito pelo cientista político e anarquista Peter Lamborn Wilson, mais conhecido por seu pseudônimo Hakim Bey. Vou ler o livro este final de semana, ou, no mais tardar, antes que alguém o reserve na biblioteca (por que eu não conheço ninguém que não leria algo sobre utopias e piratas). Depois desse livro, pretendo resenhar "Zona Autônoma Temporária", do mesmo autor, onde ele fala sobre algo parecido. Esse, porém, eu ainda preciso bater em alguém da biblioteca pra reservar e ler, então pode demorar um pouco.

Utopias (5)

Como alguns dos meus leitores devem se lembrar, tempos atrás, comecei a escrever uma série de posts sobre utopias, isto é, sociedades humanas que funcionam de maneira perfeita e auto-sustentável. Como tais sociedades não existem de fato, pelo menos não ainda, tive que buscar meus exemplos em livros. A primeira utopia que comentei, em dois posts separados, foi "Walden II", imaginada pelo psicólogo B.F. Skinner e fundamentada pelos princípios das ciências do comportamento. O livro seguinte que eu comentei aqui foi "Horizonte Perdido", de James Hilton. Por fim, o último livro "utópico" que comentei não tratava de fato de uma utopia, mas de uma idéia que considerei muito próxima - "Sebastopol", de Tolstoi, e a idéia da paz atingida através da guerra. No final deste texto, disse que demoraria para ler outro livro sobre utopias, mas que não abandonaria a idéia de escrever mais a respeito do assunto por aqui.

Preciso dizer que menti. Na época em que este último post foi publicado, tinha recém começado a ler "A Ilha", de Aldous Huxley, e achei a história tão envolvente que terminei de lê-la em tempo recorde. Entretanto, não consegui escrever com o mesmo entusiasmo. Comecei dois rascunhos diferentes, mas em nenhum dos dois consegui passar do terceiro parágrafo. Consegui, isso sim, escrever uma monografia com o título de "O Trabalho nas Utopias e na Realidade", comparando as condições de trabalho em "A Ilha", "Walden II" e o mundo real, tentando encontrar pontos em comum. A proposta dessa monografia era bem distinta do que pretendo fazer aqui para o blog, mas utilizarei algumas partes dela para fundamentar meu texto (e me ajudar a lembrar da história de "A Ilha", já que faz um bom tempo desde que a li).

Tendo lido já alguma coisa sobre utopias, me sinto tranquilo o bastante para dizer que toda a literatura utópica busca responder às seguintes questões:

1) Quais foram as contingências geográficas e históricas que permitiram tal sociedade se desenvolver de maneira contínua e segura?
2) Qual modelo econômico foi por ela adotado, de que maneira os recursos naturais e humanos são utilizados e como ele garante o bem-estar da população?
3) Como são tratadas as questões comportamentais, individuais e coletivas, da população e suas principais instituições (vida em família, vida amorosa, amizades, vida em comunidade, trabalho, lazer, educação, saúde, religião)?
4) Qual o sistema político de tal sociedade, e como sua "administração central" (se esta existir) gerencia as questões anteriores, bem como as relações com outras sociedades e estados?

Estas perguntas, em última análise, são componentes de uma outra pergunta que o autor deve responder se deseja realmente descrever uma utopia: por que esta sociedade é perfeita, e por que deveríamos invejá-la? Cada livro da literatura utópica é, de certa forma, a vitrine das idéias de seu criador, que mostra aos demais como o mundo seria perfeito se todos resolvessem adotar os seus princípios e aplicá-los à realidade (ou, de maneira inversa, por que o mundo é a bagunça que é, e o que estamos fazendo de errado). Em outros termos: o autor é um vendedor, sua ideologia é seu produto e a utopia que ele descreve é sua vitrine. Alguns escritores são mais felizes do que outros nessa empreitada. Por exemplo, em "Horizonte Perdido", James Hilton parece estar mais interessado em contar uma história e estimular a imaginação dos seus leitores do que em convencê-los de que aquilo que acontece em Shangri-Lá fica em Shangri-Lá deveria acontecer no resto do planeta. Por outro lado, em "Walden II", Skinner só não escreveu um epílogo dizendo "acreditem em mim, gente, condicionamento operante é a coisa mais maravilhosa que existe" por que seria redundante, já que o livro inteiro é quase um infomercial de Walden II (é possível ler nas entrelinhas um "mas espere! Ainda tem mais!" entre um capítulo e outro). Tolstoi, que em "Sebastopol" não descreve uma utopia, também é bastante claro a respeito do que ele acredita ser certo ou errado.

Aldous Huxley em "A Ilha" é mais sutil que Skinner, e muito mais claro do que Hilton a respeito da mensagem que quer passar, por que, ao mesmo tempo que descreve os componentes de sua sociedade ideal, não descuida dos aspectos estéticos da história que conta. Ela começa com Will Farnaby, o personagem principal, naufragando no Oceano Índico, e indo parar na ilha de Pala, que era onde ele originalmente desejava chegar. Farnaby é jornalista, e um agente pago por uma grande empresa petrolífera para infiltrar-se em Pala, desestabilizar o governo local por dentro, e submetê-lo ao comando do ditador da ilha vizinha, Rendang. No princípio, apesar da hospitalidade da população local, que o recebe e cuida de seus ferimentos como se fosse filho de Pala, ele colabora com as forças que desejam destruir a harmonia da ilha para aumentar sua riqueza material e poder. Entretanto, conforme vai conhecendo o lugar, seu funcionamento, e vive experiências purificadoras, Farnaby abandona seu cinismo e, ainda que seja tarde demais para salvar Pala, ele consegue ver claramente a beleza daquela sociedade. Não vou dar mais detalhes da história, tanto por que não quero estragar a leitura de quem se interesse, quanto por que eu sinceramente não lembro de muitos detalhes. O que eu vou falar, e que ainda me lembro, é da maneira como Huxley tentou responder às quatro perguntas que formulei anteriormente.

A ilha de Pala, apesar de naturalmente cheia de recursos, é isolada do resto do mundo por sua geografia, contando com apenas um porto natural, sendo todo o resto da costa impossível de atracar, ou pelo menos muito perigoso de navegar. Era como qualquer outra monarquia pobre da Ásia, com um povo supersticioso e fisicamente pouco saudável até a chegada de um médico britânico. Este médico, cujo nome me escapa agora, fora contratado para tratar o Rajá de um câncer na mandíbula. Tal operação não era sua especialidade, mas a realizou assim mesmo, com a ajuda de técnicas de sugestão e hipnose. O Rajá, agora a salvo de doenças terminais, ficou impressionado com as capacidades cognitivas do médico, e pediu para que ele ficasse em Pala e o ajudasse a fazer o que se pode chamar de uma completa reforma cultural na ilha. Aqui, fica óbvio para o leitor de "A Ilha" o que Huxley imaginara como a sociedade perfeita: uma fusão harmoniosa entre o melhor da ciência ocidental e o melhor da ética e espiritualidade oriental.

Esta revolução cultural, diferente da realizada em "Walden II", levou pelo menos três gerações, e envolveu mudanças graduais, porém profundas, nas práticas dos habitantes de Pala. Primeiro, o médico britânico conquistou o apoio da população feminina introduzido técnicas de higiene que em muito diminuiram as mortes durante o parto, bem como a qualidade de vida em geral. Depois disso, já contando com a confiança pública, ele pode ser dar ao luxo de atacar hábitos supersticiosos daninhos e substituí-los por outros hábitos, mais racionais. Junto com o Velho Rajá, que também era um grande intelectual e reformador, ele instituiu políticas públicas de longa duração, e que depois de 100 anos, quando Will Farnaby naufrga em sua costa, ainda se encontravam em efeito.

Como já disse antes, faz tempo que li o livro, e a grande maioria das propostas de Huxley me escapam à memória agora. Entretanto, todas elas seguiam o mesmo princípio: como seria uma sociedade onde todas as suas partes servissem o bem maior, e estimulassem o desenvolvimento saudável e consciente de seus membros? Ao contrário do que acontece em "Admirável Mundo Novo", onde as pessoas trabalham para manter o sistema de consumo irrefreável funcionando às custas de sua própria individualidade, em "A Ilha", tudo trabalha para favorecer o crescimento espiritual das pessoas, e torná-las cada vez mais conscientes de si, de seu contorno, de seus deveres e de sua missão. Por exemplo, os papagaios da ilha foram treinados para falarem, de tempos em tempos, palavras como "atenção!" e "aqui e agora!" para que os palaneses fossem constantemente lembrados de que devem estar atentos, e viverem aqui e agora, e não se perderem em divagações inúteis sobre o passado ou o futuro. A família em Pala, apesar de ser constituída de forma tradicional, com pai, mãe e filhos, também é atravessada pelo CAM, Clube de Adoção Mútua. No CAM, as crianças adotam outros pais e outras mães, fora de sua família nuclear, tantas quanto quiser ou precisar. Deste modo, quando esta se cansasse de seu pai ou de sua mãe biológicas, ia para a casa de outro, onde seria acolhido como um filho. Deste modo, nenhuma criança seria obrigada a conviver o tempo todo com a neurose de seus cuidadores (ou, na melhor das hipóteses, poderia alternar entre neuroses diferentes conforme lhe convir).

A ciência em Pala também é vista de maneira diferenciada. O Velho Rajá e o médico, apesar de serem ambos entusiastas de inovações, eram também cautelosos em relação ao que deixavam entrar em Pala. Por isso, a industrialização era limitada: foram criadas plantas hidroelétricas para gerar energia para geladeiras e assim estocar a produção de alimentos por mais tempo, e plantas industriais e poços de mineração existiam em pontos específicos da ilha, mas de maneira limitada. Além disso, nenhum trabalhador era obrigado a trabalhar mais do que o necessário, para que ainda dispusesse de tempo livre para realizar suas atividades de lazer preferidas. Em nossa sociedade produtivista, que clama sempre por mais e mais coisas para comprar e logo jogar fora, isso parece absurdo, mas em Pala, o trabalho tem como principal propósito estimular o desenvolvimento pessoal, e não usar todas as energias do trabalhador para realizar uma tarefa que muito pouco o beneficia, como frequentemente ocorre em tantos empregos.

Também a vida amorosa e sexual dos palaneses é bem distinta, tanto da nossa, quanto dos habitantes de Rendang, quanto mais dos cidadãos do "Admirável Mundo Novo". Ao invés de serem forçados a engolirem diversos tabus referentes à sexualidade, os palaneses são, desde muito cedo, educados a respeito da sexualidade e, a partir de uma certa idade, estas aulas se tornam práticas, quando aprendem a arte do Maithuana, a Yoga do Amor. Aqui, o sexo não é encarado como uma prática de dominação, uma conquista de um homem sobre uma mulher ou vice e versa. É, na verdade, uma expressão de amor entre duas pessoas (qualquer que seja o gênero delas, diga-se de passagem). Existe um apego entre os amantes, mas um apego bem diferente daquele que experienciamos na sociedade ocidental, que não amarra um ao outro irremediavelmente.

Mais notável ainda é o destaque dado para a espiritualidade propriamente dita, e os ritos a ela ligados. No final de sua vida, Huxley estava muito interessado com os possíveis usos de substâncias psicodélicas, que, se bem empregadas, poderiam servir para acelerar o progresso espiritual da humanidade. Tanto Pala quanto a sociedade distópica de "Admirável Mundo Novo" possuem drogas que alteram a percepção consciente da realidade e que estão ao alcance de toda a população. O uso dado a elas, porém, é completamente diferente. Se em "Admirável Mundo Novo" o soma é usado para fugir das dores do mundo e viver em um estado artificial e patológico de felicidade, em "A Ilha" o chá feito com a planta Moksha ("libertação" em sânscrito) é empregada para o exato oposto: expansão da consciência. Também não é utilizada de maneira indiscriminada, como quem toma aspirina, e sim apenas em momentos solenes. A primeira vez é no rito de passagem da adolescência para o mundo adulto, onde os jovens passam por um teste. Tanto meninos quanto meninas precisam realizar uma escalada perigosa, do topo de um penhasco até o Templo Central da ilha, onde eles tomarão Moksha e serão instruídos sobre os deuses, o universo e seu papel nele. Depois deste episódio marcante, o Moksha é tomado apenas em situações especiais, com o intuito de levar aquele que o bebe mais próximo da Iluminação.

Talvez o que mais tenha me chamado a atenção na sociedade palanesa é a verossimilhança com que Huxley a pinta. Ao contrário de Walden II e Shangri-Lá, que parecem ter surgido do éter e funcionando de maneira impecável por passes de mágica (mesmo que seja a "Mágica Comportamental" do Dr. Skinner), Pala impõe-se ao leitor como um lugar que realmente poderia existir. Mesmo sendo uma comunidade muito avançada, especialmente em termos psicológicos, ela é composta por pessoas de verdade, e não "exemplos didáticos" como Walden II. Esta foi a parte que mais me encantou em "A Ilha" - eu posso realmente acreditar na existência de Pala, bem como de seus moradores, por que o seu sofrimento existe e é palpável. O que muda na sociedade palanesa, quando comparada com a sociedade em que vivemos, é a maneira como este sofrimento é vivenciado: não há uma luta para livrar-se da dor, de viver permanentemente em um estado forçado de alegria. Aceita-se o presente, seja o presente como for. Susie McPhail, a segunda personagem mais importante do livro, perdera o marido em um acidente de montanhismo, e frequentemente passa seus momentos solitários pensando nele, e como sente sua falta. Porém, não há nenhuma nota de autopiedade em suas reflexões, nem uma negação da realidade, e em nenhum momento ela relega sua obrigação como mãe para chafurdar na própria dor. Talvez para Skinner, o que importa na construção de uma sociedade ideal é o reforço positivo externo, o ambiente, mas será que isto não seria muito, muito mais relevante?

Pala é uma fantasia, mas pode ser tornada real. Pode ser que para que desenvolvamos uma sociedade tão avançada levemos 100 anos. Contudo, as sementes para esta utopia podem começar a serem semeadas aqui e agora, e já estão sendo. Nos meus próximos dois posts sobre Utopias, pretendo falar sobre isso. Aguardem.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Fui pro Lado Esquisito da Força de vez

Quando eu estava viajando pela Patagônia junto com o Marcelo, passamos a noite em um camping em Ushuaia. Essa informação é absolutamente irrelevante para o que eu tenho para dizer, mas eu queria dizer mesmo assim por que Ushuaia é uma cidade fantástica. Em todo caso, nesse camping, tive a oportunidade de ver um magrão que, de tão esquisito, poderia estudar na UFRGS com a gente. O que mais me chamou a atenção foi que ele tinha como que uma mochila inteira para carregar temperos: vidrinhos com pózinhos, líquidos, ervas das mais diversas cores. Na época, achei estranho. Hoje, entretanto, reconheço a idéia como genial.

Decidi abraçar de vez a minha esquisitice hoje. Passando no mercado, comprei um vidro de tempero de pimenta que, junto com meu azeite de oliva e meu queijo ralado, vão andar sempre comigo em minha mochila, em um compartimento especial para carregar temperos, para, quando eu for comer no RU, eu não dependa só do sal e do vinagrete que a Mãe UFRGS me oferece. Agora, só falta eu criar barba e fazer dreadlock, por que fazer ripongagem eu já faço há tempos.

Arqueologia Musical do Self

Já falei aqui, em algum outro post, daquilo que o Marcelo chamou de "Arqueologia do Self" - seria o ato de redescobrir camadas antigas e encobertas do Self, através da leitura de diários, textos, poemas, qualquer coisa dos tempos passados.

Sempre que pensava nesse intrigante conceito, pensava apenas em leituras, produções intelectuais que ajudassem a lembrar como eram as coisas no passado. Hoje, para minha grata surpresa, percebi que também se pode fazer isso de maneira vivencial através da música. Apesar de ter ficado surpreso com essa descoberta, ela não é exatamente novidade para mim. Na verdade, a surpresa vem mais do fato de eu ter demorado tanto tempo para perceber que, ao ouvir músicas que não escuto há muito tempo, também estou desencavando não só artefatos do meu passado psicológico, mas também todo o modo de viver e sentir que operava naquela época.

Botei para tocar Underdog, do Turin Brakes, depois de um bom tempo sem ouvi-la. Conheci essa música por causa de Smallville - ela tocou ainda na primeira temporada. Ouvindo-a novamente, me recordo daquele tempo: ainda era vestibulando, morava em Caxias e ainda não tinha entrado na UFRGS. Sinto-me simultaneamente nostálgico por lembrar daquela fase da minha vida, e impressionado com quanto as coisas mudaram desde então. Nada, praticamente nada do que me preocupava à época me preocupa hoje - as paixões, os dramas, os gostos, os sonhos - tudo mudou: passei em Psicologia, conheci novas pessoas, fiz novos amigos, vivi aventuras que nunca imaginara possíveis.

Como bom contemplativo que sou, fico pensando em vários universos alternativos: seria possível voltar àquele tempo, ser de novo como eu era, viver de novo como eu vivia? Penso que não, mesmo que eu quisesse e houvesse uma máquina do tempo que me permitisse tal feito. Visto através das lentes da nostalgia, a vida que eu vivia quando escutei "Underdog" pela primeira vez não parece mais feliz, e sim mais simples. O Andarilho que eu era então continua a existir, talvez não mais ou menos feliz, mas mais forte, mais experiente, mais complexo como pessoa. Não sou hoje nem melhor, nem pior do que eu era. Tenho, porém, muitas camadas mais. Não sei explicar o que quero dizer com isso. Não sei por que, quando penso em minha evolução, penso em "camadas", como se eu fosse uma cebola. Ainda assim, sempre que acontece algo marcante em minha vida, me vem à mente uma imagem que só consigo descrever como um universo ganhando uma nova dimensão, carregada de idéias, sensações e afetos, luz e sombra, tudo isso resumido em um sorriso ao mesmo tempo nobre e triste. Quando eu tinha 18 anos, que história tinha para contar? Crescido em Caxias, estudou em escolas particulares, foi um outsider no ensino médio, viajou para os Estados Unidos e voltou para fazer vestibular. E agora, que história posso contar? Posso contar muitas, dependendo do contexto, de como me sinto e de quem me ouve. Sou múltiplo. Talvez eu sempre tenha sido, mas só agora que percebo.

Ouvindo "Underdog", me lembrei de como eu era, mas também pensei no que vou ser, e no que vou pensar quando ouvir as músicas que escuto hoje. Sou mais complexo e mais completo hoje, e provavelmente serei ainda mais daqui um ou dois anos. Como? Não sei. Só dá pra descobrir vivendo e deixando o tempo passar.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Diálogo Imaginário

Estou bem tranquilo, sentado na frente do meu computador, quando escuto uma voz: "Ei, seu vadio!" A voz parece muito real, tanto, que olho para os lados e pela janela, para ver se havia alguém me chamando. "Aqui dentro, mané!" ela grita outra vez, e eu, espio em baixo da cama para ver se não havia ninguém além de mim no quarto. "Dentro da sua cabeça, animal" vociferou a voz mais uma vez, agora irritada com a minha imbecilidade. Finalmente entendo, e digo para mim mesmo: "hora de tomar gardenal, Andarilho." Com isso, a voz fica ainda mais irritada e diz "GARDENAL É REMÉDIO PRA EPILEPSIA E NÃO UM ANTIPSICÓTICO E NÃO VAI TE FAZER PARAR DE OUVIR VOZES!" Frente à uma lógica tão impecável, sou obrigado a parar de fingir que ela não existe e a escuto.

"O que foi? Alguma coisa errada?" pergunto-lhe da maneira mais cordial que consigo. Nunca antes tinha ouvido vozes, e, apesar de ser algo relativamente preocupante, não me dá permissão de ser mal educado. A voz, contudo, continuou irritada e resmungou "não vai nem perguntar meu nome? Dormi contigo por acaso?" Aturdido, retruquei "por que, se tu é um fragmento da minha imaginação? No final das contas, você sou eu" e fiquei ainda mais aturdido depois disso, por que comecei a pensar nas implicações filosóficas e lingüísticas de "você sou eu". A voz misteriosa continuou o diálogo: "que provas você tem de que eu sou um pedaço da sua imaginação? Eu poderia ser uma idéia implantada telepaticamente na sua mente" Quem ficou impaciente agora fui eu, que perguntei, um tanto rispidamente "foi pra isso que você me chamou a atenção, você que não sou eu?"

"Realmente, não foi" desculpou-se a voz. "Na verdade, vim falar contigo sobre o teu blog, o 'Espadachim Cego'. Por que você não tem atualizado ele?" Sem hesitar, respondi "por que eu tenho mais o que fazer - o estágio está tomando todo o meu tempo". "Então, por que atualizou hoje?", perguntou de novo. "Por que eu quis", repliquei. "Isso não explica absolutamente nada" a voz continuou falando, piorando ainda mais o meu humor "essa tua explicação é uma ficção explanatória, por que considera como causa última do teu comportamento algo que precisa ser explicado contextualmente - no caso, a tua vontade seria um estímulo descriminativo para algum evento ambiental que reforça teu comportamento de escrever posts para o blog". Fiquei irritado "cacete, para uma voz que não é um fragmento da minha imaginação, tu sabe demais dos livros que eu tenho lido." A voz, mais uma vez, responde "telepatia tem suas vantagens, meu caro."

Aquela resposta foi a gota d'água. "OK, agora chega! Eu vou tomar umas cinco gotas de haldol e te fazer sumir da minha cabeça, telepatia ou não!" A voz, agora visivelmente alarmada, continuou falando, tentando me dissudir de tal atitude "mas, mas... EU SOU VOCÊ! Você quer cortar uma parte tão importante de sua vida de uma maneira tão brusca? Quer, quer?" Ainda procurando o vidrinho de haldol, respondi secamente "quero, agora cala a boca e me deixa em paz." Ainda mais alarmada, a voz continuou "mas o haldol não funciona imediatamente. Vai levar alguns dias até que ele atinja concentração suficiente no teu sangue pra fazer efeito. Além disso, é cheio de efeitos colaterais. Tu quer ficar todo torto por causa dos efeitos extrapiramidais? E..." subitamente, a voz parou. Mesmo com o seu silêncio, era óbvio que ela percebera algo que a deixou muito mais assustada. Lentamente, ela voltou a falar "E desde quando tu tem um vidro de haldol em casa?". Nesse momento, respondi triunfante: "o texto pro blog é meu, e nele, o haldol funciona do jeito que eu quero - inclusive existindo em grande quantidade no armário do banheiro, mesmo isso sendo absolutamente irracional de um ponto de vista realista." Tendo dito isso, tomei o vidro inteiro de haldol e a voz, em resposta gritou "Eu voltarei! Minha vingança será maligna" antes de desaparecer completamente, como algum vilão de filme de ficção científica ruim. Então, em paz, eu saí da frente do computador e fui fazer alguma coisa de útil da minha vida ao invés de escrever textos conceituais absolutamente incompreensíveis para o resto da humanidade.

FIM

domingo, 24 de outubro de 2010

Histórias que Entretêm - A Ferida e a Pintura

Aquela não era uma ferida comum. Embora ela tivesse nascido da mesma maneira que todas as outras feridas, em encontrão brusco com a realidade que corta, queima e lacera, a dor que ela causava seguia regras próprias. Ao longo do dia, enquanto o sol brilhasse, e o mundo permanecesse agitado, ela não doía, como se já tivesse cicatrizado ou nem mesmo existisse. Porém, quando a noite e chegava tudo silenciava, a fina casca que a cobria desaparecia, e o sangue voltava a verter, nunca o bastante para matar seu dono - apenas para fazê-lo sofrer. Nestas horas, a única coisa que ocupava sua mente era estancar a hemorragia, encontrar alguma maneira de fazer a dor sumir para sempre. Obsessivamente procurava uma cura, até cansar-se e entregar-se a um sono que, se não o libertava do martírio, pelo menos lhe concedia a fugaz trégua de abandonar tudo que dizia respeito a si próprio, e voltar apenas quando a redentora luz do dia já tivesse chegado, fazendo mais uma vez a dor desaparecer num passe de mágica. Era um homem doente, o sabia, mas de um jeito sutil. Às vezes, nem ele o percebia, e pensava que tudo ia bem. Era a noite que o lembrava de sua condição enferma, de que sofria e que precisava de uma cura. 

No princípio, ignorava que mal lhe acometia. Com o passar das noites, contudo, foi se observando, e viu mais sintomas. A doença era como uma obra de arte complicada, uma pintura quase incompreensível, mas que seguia uma linha-mestre e que possuía um sentido. Pouco a pouco, foi desvendando seus traços, seus contornos, sua forma, seu todo. Contra sua vontade consciente, passou até mesmo a apreciá-la em sua beleza sofrida, de cores cinzentas, escuras e frias, que trazia em si algo de rebelde e teimoso: era sofrida, cheia de dor e mágoa, e mesmo assim, se recusava terminantemente a se macular com reclamações abjetas, indignas, mesquinhas. Lutava para manter-se digna até o final. Isso era ao mesmo tempo profundamente incompreensível e admirável.

A vista foi se tornando mais afinada, e foi encontrando coisas novas. Cada dia que passava contemplando aquele quadro, descobria uma nova ordem, como se os seus elementos tivessem se deslocado, mudado de lugar e composto uma outra pintura enquanto dormia ou olhava para os lados. No começo, a ferida estava lá, bem no meio, sangrando para todos os lados, mostrando sua dor para todos os que tivessem a capacidade (e a vontade) de ver. Mas havia mais, muito mais por se descobrir. Daquela ferida, saía a tinta que pintava o nome de uma mulher, borrado por lágrimas e cercado por espessa camada de melancolia. Quando contemplava esta parte do quadro por muito tempo, ele era imobilizado por um sentimento de inutilidade, desejava a cama, quando não a própria morte, para cair mais uma vez no esquecimento e fugir da dor. Às vezes, porém, fixava sua atenção em outra parte do quadro. Era um borrão que misturava o vermelho do ódio e da raiva com aquela cor pálida da nostalgia, não só do passado como do futuro, tingido com o tom decepcionante da falsa esperança. Quando mirava esta parte, o que lhe possuía era um enorme desejo de quebrar, destruir, causar um estrago irremediável, que amputasse sua ferida a golpes de machado cego. Era seu próprio ódio que falava - ódio não só da ferida ou daquela mulher maldita cujo nome escrevera com o próprio sangue, mas principalmente de si mesmo. Odiava-se por ser tão fraco, por também sangrar, por também sofrer, e por ter que carregar uma ferida tão humana. Esta ferida que agora carregava, já vira em outras pessoas, já causara em outras pessoas. Com elas, manteve-se nobre e distante como um médico em visita, e receitara os mesmos emplastros que hoje recusa, despreza. Ao lado do vermelho do ódio, encontrou o tom alaranjado da vergonha.

Contudo, sua vista foi se tornando mais e mais aguçada, até ser capaz de perceber, para seu espanto, que existia uma cor diferente de todas estas. Em um canto afastado, descobriu um fugaz matiz de aurora e de sol nascente. Era uma nesga pequena, quase irrelevante, mas pura e verdadeira, que não podia ser ignorada. Passou a observá-la mais e mais, e mais e mais se espantava, por que a nesga crescia, ganhava mais brilho e ainda mais cores - um azul celeste de esperança sincera, um verde claro de futuro, outro tom de vermelho, de paixão e amor pela boa briga, e um dourado fulgurante de êxtase. Foi então que finalmente descobriu que a ferida não era o centro da pintura. Pensou que fosse, por que era tudo que conseguia ver até então. No fim das contas, ela era apenas a mais recente de uma série de cicatrizes rosadas que um dia foram cortes dolorosos: também ela cicatrizaria, mais cedo ou mais tarde, e se tornaria uma lembrança entesourada de um tempo de beleza singular. Viu então, pela primeira vez, que restava muito por pintar. Uma imensidão de branco o encarava, pedia por mais tinta e o chamava à ação. Que cores usaria? Não sabia ao certo. Não iria sua ferida voltar a doer? Também não sabia ao certo. Porém, isto não importava, pois precisava continuar aquela obra, antiga e nova ao mesmo tempo. Pegou um pincel, e pôs-se a trabalhar.

domingo, 17 de outubro de 2010

Vlog

Aparentemente, está na moda ter um vlog. Pra quem não sabe, "vlog" é a contração de "Video-Log", e é como um blog, só que com vídeos. Por exemplo, se o Espadachim Cego fosse um vlog, ele não teria textos gigantescos tratando de assuntos irrelevantes, mas teria vídeos de dez minutos onde eu pessoalmente falaria de assuntos irrelevantes, como vlogs.

Criar e manter um vlog é ainda mais fácil do que criar e manter um blog, especialmente nos dias de hoje, quando qualquer idiota tem uma câmera digital de 12 megapixels: é só se filmar falando sobre qualquer coisa. Claro, como qualquer coisa desse mundo, a qualidade do conteúdo dos vlogs varia bastante, tanto quanto o da internet em geral. No Brasil, os mais famosos são o PC Siqueira e o Felipe Melo. Ambos tem um estilo bem diferente de "vlogar" - PC Siqueira é espontâneo e fala tudo o que vem na cabeça na hora de gravar, enquanto Felipe Melo obviamente tem um roteiro (e provavelmente dá uma ensaiada na frente do espelho do banheiro). Surpreendentemente, ambos alcançaram um razoável sucesso, e já podem se considerar subcelebridades nas interwebs canarinhas. Há outros exemplos por aí na internet como um todo, especialmente na parte que fala inglês - atualmente, meu favorito é o da Julia Nunes, que canta sozinha e com recursos e efeitos sonoros próprios as músicas favoritas dela, e que fica muito bom mesmo, mas também tem o clássico That Guy With The Glasses, e o infame Red Letter Media, que são sites mais focados em fazer reviews de filmes (usualmente detonando eles da maneira mais violenta possível - tão violento quanto a internet pode ser).

Olhando todos esses exemplos de sucesso, bem como outros exemplos de fracasso, cheguei à uma conclusão: eu posso ter um vlog também. Qual seria o assunto principal desse vlog? Sei lá. Qualquer coisa que me interessasse por mais de 15 segundos. Teria roteiro, script, seria ensaiado? Olha, como bom cientista humano, seria semi-estruturada: começa com alguma coisa ensaiada e depois descamba para a putaria o improviso. Alguém iria olhar? Provavelmente meu pai, que depois de duas semanas ia começar a reclamar que eu não atualizo de chega (tipo o blog). Seria um vlog engraçado? Para algumas pessoas, provavelmente. A única certeza que tenho é que eu ia me divertir fazendo isso. Aliás, já teria feito se soubesse como usar a câmera do meu laptop.