terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Histórias que entretêm - Passeio Etílico em Uruguaiana (Parte III)

Os ideais, não importa quão belos sejam, têm sua validade sempre dependente do contexto. Por exemplo, a Reforma Psiquiátrica, que busca pôr abaixo os manicômios, hospícios e preconceitos e possibilitar uma vida mais livre e digna para pacientes portadores de sofrimento psíquico parece muito mais bonita quando não se está dentro de um veículo de grande porte dirigido por um esquizofrênico em surto. Bem, esta era a situação em que me encontrava, pois aquele caminhoneiro que parou para me dar carona, que a princípio parecia um lunático na verdade estava completamente delirante, me fazendo rezar por um hospício bem psiquiatrizante e com uma máquina de eletrochoque bem potente.

Ele dizia que seu "nome de cartório" era Pedro, mas que todos o chamavam de Tijolão. "Por que?" perguntei em um rompante infeliz de curiosidade, que o estimulou a contar uma história confusa e desligada da realidade, que envolvia de uma maneira muito bizarra a Brigada Militar, "os espião do Jorge Bush", alienígenas estupradores, rádios à pilha que controlam pensamentos e a olaria do pai dele, que tinha sido construída sobre a o tesouro dos Farroupilhas. Também envolvia, bastante tangencialmente diga-se de passagem, um golpe de tijolo que ele levou na cabeça quando guri. Em um setting terapêutico em Porto Alegre, seguro, confortável e cheirando à Bom Ar, eu acharia tal depoimento profundamente interessante, e mais fantástico que o caso do Presidente Schreber, mas ali, na boléia de um caminhão dirigido por este cidadão que deveria estar tomando Haldol como quem come Tic-Tacs, só serviu para aumentar meu pavor. Porém, eu já tinha começado a escarafunchar e ver as coisas com mais clareza, e não podia parar por ali. Restavam, pelo menos, mais duas perguntas por fazer: o que ele estava levando de carga e o porquê. Eu ia me arrepender de saber essas coisas, e ia ficar ainda mais apavorado, mas não dava para segurar:

- Seu Tijolão?
- Fala, guri.
- O que o senhor está levando na carga?
- Ali atrás?
- É. Ali atrás.
- Vacas.
- Como é que eu não ouvi nenhum mugido até agora?
- São vacas ninja. Tipo o Jiraya. Essas são muito rara. Tive que buscar elas lá na Argentina.

Estas informações reativaram meu olfato, até então anestesiado pelo meu próprio fedor, e passei a sentir um forte cheiro de carniça, e me impressionei por não tê-lo sentido antes. Pelo menos eu entendi como ele não se impressionou com o meu fedor. Ainda assim, continuava cheio de dúvidas (principalmente sobre onde ele aprendeu sobre Jiraya) e continuei:

- E o que o senhor pretende fazer com elas?
- Me vingar dos vermelhos, aqueles fiodaputa.
- Com um exército de vacas ninja?
- É isso aí. Por que?
- É um plano de gênio, seu Tijolão. Mas onde estão estes comunistas?
- Eles se escondem lá em Floripa, no Mercado Público.
- E o senhor vai soltar suas vacas lá, é isso?
- E pegar todos aqueles cornos.

Não me entendam mal - eu, mais do que qualquer outra pessoa, sou capaz de perceber o lado humorístico de um psicótico largando vacas mortas no meio de um mercado cheio de gente (e que, se ele fosse um estudante de Psicologia, ele estaria fazendo uma intervenção) e de todas os noticiários babacas que surgiriam na internet, mas precisava impedi-lo de fazer isto. Afinal de contas, quem pode imaginar quantas novas "doenças da vaca louca" (ou do "louco das vacas") podem surgir com essa brincadeira?

Precisava impedi-lo, já disse, mas não sabia como. Sabia que o papo furado de "confrontação empática" não iria colar ali, e que, se rolasse confrontação, ela seria bastante "antipática", por assim dizer. Comecei a olhar ao redor da boléia para ver se encontrava qualquer coisa que poderia ser como arma, especialmente contra mim. Além das dúzias de latinhas de cerveja que poderiam ser atiradas contra minha cabeça, identifiquei uma pá e um taco de basebol, além de um jogo de talheres completo. Por que este cidadão estava levando um jogo de talheres completo em sua boléia, não quero nem pensar - deveriam ser shurikens de vaca. Subitamente, surgiu em minha cabeça um ousado plano. Era absolutamente delirante, mas considerando que meu caroneiro também era, talvez funcionasse. "Seu Tijolão", disse com a voz baixa, "seu plano é genial, mas tem um problema". Ele levantou suas sobrancelhas e olhou para mim com interesse e espanto. Era o sinal de que tinha capturado sua atenção. Antes que ele perguntasse qualquer coisa, continuei - "suas vacas não estão bem treinadas". "Mas como, tchê? Eu mesmo peguei elas no campo e vi que elas eram boas!" exclamou ele. O olhar dele me pareceu um pouco assassino demais, então tão rápido quanto pude, emendei uma desculpa:

- Sim, elas tem muito potencial e só alguém muito bom poderia selecionar vacas ninja tão poderosas, mas precisam um treino especial a mais.
- E que treino é esse?

Olhei para os lados, como se procurando algum espião, e respondi:

- Não posso dizer agora. Os vermelhos podem nos ouvir. Eles controlam tudo nessa estrada, mas estamos com sorte. No próximo posto de gasolina há um mestre vaca ninja aliado nosso, e que pode dar o treinamento final para seus soldados.
- Tem certeza?
- Absoluta! Mas vamos com cuidado. Os espiões do Stalin estão por todos os lados, mesmo lá no posto.

Eu já sabia que tinha talento para ganhar a simpatia de psicopatas, mas este meu talento para conquistar a confiança de psicóticos era algo novo para mim. Bom, pelo menos estava progredindo: tinha conseguido carona para a Capital, e iria parar em um posto de gasolina, onde provavelmente eu encontraria um orelhão e talvez um chuveiro, e poderia conseguir uns trocados para um telefonema e uma ducha fria, até mesmo um Prato Feito ou qualquer angu de posto de gasolina. Depois de informado, limpo e alimentado, eu pensaria em como continuar a história do treino das vacas ninja e impedir meu amigo Tijolão de fazer alguma merda em Florianópolis.

Depois de cansativos trinta minutos (por que ficar fingindo estar se escondendo de possíveis espiões cansa pra cacete), chegamos no posto. Era igual a quase todos os outros postos de gasolina de beira de estrada que já conheci. Não era nada de especial, mas naquele momento parecia especialmente paradisíaco. Faziam quatro dias que tinha sumido de maneira pecaminosa de Porto Alegre, já estava anoitecendo e eu continuava coberto de sujeira. Tudo conspirava para que meus pais estivessem surtados me procurando em todos os cantos errados da capital e da Serra e que não me encontrariam, o que os deixaria ainda mais surtados. Dadas estas circunstâncias, me senti liberto de qualquer pudor e decidi satisfazer minhas necessidades de qualquer maneira. Antes que vocês digam que eu decidi vender meu corpo por uma coxinha de galinha e uma Sukita, matando dois coelhos com uma cajadada só, já lhes informo que na verdade eu não cobro comecei a mendigar trocados e/ou cartões telefônicos. De certa forma, era mais ou menos como passar por um novo trote, com a diferença que dessa vez, não pedia trocados para beber demais, mas pedia trocados por beber demais.

Não sei o que as pessoas que eu abordava pensavam quando me viam, mas sei que recebi muitas doações. Talvez eles não quisessem que eu encostasse no carro deles, o que poderia vir a ser uma boa ameaça caso precisasse ser mais "convincente". Tendo acumulado muitos sucessos na minha carreira mendicante, pensei em descansar um pouco e tomar um banho. Porém, o senso de urgência que tomara meu corpo (além das minhas pulsões sado-masoquistas/auto-punitivas) era forte demais para permitir tamanho luxo antes de eu telefonar para alguém conhecido e confiável. Por isso, assim que achei que tinha créditos o suficiente para dizer, por telefone, onde e como eu estava, fui até o orelhão mais próximo e liguei para o Borat.

Tuuuuu... Tuuuuu... Tuuuuu... A ligação tinha sido feita. Enquanto esperava alguém atender, ensaiava novamente o que diria, especialmente se alguém além do Borat atendesse o telefone (e agradecia pelo fato de tal aparelho não transmitir odores). Tuuuuu... Tuuuuuu... Tuuuuu... Mais alguns segundo de espera, antes de contatar minha salvação. Tuuuuu... Tuuuuu... Tuuuuu... Já demorava demais, e começava a pensar se meu redentor não teria saído para beber e no processo esquecido completamente da minha existência (e, se ele realmente fez isso, se foi intencional). O orelhão iria começar mais uma vez sua monótona canção quando escuto o barulho de um fone sendo tirado do gancho do outro lado da linha e escuto o primeiro alô do meu amigo. Mal começara a dizer "Borat, seguinte..." quando, por razões que a própria razão não compreende, senti um forte impulso de largar o telefone e rolar para a esquerda. Quando fiz isso, percebi que dizer que a razão não comprendia por que eu deveria fazer isto talvez fosse incorreto, pois meu caroneiro Tijolão tinha recém arrebentado aquele orelhão com uma pá, enquanto gritava "Comunista" e "traidor" a plenos pulmões.  Ao contemplar tal espetáculo, pensei que, se algum dia eu tivesse a oportunidade de dizer ao meu psicanalista como me senti naquele instante, diria que me senti como Kitti Genovese e um bebê de 6 meses, por que ninguém que estava ali por perto fez nada, e por que eu acabara de cagar nas calças com o susto.

"Telefone é coisa de comunista, seu porco! Me traiu!" gritou ele mais uma vez, desta vez olhando para mim com olhos injetados de sangue. Ele não era mais Tijolão, mas Azrael, o anjo da morte, e ele viera para a terra para levar minha alma para o inferno, não com uma foice, mas com uma pá. Talvez, em condições normais, eu pudesse enfrentá-lo de frente, sem medo, como um verdadeiro guerreiro. Contudo, os últimos quatro dias que passei cometendo todas as heresias listadas pelo Vaticano e buscando voltar para Porto Alegre deixaram-me completamente esgotado e incapaz de dar um soco sequer. Eu ainda conseguia correr. E como conseguia! O problema que Tijolão também corria muito para um homem de seu tipo físico, o que me obrigava a mudar minha estratégia, e logo. Em uma ousada e desesperada manobra, desviei-me de Tijolão, e corri com todas as minhas forças em direção ao seu caminhão.

Continua...

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