terça-feira, 29 de dezembro de 2009

As Histórias da Expedição Austral - Nossas Idiossincrasias Lingüísticas

Apesar da linguagem ser um desenvolvimento evolutivo relativamente recente, é razoável dizer que o Homo sapiens é um animal verbal. Em outras palavras, isto quer dizer que o ser humano inventa palavra para tudo que é porcaria que ele conhece e/ou inventa. Para dar um exemplo disto, vamos imaginar que voltamos no tempo, e que agora somos Vikings, navegando em um navio com cabeça de dragão, procurando terras para pilhar e usando capacetes com chifres mesmo que os vikings de verdade nunca tenham feito isto. Agora, pensem que nosso navio atracou em uma praia desconhecida, porém muito bela do hemisfério sul. No melhor espírito aventureiro, nós descemos do navio e exploramos a terra, com a expectativa de enfrentar alguma horda bárbara e irmos para o Valhalla, quando, de repente, vemos diante dos nossos olhos uma linda, colorida e gigantesca ave, voando com graça e elegancia. O que fazemos? Matamos a ave, obviamente, por que nós somos Vikings e nós matamos coisas. Porém, depois que a matamos, vemos que ela é muito diferente de qualquer outro pássaro que conhecíamos. O que temos que fazer? Além de descobrir se dá pra comer a carne do bicho, precisamos inventar um nome para ele. Mas não se preocupe, estas duas coisas acontecerão naturalmente, e algum dos nossos companheiros criará uma palavra como "Arara", "Papagaio" ou "Parakittar" para designar a nossa futura janta.

Agora, voltemos para o tempo presente, por mais desinteressante que ele possa parecer agora por não sermos mais vikings e por não termos arara para o jantar. Este exemplo que eu dei, apesar de ser preciso o suficiente, não é amplo o bastante, por que não inventamos palavras só quando um troço colorido e cheio de penas voa em nossa direção, e sim o tempo todo. De fato, apesar de não poder provar nada do que vou afirmar agora (e, aliás, nem preciso, isso aqui não é um artigo pra Science), creio que passamos por um processo parecido quando aprendemos a falar nossa língua materna, e é através dessa "invenção contínua" de novas palavras que novas línguas nascem. Se os vikings do nosso exemplo, ao invés de voltarem para a Escandinávia, resolvessem estabelecer uma comunidade ali naquela terra cheia de Parakittars e não fossem todos devorados por criaturas selvagens e/ou populações auctóctones, dentro de algumas décadas desenvolveriam uma linguagem tão diferente da original que se transformaria em uma nova. Isso aconteceu pelo menos uma vez, com os holandeses que se mudaram para a África do Sul e "criaram" a língua afrikaans.

Mas não precisamos ir tão longe assim. É bem possível que exista algum agrupamento humano que, apesar de separado do resto de sua sociedade, não desenvolva uma língua própria, contudo esteja isolado o suficiente para criar toda uma vasta gama de termos novos para coisas que não existem no "resto do mundo" ou que lá teriam um outro nome, mais convencional. Um exemplo disto são as Forças Armadas que, por obrigarem seus membros a passarem quase todo seu tempo isolados do resto da sociedade, desenvolvendo tarefas pouco ortodoxas (pilotar helicópteros, por exemplo), muitas vezes acabam criando espontaneamente e ao longo do tempo uma forma muito própria de se comunicar. O melhor exemplo que tenho deste fenômeno é este longo e interessante glossário de termos utilizados informalmente pelos membros da Marinha dos Estados Unidos. É longo, porém extremamente divertido (eu me matei de rir com "Whistling Shitcan of Death" e PFM). É discutível se, durante nossa viagem, eu e Marcelo ficamos realmente isolados do resto da sociedade, mas como nos confrontamos com necessidades diferentes das nossas em Porto Alegre, acabamos por inventar palavras novas ou remodelar as antigas para que melhor descrevessem nossas condições (e também serem mais engraçadas).

A primeira gíria surgiu ainda em Buenos Aires. No primeiro ou segundo dia de congresso, eu e Marcelo caminhávamos apressadamente para chegarmos à tempo de alguma palestra e, como estávamos com fome, paramos em um mercadinho, onde compramos algumas unidades de pão francês, que provavelmente deveriam ter pó de cimento na mistura, por que eram horríveis - secos, duros e sem gosto algum. Como bom estóico que é, Marcelo simplesmente passou a dar mordidas mais fortes, eu, como bom palhaço e nerd, me lembrei de um pedaço de "O Hobbit", e o compartilhei com meu amigo  no seguinte diálogo:

Eu- Marcelo, tu já leu "o Hobbit"?
Marcelo- Duas vezes.
Eu- Tu te lembra do "cram"?
Marcelo- Não.
Eu- Cram era o nome de um pão de viagem dos anões, parecido com o Lembas, que era duro, seco e sem gosto, e que servia mais para exercitar as mandíbulas do que para a alimentação.
Marcelo- Ah!

E assim, daquele momento em diante, cram virou sinônimo de "comida ruim, mas que supre nossas necessidades". Mais adiante na viagem, já na Patagônia, cram passou a ser o nome muito particular que demos para os mandolates da La Anonima, que descobrimos em uma promoção de Natal. Como os pães de Buenos Aires, eles eram secos, duros e com um gosto muito sutil (para não dizer inexistente), mas serviam para encher a barriga entre as refeições. Muitas vezes, durante as nossas caminhadas, ouvi Marcelo dizer "pega o cram, por favor", como se ele dissesse "hora de manter a glicemia". Curiosamente, mais para o final da viagem, compramos mandolates da Arcor, que além de mais macios, tinham sabor de alguma coisa, e a primeira coisa que dissemos quando descobrimos isso foi "bah, que merda, isso aqui tem gosto. A gente vai acabar com tudo logo, logo". Feliz ou infelizmente, não foi o que aconteceu, pois os tais mandolates provaram ser enjoativos.

A segunda palavra que desenvolvemos foi PDM. Sempre que iríamos fazer alguma coisa peculiarmente arriscada ou idiota, calculávamos seu PDM. E o que é PDM? É "Potencial pra Dar Merda". E nossa viagem era cheia de potencial! Como exemplo clássico do uso deste termo, lembro-me de "tchê, essa tua idéia tem um alto PDM", quando um de nós sugeria qualquer coisa perigosa ou imbecil. Foram tantas que nem vale a pena fazer uma lista. Considero esta sigla especialmente engraçada por ter, ao mesmo tempo, um ar altamente técnico e um significado particularmente vulgar.

A terceira palavra não é tanto uma gíria nossa, e sim mais um hábito nosso. Como nós estávamos bastante acostumados a comparar preços, nós fazíamos isto em qualquer lugar onde houvesse prateleiras e produtos à venda, mesmo que não quiséssemos comprar nada. Por que fazíamos isso? Por despeito, pois assim, podíamos nos sentir melhores do que o resto das pessoas que compravam, por que sabíamos que os preços ali eram absurdos e nós sabíamos onde era mais barato (no La Anonima, é claro!). E o nome que dávamos para esta sobra de preço era "achacação". Se, durante uma viagem de ônibus parássemos em um posto de conveniência (assim chamados por dois motivos: 1. são bem localizados, para a conveniência do viajante; 2. têm os preços absurdamente inflacionados, para a conveniência do dono do estabelecimento), um de nós certamente olharia o preço das coisas à venda e diria para o outro "a achacação aqui é violenta" e tentaria pegar discretamente a comida que o casal de idosos deixou sobrando no prato.

Também tínhamos uma relação especial com as palavras do espanhol que aprendíamos no caminho. Não pedíamos carona, "haciamos dedo" - ou "fazer dedo", depois de muitas horas na beira da estrada. Jurel, caballa e pelón (além de choclo, por parte do Marcelo), apesar de provavelmente terem algum equivalente em português, eram os únicos termos que tínhamos à nossa disposição para descrever três itens bastante importantes de nossa empreitada - para ser sincero, até hoje não sei bem que tipo de peixe são caballa e jurel (porém pelón eu sei que em português é nectarina). Copado, apesar de não ter se tornado parte integrante do nosso vocabulário, era um acessório interessante, que usávamos quando conversávamos com argentinos e queríamos dar a entender, ao mesmo tempo, que achávamos que algo era legal, e que entendíamos do dialeto argentino. Como diriam os norte-americanos exceto os mexicanos worked like a charm.

Por fim, dois dedos de prosa a respeito do nosso equipamento. Não, não inventamos nomes personalizados para nenhum item do nosso inventário (exceto a garrafinha, que sempre chamamos de "A Saudosa"), mas fomos, com o tempo, descobrindo seus nomes em espanhol e utilizando-os quando necessário. Barraca é carpa ou tienda; fogareiro, calentador; guardanapo (sim, sempre tínhamos pelo menos dois à nossa disposição), servilleta. Por causa do hábito que nosso calentador tinha de apagar quando mais precisávamos dele, tivemos que desenvolver um dispositivo que protegesse sua chama e mantivesse seu calor. Foi assim que nasceu o "forno". Se vocês pensaram em um invento altamente sofisticado, eu sinceramente duvido que vocês tenham entendido como foi nossa viagem. Basicamente, nós colocávamos um de nossos isolantes térmicos em volta do fogareiro aceso, e o cobríamos com uma jaqueta. O fogo continuava apagando, mas com muito menos freqüência. E, last but not least, passamos a viagem inteira chamando nossa panela de "panela", para depois descobrirmos que era uma leiteira. O que não muda nada, pois continuo chamando ela de panela.

A "leiteira" em ação. Sim, a situação é algo que saiu de um livro dadaísta.

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