domingo, 20 de julho de 2008

Vida e Espírito

Estou lendo a autobiografia de Mohandas Gandhi, “Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade”. Esta leitura tem suscitado em mim muitas dúvidas, algumas das quais expus nos meus textos anteriores sobre hábitos alimentares, disciplina e ética. A dúvida que me vem a mente agora é mais sutil e complexa do que comer carne ou não. Gandhi, como qualquer um que saiba um pouco de história recente pode dizer, era um asceta, e fazia rigorosas dietas, em que não só a carne e o álcool lhe eram vetados, mas o leite, os ovos e até mesmo leguminosas e sal. E em ao longo do livro, ele relata diversos momentos de doença grave, seja sua ou de entes queridos, onde precisou decidir entre suas crenças alimentares e a vida. Deveria ele tomar leite e recuperar-se rapidamente, ou persistir com sua dieta, e correr risco eminente de morrer? Ou, deveria ele autorizar que fosse dado caldo de carne para sua mulher, para que ela tivesse uma alimentação mais rica em proteína e pudesse se salvar, ou expô-la a riscos maiores, mas persistir na fé?

Como disse anteriormente, não são questões nada fáceis. Em todas as situações deste gênero que Gandhi relatou, ele escolheu sua fé e sua crença no ahimsa, na não-violência contra qualquer ser vivo, seja ele humano ou animal, e não autorizou nenhuma mudança em sua dieta (exceto uma vez, quando se permitiu ingerir leguminosas cruas). E, todas as vezes que assim se portou, foi capaz de impedir a morte da sua própria maneira. Se assim aconteceu por causa ou apesar de suas escolhas, não cabe a mim decidir, e também não acho que ele tenha mentido ou omitido qualquer ocasião em que seu estilo de vida fez com que alguém morresse, pois seu compromisso com a verdade era grande demais para tal. Isto certamente demonstra uma grandeza sem par, onde o Espírito sempre prevaleceu sobre a matéria. Contudo, o Espírito humano não pode manifestar-se senão através do corpo, da matéria, e, se digo que Gandhi teve sorte, é por que as coisas poderiam ter acontecido de maneira muito diversa, e ele poderia não ter levado sua missão adiante por ter se negado a comer carne quando necessário. Há uma história de um santo russo, cujo nome correto ainda não encontrei, que, na ocasião da Sexta-Feira Santa, encontrou um homem subnutrido e moribundo, e decidiu que ele deveria ingerir carne para fortalecer-se. Como o homem se negava a quebrar uma regra tão sagrada, o santo comeu junto, para convencer o homem a fazer o mesmo. Também neste santo vemos um exemplo de grandeza moral, pois ele preferiu ir contra tudo o que a convenção eclesiástica dizia e salvar a vida de um semelhante. Mas quem é mais nobre: Gandhi ou o santo russo?

Vejo-me obrigado a dizer que não tenho uma resposta satisfatória para tal pergunta, mas ainda outra: a vida precede o espírito, ou o espírito vem antes da vida? Em nome de nossa verdade, devemos abrir mão de nossa vida a qualquer momento, ou devemos manter-nos vivos, para podermos perseguir nossa verdade por muito tempo? Ambas as alternativas são igualmente válidas, e igualmente perturbadoras. Eu posso manter-me fiel a meus votos, mas por causa disso morrer, e não mais ser capaz de cumprir minha missão neste mundo; por outro lado, eu posso permanecer vivo e realizar meu destino, mas talvez a mácula do pecado seja grande demais, e me impeça de viver minha vida plenamente – atingir a Verdade.

Mais uma vez, lamento em dizer que não tenho respostas satisfatórias, no máximo, hipóteses muito precárias. Talvez seja um exercício infrutífero analisar estes casos a posteriori, e decidir qual foi a decisão superior. Ambos os homens tiveram bons motivos para agirem como agiram, e ambos foram felizes em suas escolhas. Não se sabe o que teria acontecido se tivessem feito escolha oposta àquela feita, muito menos se poderiam ser repreendidos se assim fosse. No fim, ambas as decisões gravitaram em torno do caráter sagrado da vida – seja mantê-la, seja consagrá-la e perde-la – e talvez o único norte que temos em tais situações-limite seja nossa voz interior. E não sabemos o que se passa na alma alheia, nem na de Gandhi, nem na do santo.

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