sexta-feira, 25 de abril de 2008

Eu e as Neurociências

Se aplicarmos um teste de associação de palavras para uma pessoa qualquer, e o termo “Psicologia” aparecer, a resposta muito provavelmente será “Freud”, ou algo relacionado com um teórico clínico relativamente famoso.

Freud tornou-se famoso e importante por que, em sua época, a Psicologia e a Psiquiatria eram ciências com pressupostos epistemológicos e experimentais muito frágeis, e a prática de pesquisa consistia basicamente em observações e entrevistas – havia tentativas de pesquisas neuropsicológicas, tentando associar comportamentos com características fisiológicas, como a frenologia, mas pouco progresso se obteve por esta via.

Na época de Freud, devido a esta fragilidade científica, para que se obtivesse algum progresso, era necessário que algumas pessoas, baseadas em seus insights, formulassem teorias sobre o comportamento humano e as testassem, para ver se eram verdadeiras ou não. Como os métodos para verificar se as teorias eram falsas ou verdadeiras(1) naquela época não eram lá tão eficazes, muitas teorias opostas conviviam como igualmente corretas. Isso ocorre em menor grau até hoje(2), e explica em parte por que até hoje ainda estudamos a teoria freudiana clássica e outras similares.

Porém, mais de 100 anos após o nascimento da Psicanálise, a situação é bem diferente. Com os progressos das ciências, seja da Física, da Química, da Matemática, seja da Psicologia, da Farmácia e da Medicina, hoje existem métodos de pesquisa muito mais eficientes, e que produzem conhecimentos relevantes(3) de forma cada vez mais acelerada, para áreas distintas como psicoterapia, lingüística, políticas públicas e ciência básica(4). A intersecção destas disciplinas chama-se comumente de Neurociências.

Temos na faculdade pelo menos duas disciplinas sobre Neurociências logo nos dois primeiros semestres: Neuroanatomia Funcional Aplicada à Psicologia, e Fisiologia Geral Aplicada à Psicologia. Sinceramente, foi horror à primeira vista, pois não entendia nada do que os professores diziam, e quando estudava em casa, não era capaz de memorizar nenhum dos termos que lia (Córtex Órbito-frontal? Quem lembra de um nome desses na hora da prova?). Entretanto, no final da cadeira de Fisiologia, quando realmente vimos as relações entre o cérebro e os órgãos internos com os comportamentos humanos, percebi como o assunto era fascinante.

Meus conhecimentos do assunto ainda são bem rudimentares (não sei o que o Córtex Órbito-frontal faz), mas estou lendo o que posso da maneira que consigo sobre o assunto. Digo da maneira que consigo por que, como não tenho mais nenhuma cadeira para tirar notas boas, não preciso me forçar a entender o assunto, então, leio com calma, não entendo nada, mas vou lendo outros textos sobre o mesmo assunto, até que uma hora eu me sinta confortável o bastante para dizer que entendo.

Tenho um acesso relativamente fácil aos livros deste assunto. O Instituto de Ciências Básicas da Saúde da UFRGS mantém um curso de pós-graduação em Neurociências, e no Instituto de Psicologia temos o Laboratório de Psicologia Experimental, Neurociências e Comportamento (LPNeC), e já tive aula com professores destes dois órgãos acadêmicos (que estão intimamente ligados).

Porém, encontro alguns obstáculos significativos no estudo destas disciplinas. O primeiro é a falta de tempo livre para ler livros que não os que tenho que ler para a faculdade. O segundo é a tacanhice de muitos de meus professores, que preferem que estudemos teorias do século XIX (uma professora nossa diz que nós fazemos faculdade de História da Psicologia. A Psicologia atual a gente estuda depois de formado, trabalhando ou fazendo pós-graduação). As duas estão intimamente ligadas, pois se nos fossem dadas mais disciplinas neurocientíficas, não precisaria ficar fazendo tempo para ler sobre o assunto. Não é, na minha humilde opinião, a situação ideal, já que, apesar de ler sobre um assunto interessante, eu seria obrigado a ler o que o professor quer, e não o que eu quero, mas seria um pequeno progresso. O problema maior vem de outro lado, da política intrainstitucional da faculdade. Há dois ou três anos, quando decidiu-se reformar o currículo do curso de graduação em Psicologia, os professores foram convidados a apresentarem projetos para a nova estrutura curricular. Dois professores apresentaram um projeto que mudaria radicalmente a forma como as aulas seriam dadas para nós: as aulas presenciais seriam cortadas pela metade, teríamos tempo abundante para estudar por conta própria e não existiriam “disciplinas” propriamente ditas – teríamos tópicos para pesquisar a respeito, e contaríamos com a ajuda dos professores para tanto. Mas como isso seria bom demais para ser verdade, os professores que idealizaram este modelo pertencem ao Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e Personalidade, e os professores dos outros departamentos, junto com os estudantes envolvidos no processo, vetaram esta idéia logo de cara. Como eu sei disso, e por que mataram uma idéia tão boa logo em sua concepção? Bem, conversei com um dos estudantes envolvidos. Segundo ele, o Desenvolvimento tem uma política de cooptação de graduandos tremenda, e que eles teriam mais poder de fogo ainda com este esquema. Isso é verdade? Infelizmente sim. Mas, para ser franco, todos os três departamentos do Instituto fazem isso – o Desenvolvimento é apenas o mais descarado. Os outros dois apenas fingem (mal e parcamente) que isso é eticamente errado, mas tentam cooptar estudantes pelegos para suas pesquisas igualmente. O cara que me contou isso está convicto de que fez o melhor para o curso – se mais alunos fossem para o lado do Desenvolvimento, haveria um desequilíbrio de forças dentro da unidade orgânica. Fico me perguntando se haveria mesmo. E se isso viesse a acontecer, por que os outros departamentos se importariam tanto? Talvez por que gostariam de que eles monopolizassem o Instituto (alguns professores já deixaram isso claro para nós), e preferiram manter-se presos ao passado, tentar fazer o galo parar de cantar do que correr o risco de perder poder. Mais uma vez, a política atrapalhou a ciência.

Mas, pelo o que sei, a história não parou por aí, já que os dois professores que falei continuaram envolvidos na reforma curricular. Um deles, meu amigo falou, só encheu o saco e barrou de todas as maneiras possíveis os trabalhos. O outro, pelo que percebo de suas atitudes, tentou salvar o que podia do projeto original. Propôs que as aulas presenciais ainda fossem reduzidas, e que mais tempo de biblioteca fosse disponibilizado, mas foi em vão. William James já falava sobre isso. Quando uma pessoa lhe falou sobre uma proposta de substituir as palestras na Escola de Medicina(5) por um “sistema de análise de casos”, ele disse: “Acho que você está inteiramente certo, mas seu sábio professor se rebelará. Ele sem dúvida prefere sentar-se e ouvir sua própria voz maravilhosa a guiar as inseguras mentes dos estudantes”. Dando um salto imaginativo não muito longo, aposto que foi isso que aconteceu aqui na gloriosa Universidade Federal do Rio Grande do Sul: a maioria dos professores prefere ficar se exibindo na frente da sala de aula, e a idéia de perder seu palco e seu publico cativo é aterrorizadora, e para que tal crime não seja cometido, dizem que “pelo bem dos estudantes” deve-se continuar dando horas intermináveis de aulas presenciais.

Mas devo dar o braço a torcer para estes professores: eles são bons no que fazem, pois conseguiram convencer quase todos os graduandos de Psicologia não só de que estão certos, mas que o departamento de Desenvolvimento e tudo o que fazem é coisa do “demônio” (que é comodamente chamado de “Lombroso”, considerando que luminares sapientíssimos como eles sabem que nem Deus nem o diabo existem). E as Neurociências em especial são o tridente do cramunhão para eles, por representarem um “retorno” à práticas de extermínio debaixo de uma roupagem moderna. Alguém lembra de uma certa nota de repúdio? E os professores conseguem fazer tudo isso sem perder a pose de tolerantes e progressistas. Fantástico.

Sinto que fugi um pouco do assunto, pois cai na enredada situação política da minha faculdade, que ligeiramente toca as Neurociências (não vai ser por causa dos meus professores que todas as máquinas de PET Scan do mundo vão ser destruídas). Mas o título desse post é “Eu e as Neurociências”, e estou diretamente implicado neste rolo que relatei. Portanto, tem tudo a ver com o post.

Sinto que as Neurociências, apesar da tacanhice de alguns, tem muito o que oferecer para a Psicologia. Ao contrário do que muitos temem, dificilmente a ressonância magnética irá substituir a psicoterapia – pois nada nunca irá substituir as relações humanas, nem a Psicologia se tornará uma “neurologia de segunda mão”. Como disse anteriormente, acredito que teremos cada vez mais Neurociências no currículo de Psicologia, mas este assunto não substituirá, apenas complementará e tornará mais rico o que aprendemos na faculdade. Acho que Freud aprovaria isto.






1. Relevem o “verdadeiro”, estudantes de Epistemologia e solipsistas.
2. Não é necessariamente negativo ou contraproducente. Bem pelo contrário, acredito que quando mais teorias diversas, maior número de pesquisas sobre assuntos diversos são realizadas, e maior progresso se alcança.
3. Em sua maioria. Não subestimem a capacidade dos cientistas de pesquisarem bobagens. Nunca.
4. Na visão tradicional de ciência, a pesquisa em ciência básica não tem um foco específico: pesquisa-se sobre um assunto por que pouco se sabe a seu respeito, não por que seja necessário fazer uma intervenção. Pesquisas em ciência aplicada, por outro lado, focam-se em problemas específicos, com o intuito de resolvê-los. A ciência básica fundamenta a ciência aplicada, e esta dá idéias de pesquisa para a primeira. Na realidade, não é bem assim que funciona, pois a coisa é muito mais complexa. Falarei disso outra hora (se me der na telha).
5. Lembre-se que a formação de William James foi toda na área da Medicina, já que em sua época não existiam departamentos de Psicologia nas universidades dos Estados Unidos.

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