domingo, 20 de fevereiro de 2011

Um problema para a ciência da Psicoterapia (epílogo) - Sete Livros e Um Destino

Depois de quase cinco anos fazendo trabalhos acadêmicos e colocando referências no final da maioria deles, não consigo mais citar um livro em um texto sem depois dar as informações necessárias para que outras pessoas possam lê-los e ver por conta própria se o que eu falei a respeito deles é verdadeiro ou não. Então, como eu sou um nerd incorrigível como eu adoro a ABNT como eu defendo o livre conhecimento, passo aqui a lista dos sete livros que chamaram minha atenção enquanto eu escrevia o post anterior, mais alguns que eu penso serem tão importantes quanto eles. É importante ressaltar que só agora eu percebi que, dos sete livros que chamaram minha atenção, eu só tenha começado a ler um, por que os outros foram comprados apenas recentemente e/ou se perderam na minha longa lista de "livros por ler". Para balancear este problema, listarei mais sete livros que eu realmente li, e cuja leitura considero vital para qualquer empreitada séria em Saúde Coletiva.

Os Sete Que Eu Não Li
1) Neurociencia Aplicada a la Conducta Criminal y Corrupta - Elba Tornese e René Ugarte
2) A Practical Guide to Acceptance and Commitment Therapy - Steven Hayes e Kirk Strosahl
3) Psicoterapia Personalista - Arnold Lazarus
4) Buddha's Brain - Rick Hanson e Richard Mendius
5) Metacognitive Therapy for Anxiety and Depression - Adrian Wells
6) Relational Frame Theory - Steven Hayes, Dermot Barnes-Holmes e Bryan Roche
7) The Neuroscience of Psychotherapy - Louis Cozolino

Os Sete Que Eu Li (pelo menos um pouco)
1) Mindfulness for Two - Kelly Wilson e Troy DuFrene
2) Emotional Disorders and Metacognition - Adrian Wells
3) Learning RFT - Niklas Törneke
4) Psicoterapia Analítica Funcional - Robert Kohlenberg e Mavis Tsai
5) Processos Humanos de Mudança - Michael Mahoney
6) Psicoterapia Breve e Abrangente - Arnold Lazarus
7) The Will to Believe and other essays in popular philosophy - William James

Pensei em escrever também uma pequena justificativa para cada livro, mas depois mudei de idéia, primeiro por que ia estragar a surpresa do leitor descobrir por conta própria o que estes livros tem de atraente, e segundo por que ia dar trabalho demais para um domingo às cinco da manhã. Entretanto, é interessante notar o que essa lista diz a meu respeito. Por exemplo, depois de escrever essa lista, percebi que todos os livros, exceto um, são sobre psicoterapia ou neurociências, e que não há um livro sequer sobre Saúde Coletiva. Isto significa que eu não li nenhum livro sobre este assunto, ou que eu considerei todos os que li irrelevantes para o propósito deste post. Qualquer que seja a resposta correta, eu preciso ler mais. Aceito sugestões.

Um problema para a ciência da Psicoterapia

A ciência da Psicoterapia, como ela é ensinada e difundida nos dias de hoje, tem um problema seríssimo, na minha opinião. Temos mais de 100 anos de conhecimento acumulado, diversos modelos teóricos altamente eficazes para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos e muitos profissionais competentes, tanto no "campo", atendendo pacientes, quanto na "academia", pensando e fazendo pesquisa básica. Desde que Freud começou sua revolução psicanalítica, nós avançamos muito, tanto que até me atrevo a dizer que finalmente começamos a entender aquilo que chamamos de "natureza humana". Então, qual é o problema?

O problema que eu vejo é que, apesar de todo esse conhecimento acumulado ao longo de um século, o índice de transtornos mentais parece estar aumentando ao invés de diminuindo. Um leitor atento e bem informado poderia por a culpa disso nos maus métodos diagnósticos preconizados pelas principais organizações psiquiátricas do mundo, que acabam enviesando nosso olhar de modo a ver mais doenças, mas penso que há mais por trás do nosso problema do que apenas um erro estatístico, por que ainda é possível ver muitos homens e muitas mulheres sofrendo profundamente sem nunca receberem nenhum diagnóstico psiquiátrico de brinde. O que quero dizer com este longo rodeio é que 90% das grandes descobertas no campo da psicoterapia não refletem em mudanças positivas para a vasta maioria da população, e parte do problema se encontra justamente no treinamento dos profissionais da área da saúde mental, especialmente o dos psicoterapeutas. Falo deste ramo profissional por ser o que melhor conheço, por eu mesmo ser um psicoterapeuta em treinamento, e por achar que este é o ramo com o maior potencial desperdiçado. Explico por que.

No começo do século XX, quando Sigmund Freud começou a psicanálise, a idéia de tratar problemas de saúde que não podiam ser atribuídos a causas biológicas óbvias era um tanto quanto nova, e precisava se fundamentar em outras ciências. Freud, por ser neurologista, fundamentou a nova ciência que estava nascendo na tradicional clínica médica, que consiste (de maneira resumida) em atender um paciente de cada vez, escutar seus problemas com bastante atenção e então formular um tratamento adequado para as necessidades daquele indíviduo particular. Para treinar novos psicanalistas, era necessário encontrar pupilos brilhantes que se interessassem por este tipo de problema, e se dispusessem a passar por uma longa e trabalhosa análise didática, que serviria, entre outras coisas, para tornar o futuro psicanalista consciente de seus próprios problemas psicológicos, até então inconscientes. Este modelo foi o melhor que Freud conseguiu criar, e era suficiente e adequado para os tempos em que ele viveu. Entretanto, da maneira como eu vejo, o mundo e suas necessidades mudaram, mas a maneira de treinar terapeutas continua essencialmente o mesmo.

No imaginário popular, quem entra para a faculdade de Psicologia, ou para a residência em Psiquiatria, vai trabalhar com pacientes, montando seu consultório em um bairro acessível, ou atendendo no postinho em alguma favela vila comunidade bastante afastada do centro da cidade. Na faculdade, apesar de vermos muito mais coisas para além da Clínica "pura e simples", e de em nossa formação nós sermos obrigados a ver muitas outras coisas para além dela, essa mentalidade se mantém praticamente intacta. Talvez, a imagem que nós, acadêmicos, temos da Psicologia Clínica é ainda mais engessada do que a da população, justamente por que nós sabemos em detalhe como deve ser uma clínica: primeiro, ela deve acontecer em um consultório, tecnicamente chamado de "setting terapêutico", que deve ter uma série de características físicas (duas poltronas em distância confortável, talvez um divã e uma mesa de centro, aspecto neutro ou agradável, sala de espera com revistas mais ou menos atuais e, se você mora em uma cidade úmida e quente como Porto Alegre, um ar condicionado bem calibrado), durar de quarenta à sessenta minutos e ser realizada com apenas um paciente por vez. Dependendo da orientação teórica do psicoterapeuta em questão, esse número de "um paciente por vez" pode aumentar consideravelmente, podendo virar "um grupo famíliar por vez" ou "um grupo terapêutico por vez". Mesmo assim, o problema persiste, por que não é amplo o bastante.

Treinar psicoterapeutas é caro, por que envolve pelo menos cinco anos de muito estudo na faculdade, comprar muitos livros e pagar muitas idas a congressos, sem contar as eventuais pós-graduações que podem aparecer no caminho. Os psicoterapeutas formados sabem que precisaram ralar muito para conseguirem seu diploma, e por isso cobram um preço justo por seus serviços. Quanto é esse preço, você quer saber? Segundo o site do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, o preço mínimo para uma consulta psicológica é de R$81,62, e o preço máximo é de R$139,93, mas é notório e sabido que profissionais a mais tempo no mercado podem cobrar muito mais do que isso por sessão. Quem é que pode pagar um preço desses? Quem tem casa própria, carro na garagem, renda fixa mais ou menos elevada, e que possui os meios necessários para comparecer pelo menos uma vez por semana ao consultório do psicólogo ou do psiquiatra. Quem são essas pessoas? Os membros das classes econômicas A e B. É bem possível que pessoas que pertencem às classes C, D e E paguem por sessões de psicoterapia, mas com grande sacrifício financeiro e pessoal. Quando este sacrifício não é possível ou desejável, existe a possibilidade de procurar ajuda gratuita em clínicas-escola, hospitais públicos e dispositivos do SUS como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS, antigamente conhecidos como "CAIS Mental"), ou a Unidade Básica de Saúde (UBS, popularmente chamado de posto de saúde). Os serviços oferecidos nestes lugares, contudo, não atende às necessidades de quem os procura, seja por falta de equipe, seja por que a dita equipe está sobrecarregada. Em outras palavras, quem não tem dinheiro, não tem acesso à psicoterapia, de maneira geral (e, também de maneira geral, quem mais precisa de tratamento psicológico é justamente quem menos chance tem de pagar por ele).

Depois de toda essa exposição, você poderia ficar incomodado com toda essa minha ênfase na psicoterapia e dizer "OK, teus argumentos fazem sentido, mas a psicoterapia NÃO é a única ferramenta de saúde mental de que dispomos. Existem muitos outros serviços e modelos que poderiam dar conta desse problema, e que são muito mais vantajosos em termos de custo-benefício." Você poderia ainda me listar algumas destas alternativas, como aquelas desenvolvidas pela Psicologia Social Comunitária, a Psicodinâmica do Trabalho e a Terapia Comunitária, e me indicar toda uma série de leituras a respeito delas para saber de suas aplicações práticas. Eu aceitaria sua resposta, por que conheço estas linhas de trabalho, e as respeito. Entretanto, apesar de elas irem além da visão restrita que a maioria dos psicoterapeutas têm a respeito do tratamento em saúde mental, elas possuem um grande defeito: elas não são cientificamente embasadas. Todas elas, até onde eu sei, foram desenvolvidas por indivíduos excepcionalmente criativos, as aplicaram aos problemas do "mundo real" e colheram frutos, mas elas não foram devidamente testadas e reguladas como as teorias de psicoterapia modernas foram. Isto significa que elas podem ser fundamentadas em idéias inadequadas a respeito do comportamento humano, e no longo prazo causarem mais dano do que benefício. Esta é uma profecia que não precisa se realizar.

Olhando por cima do meu ombro, dentre os muitos livros espalhados no tapete do meu quarto, sete chamam minha atenção. Estes livros, apesar de obviamente terem sido escritos por pessoas tão reais e imperfeitas quanto eu, não representam apenas o que estas pessoas pensam a respeito da saúde mental, ou o que elas gostariam que fosse verdadeiro a respeito da natureza humana. Não, todos estes livros são o produto final de décadas de pesquisa rigorosa, do acúmulo do conhecimento de milhares de indivíduos inteligentes, que dedicaram boa parte de suas vidas para desvendar os mistérios por trás do nosso comportamento, do nosso pensamento e da nossa emoção. São livros de psicopatologia, personalidade, psicoterapia e neurociência e eu não tenho a menor dúvida de que, dentro deles, se encontra a resposta para o sofrimento psíquico, e que, com base neles, poderia se fazer uma verdadeira revolução na Saúde Coletiva brasileira. Quero dizer com isto que eles são o caminho, a verdade e a luz? Não, nada disso. Quero dizer que com o conhecimento que eles nos oferecem, podemos melhorar a vida de muitas pessoas, se os usarmos para reformular a maneira como a saúde mental é abordada e tratada em nosso país, por que não são apenas uma "sugestão educada". Entretanto, eles não oferecem uma resposta para todos os nossos problemas, por que eles foram escritos dentro do mesmo paradigma de treinamento de psicoterapeutas que critiquei acima. É preciso encontrar uma maneira de empregar este conhecimento em larga escala, não "um paciente a cada cinquenta minutos no consultório", mas "dez mil pessoas, o tempo todo, em qualquer lugar", desenvolver métodos para utilizar tudo isto que sabemos em salas de aula, em empresas, em calçadas movimentadas e mesmo filas de banco. Isto não significa que os dias da clínica e da psicoterapia individual estejam contados e que ela será abandonada. Significa que, no futuro, ela deixará seu lugar central no quadro geral da Saúde Coletiva para ocupar um outro, mais periférico. Entretanto, ao assumir este novo lugar, ela será finalmente livre, e trabalhará com o que ela sabe fazer de melhor, estimulando o crescimento pessoal e a realização de quem a procura.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Reflexões das Férias

Decidi que iria escrever alguma coisa aqui no blog. O quê? Não sei. Qualquer coisa serve. Qualquer coisa que passar pela minha cabeça. É divertido fazer isso, por que surgem idéias inusitadas. Elas podem ser retardadas, como a história de um texugo assassino que quer vingar a morte de sua família, mas às vezes, bem às vezes, sai uma coisa que preste.

É divertido escrever o fluxo de consciência, porque é uma maneira mais natural de escrever. Quando se escreve "seriamente", tem que parar, reler o texto, ver se as palavras se encaixam, se não tem coisa demais, e cortar o que fica feio e/ou sobrando. Assim não - tudo fica bom, mesmo que fique uma merda. Escrita de fluxo de consciência também é bom para exercitar os músculos mentais, as redes neurais responsáveis pela criatividade e pela linguagem em geral.

Outra vantagem desse método: enche murcilha que uma beleza. Por exemplo, eu tenho uns sete ou oito textos por terminar de escrever e publicar, mas dá muito trabalho fazer isso. Então, pra não deixar isso aqui abandonado, eu martelo bem rápido meu teclado pra formar umas frases mais ou menos concatenadas, não reviso porcaria nenhuma e pronto, tenho um post novo! Claro, alguém vai ali nos comentários reclamar que eu sou um vagabundo, só que isso não é ofensa, é constatação de fatos. Sou adepto da filosofia de "quanto menos trabalho der, melhor", por que, afinal de contas, pra que se cansar se eu posso não me cansar? Cansaço é cansativo. Descanso, por outro lado, é bom. No presente momento, eu estou de férias de tudo - aulas, estágio, bolsa - e estou muito feliz por isso. Nos últimos dias de janeiro, quando eu ainda estava trabalhando, percebi que estava mais do que cansado ou de saco cheio: eu estava queimado: Burnout, aquela síndrome comportamental que afeta pessoas sobrecarregadas, e que acontece muito em trabalhadores da área da saúde. Então, se vierem me entrevistar sobre esse tipo de situação, eu vou ser parte da estatística daqueles que se ferraram por não saber quando parar.

Por um lado, contudo, foi bom, por que me fez perceber que eu não sei cuidar de mim, apesar de trabalhar cuidando dos outros. Rememorei outras situações, recentes e não tão recentes assim, em que eu me coloquei em situações desnecessariamente desgastantes por que "eu tinha que fazer aquilo", "seria uma vergonha para todo o sempre não fazer isso" e coisas parecidas. Eu chamo isso de Complexo de Salvador: faz tudo para salvar a vida de todos ao seu redor, e a única pessoa que não consegue ajudar é a si próprio. Tem outro nome pra isso também - Curador Ferido. Eu gosto dessa imagem, por que ela é carregada de tragédia e ironia.

Estou aprendendo a dividir as coisas, nomeá-las adequadamente e a colocá-las em seu lugar de direito. O que é do estágio, fica no estágio; o que é da faculdade, fica na faculdade; o que é da minha própria vida pessoal fica comigo e não se mistura com o resto. Talvez seja um tanto quanto duro dizer que "as coisas não se misturam" - se misturam, sim, mas de um jeito diferente. Eu não deixo de ser eu mesmo por estar em um contexto diferente. O que muda são meus papéis, e esses não podem se misturar: não ser amigo com os pacientes, não ser psicólogo com os amigos, e, principalmente, saber quando parar e deixar meu corpo se curar e cuidar de si. Parece óbvio, ululante, mas é mais difícil do que parece, pelo menos para mim. Sinto como se estivesse cometendo um erro, desperdiçando minha energia de maneira não-produtiva. "Há livros pra ler, filmes por ver e pacientes para curar, seu vagabundo!" digo para mim mesmo. Só que não adianta tentar salvar o mundo se você não tem vontade nem de sair da cama de manhã, como aconteceu comigo nos últimos dias antes das férias. É necessário cuidar de si, para poder cuidar melhor dos outros.

Bom, para um texto que começou bobo e nada a ver até que saiu um negócio profundo.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Direitos Humanos, Direitos Animais

Enquanto o mundo comemora a renúncia do ditador egípcio como uma conquista dos direitos humanos e da liberdade, outros, mais modestos e mais próximos de casa, comemoram o cancelamento do Show de Touros do XV Rodeio Internacional de Passo Fundo:

"Em virtude dos protestos recebidos pela Prefeitura Municipal e Funzoctur a respeito do show de touros, marcado para acontecer no XV Rodeio Internacional de Passo Fundo a partir desta noite, a atividade foi cancelada pela coordenação de evento. A apresentação, que já foi realizada em outras edições do evento e também em dezenas de rodeios por todo o Rio Grande do Sul, prevê brincadeiras envolvendo o público e o gado que corre solto dentro da pista.
O presidente da Funzoctur, Antônio Augusto Reveilleau destaca que jamais seriam permitidos maus tratos aos animais dentro do Rodeio de Passo Fundo e que a intenção da atividade era divertir e integrar o público que participa da festa. “Estamos suspendendo a atividade para atender as solicitações das pessoas que se colocaram contra. Mas temos consciência de que nenhum animal seria maltratado durante a apresentação”, concluiu.
O show deveria durar 45 minutos e teria vários momentos, como a Mesa da Amargura, onde 4 pessoas da platéia são convidadas a sentar no meio da arena, junto com um boi sem chifres, que corre solto pelo local."

Vejo um certo paralelismo entre esses dois acontecimentos, e que vai além do fato de ambos terem se tornado realidade graças ao ativismo de um número considerável de pessoas. Permitam-me explicar por que.

Desde o início do ano passado, adotei uma dieta estritamente vegetariana, depois de um longo e gradativo processo de diminuição no meu consumo de carne e derivados. Apesar de ter sido apreciador de um bom bife desde a mais tenra idade, tomei esta decisão por vários motivos. Entretanto, o fundamento básico por trás dessa decisão é bastante simples: os animais sacrificados para meu consumo sofrem, e eu não quero mais ser responsável por este sofrimento. Nunca adotei uma posição ativa como defensor da ética vegetariana, por detestar o proselitismo, e preferir que as pessoas tomem suas decisões baseadas em suas próprias experiências ao invés de sofrerem influências invasivas e excessivas de pregadores inadequados. Escrevo este texto com sabor mais militante, contudo, por que não o vejo como um artigo do proselitismo: cada um que visitar este blog poderá lê-lo, refletir a respeito dele, considerá-lo correto ou não e, se quiser, pode adotar ou não uma ética vegetariana. Por favor, lembrem-se disso ao lerem este texto. Considero o posicionamento aqui explicitado como sendo o correto, mas estou aberto a outras opiniões.

O mesmo não pode ser dito de muitas pessoas carnívoras que conheço. Quando falo que sou vegetariano para alguns conhecidos, frequentemente encontro respostas debochadas como "sente peninha dos animaizinhos?", como se isto fosse um absurdo. Como corolário (decorrência imediata de um teorema, segundo a sempre presente Wikipédia) desta atitude inconsciente, vem outra afirmação: por que devemos nos preocupar com a sorte de animais de corte como vacas e ovelhas, quando há tantos seres humanos passando fome por aí? Talvez seja um equívoco da minha parte pensar que ela é frequentemente dita por aí, porém, não tenho a menor dúvida de que ela é bastante forte no inconsciente coletivo da maior parte da população: por que nos preocuparmos com espécies diferentes das nossas? Temos tantas pessoas por aí sofrendo que é perder o foco nos preocuparmos com criaturas inferiores.

É uma forma lógica de pensar, e eu mesmo consigo perceber seu fundamento: primeiro cuidamos do que está mais próximo, e depois, se necessário, resolvemos o resto. Entretanto, ainda me incomodo com este posicionamento filosófico, por três motivos básicos. O primeiro deles é que é uma atitude inconsciente - dificilmente ela se sustenta depois de uma reflexão cuidadosa e aprofundada. Segundo, é uma crença egocêntrica e hedonista, como o próprio carnivorismo. Quando questionadas por que devemos continuar comendo carne, as respostas mais frequentes são "por que é bom", "por que é nutritivo" e "por que carne de soja é ruim e não nutre". Terceiro, e mais importante, esta crença me incomoda por que ela estimula o egoísmo e comodismo se escondendo atrás de uma fachada de preocupação e altruísmo: deixamos de nos preocupar com o sofrimento de criaturas diferentes de nós, sem com isso aumentar nossa capacidade de nos importarmos com nossos semelhantes. O contrário, entretanto, é verdadeiro: quem se importa com os direitos animais também se importa com os direitos humanos, e, por empatia funcional, quando um aumenta de intensidade, o outro também. Claro que existem anomalias por aí, como por exemplo aqui em Porto Alegre, onde um grupo de defesa dos animais se posicionou contra os carroceiros por que eles maltratam os cavalos que puxam suas carroças, mas, por experiência própria, tendo a acreditar que isto é exceção, e não regra, e quanto mais nós nos interessamos e nos importamos com outras espécies, maior calor e compaixão guardamos para nossos semelhantes.

Sei que este texto deixou muitas pontas soltas, especialmente no que diz respeito à ética vegetariana e minhas críticas ao que chamo de carnivorismo. Detesto ter que deixá-las soltas agora, por que não é realmente adequado escrever a respeito delas aqui. Entretanto, se alguém quiser discutir isso comigo, me espera na saída da escola que eu te encho de porrada, seu mané deixe um comentário aqui no blog que eu respondo.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Necessidade de Viver por uma Mentira

Ao longo de toda a sua história, a humanidade sempre esteve à beira da destruição. Mesmo assim, continuamos por aqui, vivendo. Então, o que acontece conosco?

Tive essa semana uma discussão com alguns amigos meus sobre o futuro da humanidade, e a conclusão que todos nós chegamos foi de que a humanidade está destinada a sofrer ainda mais no futuro, e as coisas daqui para frente só vão piorar. Talvez por termos acesso a dados recentes de poluição, política e sociedade, podemos argumentar que nossa conclusão é a mais acertada. Também poderia dizer que, por sermos intelectuais, nós tenhamos herdado a tendência da classe de pensar que o mundo é uma grande porcaria, e que essa porcaria só vai aumentar de tamanho com o passar do tempo, e que nossa visão não é mais acurada do que a de qualquer outra pessoa que pare e pense a respeito da própria vida.

Os seres humanos em geral, e intelectuais de maneira acentuada, têm a tendência a ver primeiro o que está acontecendo de errado, o que causa dor, o que destrói, o que foi perdido e o que será. É, para todos os efeitos, "a visão pessimista da vida", que alguns livros de auto-ajuda modernos diagnosticam como sendo o maior entrave para a nossa felicidade. E, confirmando o que eu disse, são exatamente estes livros os que mais são criticados por que são "otimistas demais" - sofrem da "Síndrome de Poliana", aquela personagem que todo mundo acha chata por que vê algo positivo em todas as desgraças que acontecem na vida dela. "Otimismo", para muitas pessoas, especialmente aquelas da parcela "pensante" da população, é um adjetivo de conotações depreciativas. Os personagens que nós mais gostamos em histórias são aqueles com língua afiada, sempre dispostos a apontar os erros dos outros e como o mundo é uma grande palhaçada. Quanto os otimistas, normalmente eles passam por um longo e doloroso processo, onde todas as suas esperanças infantis são destruídas, e eles também viram pessimistas, ou pelo menos deixam de ser otimistas - adquirem "sabedoria". A ciência aparentemente também confirma essa tendência: um estudo realizado na Austrália encontrou como resultado que pessoas com afetos negativos produzem mensagens interpessoais mais persuasivas e de melhor qualidade do que pessoas com afetos positivos (para que eu não seja acusado de inventar estudos, o título do artigo é "When sad is better than happy: Negative affect can improve the quality and effectiveness of persuasive messages and social influence strategies" por Joseph P. Forgas - pode procurar no Google Acadêmico ou me mandar um e-mail que eu envio o arquivo). Mais do que isso, é quase um truísmo (uma afirmação desnecessária por ser óbvia, como "o sol aparece no céu" ou "o Corinthians nunca vai ganhar uma Libertadores") para a psicologia evolucionista dizer que um viés negativo, isto é, ativamente procurar por estímulos perigosos no ambiente, ajudou nossa espécie a sobreviver e moldou a maneira como pensamos e nos comportamos hoje.

Se formos por este caminho lógico, teremos quase certeza de que "pensamento negativo" é praticamente sinônimo de "pensamento realista". Mais ainda: se você for uma pessoa radical como eu, que vai até às conclusões lógicas extremas de uma idéia, vai também concluir que "pensamento positivo" é também quase sinônimo de "babaquice", e que deveria ser abolido da nossa psiquê. Tal conclusão nos leva a outra pergunta: por que é que não foi abolida ainda, então? Sigamos esse fio um pouco mais, e façamos outras perguntas: se "O Segredo" é tão criticado, por que vende tanto? Se "What the bleep do we know?" foi tão avacalhado e execrado, como é que ele virou o sucesso que é hoje? E por que temos tantos livros de auto-ajuda sobre pensamento positivo nas livrarias, nas bibliotecas, nas mãos de donas-de-casa sobrecarregadas e de empresários empreendedores? Por que continuamos com essa bobagem se ela é tão ilógica e imbecil? POR QUE?

Bueno, acontece que não somos tão lógicos quanto desejamos ser. Para ser franco, a idéia da Razão controlar a Emoção é um ideal relativamente recente, do tempo de Descartes, ou talvez um pouco antes, e uma idéia bastante antiquada, considerando o que a neurociência afetiva tem encontrado a respeito da relação inseparável entre sentimentos e pensamentos nos nossos cérebros. Não somos os seres racionais e ponderados que imaginamos ser. Na maior parte do tempo, somos dominados por fortes emoções que jogam nosso ponderamento para o canto, de onde só sai depois de nos acalmarmos. Este poderia ser considerado o principal motivo para não abandonarmos essa coisa ilógica que é o "pensamento positivo". Mas eu acredito que exista outra razão, ainda mais poderosa do que essa: se nós não abandonamos nossos inadequados padrões de pensamento otimista, é por que nós não podemos viver sem eles.

Lenta, mas constantemente, ao longo da história de nossa espécie, o pensamento positivo vem se tornando mais importante e mais proeminente em nossas vidas. Se nossos antepassados primatas de planície precisavam viver em constante terror para sobreviver e procriar, por habitarem um ambiente hostil e com poucos recursos, nós não precisamos: dominamos nosso ambiente, e desenvolvemos técnicas que, se comparadas com o que tínhamos cinco ou seis séculos atrás, são tão miraculosas quanto tirar leite de pedra. Nesse novo contexto em que nos encontramos, podemos nos dar ao luxo de viver, ao invés de meramente continuar existindo, de desfrutar o que há de bom e belo neste mundo. Podemos nos dar ao luxo, e devemos. Uma coisa que escapou a todos os críticos dos livros de auto-ajuda como "O Segredo" é o fenômeno psicológico por trás deles - as pessoas querem e precisam ser felizes, e estão procurando uma maneira de alcançar esta felicidade. Talvez estejam procurando em todos os lugares errados, como é hábito entre nós seres humanos, mas estão procurando e, um dia, eu espero, encontrarão, nem que seja por breves e doces instantes de êxtase.

O ponto mais importante deste texto, e o que mais quero ressaltar, reside numa pequena descoberta da ciência, ou, melhor dizendo, uma mudança em seus valores. Nós, como seres humanos, não temos acesso à realidade pura ao nosso redor, pois ela sempre é filtrada de alguma maneira pelos nossos sentidos e por nosso organismo. Os estímulos que recebemos de fora de nosso corpo vêm como uma enxurrada desorganizada e caótica, que precisa ser filtrada e organizada. Qual é a maneira "correta" de organizar toda esta informação? Qual o jeito mais próximo à realidade? Nossas capacidades cognitivas limitadas não tem acesso à esta resposta. Nos resta apenas criar nossa visão do mundo do modo mais adequado às nossas necessidades psicológicas, ou, em outras palavras, como nós queremos. De um ponto de vista racionalista, isto é o mesmo que viver uma mentira. E, para ser franco, é mesmo - nós precisamos viver uma mentira, uma verdade que esqueceu de acontecer, por que a "realidade objetiva do mundo" não é boa o bastante. Pessoas deprimidas e com afeto negativo são mais eficazes em ver o mundo tal como ele, mas de que adianta, se isso não nos ajuda a transformar o mundo naquilo que ele poderia ser? As utopias de 100 anos atrás hoje são realidade, por que não acreditar que as utopias de hoje em 100 anos também se realizarão?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Tempo e Estrutura

Finalmente, estou de férias. Depois de um longo mês de janeiro trabalhando, algo que nunca antes eu tinha feito, me dei o direito de tirar férias. Logo no primeiro dia de férias, quando constatei que quase todos os meus amigos estavam na praia ou viajando, fui tomado por um sentimento de urgência, de que o tempo está passando e minhas férias escorrendo como areia entre meus dedos. "Você precisa aproveitar o verão" me diz esse sentimento "afinal de contas, é a melhor estação de todas."

Passo na frente de algum outdoor da Coca-Cola, que diz "esse é o verão da sua vida" ou coisa parecida, e o sentimento se acentua. Claramente, não estou acima do condicionamento social e da sugestão das propagandas que se alastram por toda nossa sociedade, e sou tão influenciável quanto qualquer outra pessoa, e caio nessa lenga-lenga que faz todo mundo acreditar que o verão é a coisa mais incrível que existe.

Mas... será que é mesmo enrolação? Será que o verão não é a coisa mais incrível que existe? Segundo Hakim Bey, patrono dos anarquistas pós-modernos (aos quais eu devoto grande simpatia) as férias de verão são quiçá a última Zona Autônoma Sazonal que temos hoje em dia. É o único período do ano em que podemos ser livres de fato, sem restrições de horários ou compromissos marcados, e podemos ser apenas nós mesmos, da maneira que bem queremos. As crianças sabem o que é bom, e eu, que passei mais tempo do que deveria trabalhando demais, também sei: mar, calor e praia, mesmo que no fim das contas eu não tome tanto banho de mar assim, sue feito um porco no espeto e fique igualmente tostado por causa do sol.

Em última análise, nós adoramos as férias por que nelas podemos fazer tudo aquilo que não conseguimos fazer enquanto estamos ocupados (não) estudando ou (não) trabalhando. Aula de violão? Por que não! Ir mais em festas e beber mais em bares na Cidade Baixa? Claro que sim! Buscar aqueles objetivos mais elevados? Oh yeah, isso também dá pra fazer!

O problema é que, quando a gente sai de uma rotina altamente estruturada (como a que eu estava vivendo até pouco tempo atrás) para uma completamente livre (como a que eu estou vivendo agora), nós tendemos a ficar desorganizados psiquicamente e acabamos desperdiçando tempo. Eu sei que hoje meu dia foi um belo desperdício de tempo e energia. De vida, eu diria. Obviamente, eu não queria que fosse assim. Na minha cabeça, eu passaria todos os meus dias lendo, escrevendo e treinando Kung Fu, de maneira equilibrada e sensata, com o bastante de cada coisa para que, no final do dia, eu caia na cama com a gostosa sensação de ter usado toda a minha energia em coisas que eu valorizo. Em alguns dias, eu consigo fazer isso, mas em outros... nem tanto. Hoje, eu caí no "nem tanto".

Nesses casos, você precisa pegar o teu tempo pelas aspas e organizar ele você mesmo. Isso é diferente do tempo "normal", quando a gente trabalha ou estuda, por que durante esse tempo são os eventos externos que determinam onde, como e quando nós vamos investir nossa energia psíquica. Durante as férias, existe a possibilidade de você mesmo escolher o que diabos você vai fazer. Digo "existe a possibilidade", por que deixar com que as coisas aconteçam ao seu redor enquanto você não faz porcaria nenhuma também é deixar a estrutura da sua vida ser determinada por fatores externos. Certa vez, ao ler um livreto anarquista sobre caronas, fiquei muito impressionado com essa idéia de "determinar o próprio tempo". A idéia do livreto é bastante anarquista (ou seja, bastante do meu agrado), e bastante ligada à idéia de viajar pegando carona (também bastante do meu agrado). Nesse livro, @s autor@s falam sobre como você pode, durante uma viagem dessas, viver no seu próprio ritmo, e por algum motivo, isso me fascinou. Já parou para pensar como seria sua vida se não tivesse que imperiosamente estar em um determinado lugar, em determinada hora, e poder passar mais tempo olhando as flores selvagens que crescem na beira da estrada? Em outras palavras, já pensou como seria viver o tempo todo de férias? Eu pensei, e achei fantástico. Senti falta de correr mundo outra vez, de viver de acordo com meus próprios parâmetros, desejei viajar para longe, por muito tempo.

Mas eu não preciso fazer isso. Eu disponho de tempo aqui e agora, não é mesmo? Por que não usá-lo bem? Mesmo quando estou ocupado com o trabalho e os estudos, eu posso fazer isso, ainda que não com a mesma intensidade e abrangência das férias. Se não fazemos isso, acabando vivendo a vida que os outros querem que nós vivamos. Se for isso que você quer, perfeito, continue que está funcionando, mas e se não for (como geralmente é o caso)? Aposto que a mera tarefa de acordar e sair da cama de manhã vai ser bastante sofrida (como estava sendo para mim nos últimos dias antes de sair de férias).

OK. Falei bastante sobre essa coisa de "viver no próprio ritmo", de "pegar o tempo pelas aspas", mas o que quero dizer com isso exatamente? De maineira simplificada, é decidir o que se quer fazer durante o dia, e realmente fazer. Pela minha própria experiência, o que normalmente acaba acontecendo é que nossos dias se passam em meio a boas intenções que nunca se realizam, por que estamos ocupados demais vendo TV (ou, como é meu caso, lendo a última tirinha daquele webcomic engraçado). Então, para que isso não aconteça, é bom se utilizar daquilo que os analistas do comportamento (dos quais eu também sou fã #SkinnerFeelings) chamam de estímulos discriminativos. Tecnicamente falando, um estímulo discriminativo é um acontecimento que precede um comportamento, e que aumenta a probabilidade deste comportamento acontecer. De maneira mais simples, pode ser um lembrete: uma agenda, um calendário, um despertador. Qualquer coisa que entre no meio da seqüência de irrelevâncias que normalmente é seu dia e te lembre que há coisas mais importantes para fazer do que coçar o saco. Eu faço isso. Há dias que funciona, e há dias que não é o bastante. Mas, pelo menos funciona na maior parte do tempo, e isso já vale à pena.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Primeira postagem de 2011

Só pra não dizerem que eu abandonei isso aqui, deixo para vocês, se não um texto completo, pelo menos a promessa de que eu voltarei a escrever coisas legais, divertidas, profundas e/ou todas as alternativas anteriores. Feliz 2011.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Problemas de Metaética

Há muito tempo atrás, antes mesmo de eu fazer estágio, publiquei um texto sobre Metaética. Este conceito foi originalmente imaginado pelo mestre Marcelo, mas nós dois desenvolvemos idéias diferentes sobre o significado do termo: para ele, a Metaética seria a pergunta que fundamenta toda o campo filosófico da Ética - "por que ser bom?", enquanto que, para mim, ela seria "a prática de moldar a própria ética futura, escolhendo as experiências que vivemos e como as vivenciamos, tomando por base nossa ética atual." Ao reler o texto que escrevi a respeito deste interessante e pouco explorado assunto, percebo que ele continua atual. Contudo, depois de uma noite de insônia bastante produtiva deste final de semana, que trouxe a Metaética de volta à minha memória, percebi que a definição do conceito se beneficiaria de uma ampliação. Então, segundo minha nova maneira de ver, a Metaética é possui dois componentes - um aspecto filosófico e outro psicológico. A diferenciação entre os dois é meramente didática, para que nós, pensadores ocidentais, possamos compreender mais plenamente o que está por trás desta idéia.

O aspecto filosófico da Metaética é justamente aquela apontada por Marcelo - por que devemos realmente sermos bons? O que nos "obriga" a assim proceder? Considero esta questão como sendo a parte mais filosófica da questão por que está intimamente ligada à outras do campo da Filosofia Moral: o que é o Bem? Pode o ser humano ser bom? Como diferenciá-lo do Mal? De fato, poderia se dizer que todas elas são parte da mesma grande pergunta, sendo a diferença entre elas o sabor pessoal que a questão de "por que ser bom?" traz, e que a diferencia de todas as outras questões, que pretendem ser universais. Por ela ter esta característica, ela permite maior liberdade de movimentos. Segundo um filósofo moral ortodoxo, baseado nas antigas perguntas, todos os seres humanos necessariamente buscam o Bem, enquanto que, na nossa nova formulação, não podemos afirmar o mesmo. Teríamos que dizer que todos os seres humanos idealmente preferem o Bem, mas que a intensidade com que o procuram varia conforme as circunstâncias. Por exemplo, um homem pode acreditar num determinado conjunto de crenças morais e considerá-las como corretas, mas não aderir verdadeiramente a elas seja por acomodação, seja por desilusão.

Para os fins deste ensaio, não importa muito o conteúdo desta desmotivação, e sim o processo por trás dela. Se para o filósofo moral a Ética é algo eterno e universal, para o psicólogo interessado no assunto, ela é sempre dependente do contexto, e portanto, mutável. Conforme vamos nos desenvolvendo, também se desenvolvem e se alteram nossas crenças e comportamentos éticos. Há muitos estudos em Desenvolvimento Moral que descrevem estas mudanças, tendo especial destaque aqueles conduzidos por Lawrence Kohlberg. Este pensador chegou à conclusão de que nossa Ética passa, grosso modo, por seis níveis de desenvolvimento, do hedonismo mais simplório até o altruísmo mais desapegado. Estes níveis seriam estruturas universais, isto é, teoricamente estão presentes em todos os povos do planeta, ficando a diferença de que falei anteriormente dependendo do conteúdo ideacional que preenche estas estruturas, e do caminho que cada indivíduo leva para desenvolvê-las, que não é tão linear quanto a teoria pode fazer parecer. Não vou falar muito a respeito deste interessante teoria, por que, se assim o fizesse, acabaria me desviando do meu assunto principal, e me veria obrigado a estudar muito mais, por que não sei quase nada a respeito dela.

O que quero indicar com Kohlberg é que é consenso entre os teóricos que a Ética muda conforme o tempo passa, a pessoa interage com o ambiente e se modifica. Hoje isto parece óbvio, mas até nem tanto tempo atrás, isto não era lá muito claro. Uma pessoa que ajudou a clarificar isto foi o psicólogo do desenvolvimento Jean Piaget. Originalmente, seu projeto teórico era o de construir uma Teoria do Conhecimento Humano, isto é, como as pessoas percebem o mundo ao seu redor, como processam estes dados e como os utilizam. Para construir tal teoria, ele investigou o desenvolvimento intelectual de crianças, desde os primeiros meses de vida até os 13 ou 14 anos de idade. De novo, não vou falar muito da teoria de Piaget por aqui, pelos mesmos motivos de antes. Todavia, um de seus conceitos me parece central aqui - o de Esquema Cognitivo. Em suas pesquisas, Piaget descobriu que as crianças utilizavam "algorítmos mentais" para processar as informações vindas do exterior, que mudavam conforme a idade. Um dos mais famosos exemplos disto é o da conservação da matéria. Se pedirmos para uma criança de 3 ou 4 anos se 300ml de água em um copo comprido é a mesma quantidade que 300ml de água em um copo mais largo, ela dirá que o copo comprido possui mais água, mesmo se mostrarmos para ela que as quantidades eram iguais antes de as colocarmos nos respectivos copos. Porém, se fizermos esta mesma pergunta para a mesma criança aos 7 ou 8 anos, ela ela olhará incrédula para nós, e responderá com muita convicção "é claro que é a mesma coisa, sua besta!", demonstrando que as mudanças cognitivas acontecem, muitas vezes sem que percebamos.

Penso que algo parecido acontece no desenvolvimento moral. Partindo das duas teorias citadas, acredito que a nossa Ética, e a maneira como a percebemos, também passa por fases diferentes de crescimento. Num primeiro momento, nós não possuímos nenhuma crença ética, por que não necessitamos. Porém, conforme crescemos, e nos vemos obrigados a conviver com outras pessoas, vamos as desenvolvendo, primeiro nos inspirando em nossos cuidadores, e depois de maneira mais autônoma. Entretanto, isto ocorre quase que totalmente fora da nossa consciência. E é aqui que penso estar minha contribuição original ao campo da Ética: da mesma maneira que desenvolvemos estratégias para monitorar nossos processos cognitivos, a Metacognição, desenvolvemos estratégias morais para monitorar o nosso crescimento ético, a Metaética. Poderia dizer que a Metaética é um processo metacognitivo mais refinado, e que define, utilizando os fundamentos éticos que possuímos aqui e agora, a ética que queremos ter no futuro, escolhendo de maneira consciente o que queremos ser no futuro. Como eu disse no começo desse texto, não há como fazer isso de maneira perfeita, por que, como mudam nossos preceitos éticos, mudam também os nosso preceitos metaéticos, fazendo da perfeição um ideal sempre distante. Dentro deste modelo teórico, Ética e Personalidade seriam dois conceitos pouco diferenciados, ou pelo menos muito dependentes um do outro.

Além dessas considerações teóricas, tenho algumas outras observações para fazer. A primeira delas é que, do mesmo modo que os níveis mais avançados da escala de Kohlberg são atingidos por poucos indivíduos, a Metaética é uma habilidade pouco difundida. Talvez, como a Metacognição, ela exista em forma potencial em todos, mas só alguns a atualizem e a transformem em algo digno de nota. Outra hipótese que tenho é que a Metaética, pelo menos da maneira como a defini aqui, só apareça em pessoas nos níveis morais mais elevados, posto que é nessas etapas de desenvolvimento que o indivíduo consegue se desapegar de suas crenças éticas, e vê-las como ferramentas, meios para um fim, que se modificam conforme as necessidades. Ou não. Em todo caso, continuarei elaborando novas idéias a respeito dessa teoria.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Utopias - Interlúdio

Decidi escrever este post para organizar esta série, e para que as três milhares de pessoas que lêem este blog compreendam o que se passa pela minha cabeça enquanto planejo os posts do futuro.

No presente momento, estou escrevendo o texto sobre "Utopias Piratas". Entretanto, já tenho em mãos três outros livros de utopia, e a intenção de adquirir um mais dois ou três. Os três livros que já tenho são "A República" do Platão, "Nova Atlântida" de Francis Bacon e "Looking Backward" de Edward Bellamy. Os dois primeiros são bastante famosos, tendo sido escritos por dois gigantes da Filosofia, e portanto dispensam introduções. "Looking Backward", por outro lado, apesar de ter sido bastante famoso e influente em sua época, especialmente nos Estados Unidos, parece ser relativamente desconhecido hoje em dia, pelo menos no Brasil. Pretendo remediar, pelo menos parcialmente, esta situação, descrevendo aqui a utopia desenhada por Bellamy.

Os três livros restantes, que ainda tenho que encontrar em algum lugar, são "Utopia" de Thomas More, "Walden" de Henry David Thoreau e "Walden III" de Rubén Ardila. O primeiro quero ler por que, francamente, se não foi o livro que iniciou a tradição literária das utopias, foi o que a codificou, isto é, organizou e deu um rosto para uma série de outros livros que apareceram depois. "Walden III" trata da experiência de Análise do Comportamento levada à cabo no Panamá em 1979, enquanto "Walden" é o relato da experiência individual de Thoreau no meio do mato. Possivelmente não deveria considerar este último como um verdadeiro livro de utopia, mas o valor sentimental de ler e resenhar Walden I, II e III é grande demais para ser jogado fora.

Por fim, pretendo comentar um último livro, que, apesar de não estar à minha imediata disposição, está aqui ao lado, na biblioteca da FABICO: "Zona Autônoma Temporária" de Hakim Bey, pseudônimo do autor de "Utopias Piratas". De novo, não é um livro sobre utopias imaginárias, mas sim sobre como criar micro-utopias localizadas, e como elas surgiram em vários lugares ao longo do tempo, com as mesmas características. Acho que vale a leitura.

Lembrando sempre que eu mudo de idéia fácil, e posso resenhar outros livros antes desses, mas pelo menos agora vocês têm noção do que pode vir por aí.

domingo, 31 de outubro de 2010

O Rootz e o Épico

É fato conhecido que, com a convivência, amigos íntimos acabam às vezes desenvolvendo formas próprias e peculiares de comunicação: olhares, gestos, palavras que, embora não digam nada para as outras pessoas, são carregadas de significados para aqueles que as usam. Entre eu e meus amigos, existe uma filosofia de vida, uma ética, que pretendo explicar aqui, apresentando e discutindo o significado de duas palavras que, embora sejam de uso corrente em Porto Alegre, ganharam um peso diferente para nós: Rootz e Épico.

Originalmente, a palavra "roots" significava "raiz" em inglês. Ela foi introduzida no português (pelo menos aqui em Porto Alegre, cabe lembrar) por fãs de Reggae, para descreverem músicas e coisas verdadeiramente "regueiras", de raiz, o mesmo que "true" representa para os fãs de Heavy Metal. Com o tempo, contudo, "roots" virou "rootz" (diferença meramente estética, por que a pronúncia é a mesma), e passou a significar muito mais do que apenas aquilo que é relacionado com o reggae. Agora, quando alguém diz que algo é rootz, ela quer dizer que aquilo merece respeito e admiração, por ser algo fora do normal. Por exemplo, quando alguém conta que caminhou do Centro até a Restinga para não pagar passagem de ônibus, outra pessoa, espantada, pode dizer apenas "rootz". Para eu e meus amigos, porém, esta palavra ganhou uma dimensão nova: quando queremos dizer que algo é rootz, queremos dizer que, além de respeitável, algo é digno de ser feito, quando não necessário. Usando o mesmo exemplo de antes, certamente consideraríamos o fato de alguém ter ido à pé até a Restinga como rootz não só por que é um longo caminho, como também por que a pessoa se exercitou até o seu limite, e ainda poupou R$2,45 em passagem. Mais do que isso, é rootz por que envolve superação de si mesmo.

Contudo, nada impede que algo rootz seja completamente inútil, quando não prejudicial. Eu posso emitir um série de comportamentos extremamente cansativos, que me colocam em situações complicadas ou de risco, e que mesmo assim não beneficiam ninguém, ou apenas a mim mesmo de maneira superficial. Esta categoria de rootz merece respeito, por ser algo difícil de se fazer. Ainda assim, receamos dar-lhe este título, pois sentimos que lhe falta algo. Eis então que entra o conceito de "épico". Normalmente, quando uma pessoa normal, fora do nosso círculo de amizades, fala que algo é épico, quer dizer que algo é muito grande ("meu pênis tem proporções épicas"), ou é relativo a um gênero literário ("os livros de J.R.R. Tolkien marcaram a literatura épica"). Na nossa concepção de "épico", estas definições não são excluídas ou deixadas de lado, mas são como que derretidos e incorporados a uma outra definição, mais abrangente. Pessoalmente, utilizei esta palavra muito poucas vezes de maneira concreta. Contudo, é ela que norteia toda a nossa ética de ação direta no mundo.

Quando me disseram que a reitoria da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre tinha sido ocupada, a primeira coisa que exclamei foi "Épico!" Por que esta ocupação foi épica? Não poderia ter considerado ela apenas rootz? Bem, certamente a ocupação foi rootz, por que ela envolveu acampar e dormir dentro de uma instituição de ensino superior que normalmente não se presta à dormitório, bater de frente com a reitoria e ter que mobilizar um corpo estudantil antes acostumado à apatia e à complacência. Isso É rootz, mas também muito mais. Ser épico, pelo menos da maneira como eu encaro as coisas, é agir de maneira rootz, isto é, enfrentar desafios cada vez maiores e mais complexos, sacrificar a própria vontade egoísta e correr riscos em nome de uma causa comum, pelo coletivo. Necessariamente, ser e fazer algo épico envolve a transformação do mundo a nossa volta, tornando-o mais belo, mais justo e mais verdadeiro. No fim das contas, ser épico é escrever uma nova história, tão grandiosa quanto "O Senhor dos Anéis" ou "Os Varões Assinalados", se não ainda maior, por que acontece aqui e agora, diante de nossos olhos, transformando um valor potencial em um valor vivo e real. Carregamos hoje a tocha que nos foi passada por aqueles que no passado foram considerados heróis, revolucionários e guerreiros, e continuamos sua obra da melhor maneira que podemos. Em suma, ser épico é ser rootz em nome do Bem Maior.

Cada vez mais, eu e meus amigos temos transcendido a esfera individualista da rooteria, e evoluído para seus níveis épicos e coletivos, não apenas em palavras ou sonhos, mas em atos concretos, como tudo que é realmente épico deve ser. Construímos uma oca no outrora desocupado e inútil pátio do Instituto de Psicologia, fomos para o meio do mato coletar material de construção, ocupamos reitorias, semeamos sementes e muitas outras coisas dignas de respeito. Porém, o que realmente importa é que estamos construindo um mundo melhor, e que, não importa o que acontecerá com nossos feitos depois que partirmos, nós lutamos como homens e mulheres dignos e dignas de respeito e admiração. Isto é ser épico. Isto é a vida que vale a pena ser vivida.

Utopias (6)

Aventuro-me agora em novos territórios. Ao invés de resenhar um livro sobre uma utopia ficcional, falarei sobre um livro que conta a história de um homem que dedicou sua vida a construir uma: Giuseppe Garibaldi. O livro a que me refiro são suas Memórias, organizadas por Alexandre Dumas, com base em relatos e diários escritos pelo guerrilheiro do século XIX. Por que escrevo sobre Garibaldi nesta série? Bem, preciso admitir que tenho um fraco por heróis de guerra. Talvez isto se deva ao fato de eu ter nascido e crescido em uma sociedade sem guerras, ter aprendido a respeito delas através de meios distantes como livros ou a TV e nunca ter presenciado uma morte. Acho justo que eu seja considerado ingênuo neste assunto por todos estes motivos. Ainda assim, não consigo deixar de admirar pessoas como Garibaldi, que passou quase a vida inteira lutando em nome de um ideal - a liberdade das nações. Por um ideal tão abstrato e distante, ele passou por inúmeras dificuldades e privações: fome, cansaço, perseguição inimiga, marchas forçadas e risco de morte. Terá tudo isso valido à pena todo esse sacrifício?

Penso não só na vida de Garibaldi, mas também nas vidas dos que lutam hoje para construir um mundo melhor. Não lutamos mais guerras, não pegamos mais em armas, mas continuamos a enfrentar muitos desafios, e a fazer muitos sacrifícios, que, apesar de não serem mais os mesmos que Garibaldi encarou, ainda são capazes de nos fazer questionar se não seria melhor abandonar toda esta confusão, nos preocuparmos apenas com a nossa sobrevivência e o nosso bem-estar, e deixar as utopias para os livros e para os idiotas. Lendo suas Memórias, fico imaginando se, em nenhum momento, Garibaldi fraquejou, e pensou em mandar tudo às favas: "dane-se a Itália! Danem-se as repúblicas! Eu vou montar uma rede de supermercados e lavar minhas costas com dinheiro!"

Não sei se ele chegou a pensar algo parecido com isto. Por ele ser humano e, portanto, frágil e imperfeito, imagino que em algum momento ele deva ter cogitado a possibilidade de levar uma vida pacata, levemente egoísta e reacionária. Porém, mesmo que ele tenha pensado, não levou estes planos adiante. Bem pelo contrário por que, até onde sabemos, ele continuou lutando pelo ideal das nações e pela liberdade de uma Itália unida e democrática até o final de sua vida. Pouco do que ele aspirava se concretizou, e não da maneira como ele desejava. Seria isso sinal de que seria melhor ele ter cuidado da própria vida? E nós, que nos metemos a mudar o mundo, não deveríamos aprender com este fracasso e parar de buscar algo inalcançável?

Na noite que passei na Reitoria da UFCSPA, tive uma conversa bastante produtiva com o Marcelo. Foi uma daquelas conversas que, embora se esqueça quase tudo o que foi dito, nunca se esquece o impacto que causou em nossos corações. Lembro, porém, de pelo menos uma coisa que discutimos. De fato, poucas revoluções foram bem sucedidas, e muito poucas mantiveram-se fiéis aos seus ideais. Contudo, nenhuma delas foi em vão, por que trouxe ao mundo uma nova maneira de ver e viver que mudou todo para sempre. A mudança efetiva pode ter sido pequena em extensão, mas inegável em sua existência. O Rei voltou a reinar na França depois da Revolução de 1789; Stalin tornou-se um ditador ainda mais cruel que os tsares; A República Rio-Grandense perdeu a guerra contra o Império e voltou a ser uma província, depois de 10 anos de lutas sangrentas. Agora, por causa disso, o Antigo Regime voltou a vigorar, a idéia do Comunismo perdeu o valor e o sonho de uma sociedade justa e democrática morreu? Não. As coisas mudaram, e para sempre. Talvez não da maneira como gostaríamos, mas mudaram. E é por isso que lutar sempre vale à pena.

Garibaldi não lutou em vão, e nem nós lutamos hoje. Construímos a sociedade do futuro e, mesmo que aos trancos e barrancos, evoluímos. Talvez seja por isso que admire Garibaldi: de certa forma, continuo hoje o trabalho que ele começou tanto tempo atrás, e que na verdade, era também a continuação de um trabalho ainda mais antigo que o dele. Vejo-me como parte de uma antiga e nobre linhagem de guerreiros, poetas e amantes que, malgrado seus insucessos, nunca perde a esperança de construir o Reino de Deus na Terra. Não viverei para ver tal proeza, mas resta-me o consolo de saber que, se isto um dia vier a acontecer, eu não fiquei de braços cruzados, e ajudei, da melhor maneira que pude, a tornar isto realidade.

Ainda na onda de falar sobre utopias que aconteceram de verdade, no próximo texto comentarei o livro "Utopias Piratas", escrito pelo cientista político e anarquista Peter Lamborn Wilson, mais conhecido por seu pseudônimo Hakim Bey. Vou ler o livro este final de semana, ou, no mais tardar, antes que alguém o reserve na biblioteca (por que eu não conheço ninguém que não leria algo sobre utopias e piratas). Depois desse livro, pretendo resenhar "Zona Autônoma Temporária", do mesmo autor, onde ele fala sobre algo parecido. Esse, porém, eu ainda preciso bater em alguém da biblioteca pra reservar e ler, então pode demorar um pouco.

Utopias (5)

Como alguns dos meus leitores devem se lembrar, tempos atrás, comecei a escrever uma série de posts sobre utopias, isto é, sociedades humanas que funcionam de maneira perfeita e auto-sustentável. Como tais sociedades não existem de fato, pelo menos não ainda, tive que buscar meus exemplos em livros. A primeira utopia que comentei, em dois posts separados, foi "Walden II", imaginada pelo psicólogo B.F. Skinner e fundamentada pelos princípios das ciências do comportamento. O livro seguinte que eu comentei aqui foi "Horizonte Perdido", de James Hilton. Por fim, o último livro "utópico" que comentei não tratava de fato de uma utopia, mas de uma idéia que considerei muito próxima - "Sebastopol", de Tolstoi, e a idéia da paz atingida através da guerra. No final deste texto, disse que demoraria para ler outro livro sobre utopias, mas que não abandonaria a idéia de escrever mais a respeito do assunto por aqui.

Preciso dizer que menti. Na época em que este último post foi publicado, tinha recém começado a ler "A Ilha", de Aldous Huxley, e achei a história tão envolvente que terminei de lê-la em tempo recorde. Entretanto, não consegui escrever com o mesmo entusiasmo. Comecei dois rascunhos diferentes, mas em nenhum dos dois consegui passar do terceiro parágrafo. Consegui, isso sim, escrever uma monografia com o título de "O Trabalho nas Utopias e na Realidade", comparando as condições de trabalho em "A Ilha", "Walden II" e o mundo real, tentando encontrar pontos em comum. A proposta dessa monografia era bem distinta do que pretendo fazer aqui para o blog, mas utilizarei algumas partes dela para fundamentar meu texto (e me ajudar a lembrar da história de "A Ilha", já que faz um bom tempo desde que a li).

Tendo lido já alguma coisa sobre utopias, me sinto tranquilo o bastante para dizer que toda a literatura utópica busca responder às seguintes questões:

1) Quais foram as contingências geográficas e históricas que permitiram tal sociedade se desenvolver de maneira contínua e segura?
2) Qual modelo econômico foi por ela adotado, de que maneira os recursos naturais e humanos são utilizados e como ele garante o bem-estar da população?
3) Como são tratadas as questões comportamentais, individuais e coletivas, da população e suas principais instituições (vida em família, vida amorosa, amizades, vida em comunidade, trabalho, lazer, educação, saúde, religião)?
4) Qual o sistema político de tal sociedade, e como sua "administração central" (se esta existir) gerencia as questões anteriores, bem como as relações com outras sociedades e estados?

Estas perguntas, em última análise, são componentes de uma outra pergunta que o autor deve responder se deseja realmente descrever uma utopia: por que esta sociedade é perfeita, e por que deveríamos invejá-la? Cada livro da literatura utópica é, de certa forma, a vitrine das idéias de seu criador, que mostra aos demais como o mundo seria perfeito se todos resolvessem adotar os seus princípios e aplicá-los à realidade (ou, de maneira inversa, por que o mundo é a bagunça que é, e o que estamos fazendo de errado). Em outros termos: o autor é um vendedor, sua ideologia é seu produto e a utopia que ele descreve é sua vitrine. Alguns escritores são mais felizes do que outros nessa empreitada. Por exemplo, em "Horizonte Perdido", James Hilton parece estar mais interessado em contar uma história e estimular a imaginação dos seus leitores do que em convencê-los de que aquilo que acontece em Shangri-Lá fica em Shangri-Lá deveria acontecer no resto do planeta. Por outro lado, em "Walden II", Skinner só não escreveu um epílogo dizendo "acreditem em mim, gente, condicionamento operante é a coisa mais maravilhosa que existe" por que seria redundante, já que o livro inteiro é quase um infomercial de Walden II (é possível ler nas entrelinhas um "mas espere! Ainda tem mais!" entre um capítulo e outro). Tolstoi, que em "Sebastopol" não descreve uma utopia, também é bastante claro a respeito do que ele acredita ser certo ou errado.

Aldous Huxley em "A Ilha" é mais sutil que Skinner, e muito mais claro do que Hilton a respeito da mensagem que quer passar, por que, ao mesmo tempo que descreve os componentes de sua sociedade ideal, não descuida dos aspectos estéticos da história que conta. Ela começa com Will Farnaby, o personagem principal, naufragando no Oceano Índico, e indo parar na ilha de Pala, que era onde ele originalmente desejava chegar. Farnaby é jornalista, e um agente pago por uma grande empresa petrolífera para infiltrar-se em Pala, desestabilizar o governo local por dentro, e submetê-lo ao comando do ditador da ilha vizinha, Rendang. No princípio, apesar da hospitalidade da população local, que o recebe e cuida de seus ferimentos como se fosse filho de Pala, ele colabora com as forças que desejam destruir a harmonia da ilha para aumentar sua riqueza material e poder. Entretanto, conforme vai conhecendo o lugar, seu funcionamento, e vive experiências purificadoras, Farnaby abandona seu cinismo e, ainda que seja tarde demais para salvar Pala, ele consegue ver claramente a beleza daquela sociedade. Não vou dar mais detalhes da história, tanto por que não quero estragar a leitura de quem se interesse, quanto por que eu sinceramente não lembro de muitos detalhes. O que eu vou falar, e que ainda me lembro, é da maneira como Huxley tentou responder às quatro perguntas que formulei anteriormente.

A ilha de Pala, apesar de naturalmente cheia de recursos, é isolada do resto do mundo por sua geografia, contando com apenas um porto natural, sendo todo o resto da costa impossível de atracar, ou pelo menos muito perigoso de navegar. Era como qualquer outra monarquia pobre da Ásia, com um povo supersticioso e fisicamente pouco saudável até a chegada de um médico britânico. Este médico, cujo nome me escapa agora, fora contratado para tratar o Rajá de um câncer na mandíbula. Tal operação não era sua especialidade, mas a realizou assim mesmo, com a ajuda de técnicas de sugestão e hipnose. O Rajá, agora a salvo de doenças terminais, ficou impressionado com as capacidades cognitivas do médico, e pediu para que ele ficasse em Pala e o ajudasse a fazer o que se pode chamar de uma completa reforma cultural na ilha. Aqui, fica óbvio para o leitor de "A Ilha" o que Huxley imaginara como a sociedade perfeita: uma fusão harmoniosa entre o melhor da ciência ocidental e o melhor da ética e espiritualidade oriental.

Esta revolução cultural, diferente da realizada em "Walden II", levou pelo menos três gerações, e envolveu mudanças graduais, porém profundas, nas práticas dos habitantes de Pala. Primeiro, o médico britânico conquistou o apoio da população feminina introduzido técnicas de higiene que em muito diminuiram as mortes durante o parto, bem como a qualidade de vida em geral. Depois disso, já contando com a confiança pública, ele pode ser dar ao luxo de atacar hábitos supersticiosos daninhos e substituí-los por outros hábitos, mais racionais. Junto com o Velho Rajá, que também era um grande intelectual e reformador, ele instituiu políticas públicas de longa duração, e que depois de 100 anos, quando Will Farnaby naufrga em sua costa, ainda se encontravam em efeito.

Como já disse antes, faz tempo que li o livro, e a grande maioria das propostas de Huxley me escapam à memória agora. Entretanto, todas elas seguiam o mesmo princípio: como seria uma sociedade onde todas as suas partes servissem o bem maior, e estimulassem o desenvolvimento saudável e consciente de seus membros? Ao contrário do que acontece em "Admirável Mundo Novo", onde as pessoas trabalham para manter o sistema de consumo irrefreável funcionando às custas de sua própria individualidade, em "A Ilha", tudo trabalha para favorecer o crescimento espiritual das pessoas, e torná-las cada vez mais conscientes de si, de seu contorno, de seus deveres e de sua missão. Por exemplo, os papagaios da ilha foram treinados para falarem, de tempos em tempos, palavras como "atenção!" e "aqui e agora!" para que os palaneses fossem constantemente lembrados de que devem estar atentos, e viverem aqui e agora, e não se perderem em divagações inúteis sobre o passado ou o futuro. A família em Pala, apesar de ser constituída de forma tradicional, com pai, mãe e filhos, também é atravessada pelo CAM, Clube de Adoção Mútua. No CAM, as crianças adotam outros pais e outras mães, fora de sua família nuclear, tantas quanto quiser ou precisar. Deste modo, quando esta se cansasse de seu pai ou de sua mãe biológicas, ia para a casa de outro, onde seria acolhido como um filho. Deste modo, nenhuma criança seria obrigada a conviver o tempo todo com a neurose de seus cuidadores (ou, na melhor das hipóteses, poderia alternar entre neuroses diferentes conforme lhe convir).

A ciência em Pala também é vista de maneira diferenciada. O Velho Rajá e o médico, apesar de serem ambos entusiastas de inovações, eram também cautelosos em relação ao que deixavam entrar em Pala. Por isso, a industrialização era limitada: foram criadas plantas hidroelétricas para gerar energia para geladeiras e assim estocar a produção de alimentos por mais tempo, e plantas industriais e poços de mineração existiam em pontos específicos da ilha, mas de maneira limitada. Além disso, nenhum trabalhador era obrigado a trabalhar mais do que o necessário, para que ainda dispusesse de tempo livre para realizar suas atividades de lazer preferidas. Em nossa sociedade produtivista, que clama sempre por mais e mais coisas para comprar e logo jogar fora, isso parece absurdo, mas em Pala, o trabalho tem como principal propósito estimular o desenvolvimento pessoal, e não usar todas as energias do trabalhador para realizar uma tarefa que muito pouco o beneficia, como frequentemente ocorre em tantos empregos.

Também a vida amorosa e sexual dos palaneses é bem distinta, tanto da nossa, quanto dos habitantes de Rendang, quanto mais dos cidadãos do "Admirável Mundo Novo". Ao invés de serem forçados a engolirem diversos tabus referentes à sexualidade, os palaneses são, desde muito cedo, educados a respeito da sexualidade e, a partir de uma certa idade, estas aulas se tornam práticas, quando aprendem a arte do Maithuana, a Yoga do Amor. Aqui, o sexo não é encarado como uma prática de dominação, uma conquista de um homem sobre uma mulher ou vice e versa. É, na verdade, uma expressão de amor entre duas pessoas (qualquer que seja o gênero delas, diga-se de passagem). Existe um apego entre os amantes, mas um apego bem diferente daquele que experienciamos na sociedade ocidental, que não amarra um ao outro irremediavelmente.

Mais notável ainda é o destaque dado para a espiritualidade propriamente dita, e os ritos a ela ligados. No final de sua vida, Huxley estava muito interessado com os possíveis usos de substâncias psicodélicas, que, se bem empregadas, poderiam servir para acelerar o progresso espiritual da humanidade. Tanto Pala quanto a sociedade distópica de "Admirável Mundo Novo" possuem drogas que alteram a percepção consciente da realidade e que estão ao alcance de toda a população. O uso dado a elas, porém, é completamente diferente. Se em "Admirável Mundo Novo" o soma é usado para fugir das dores do mundo e viver em um estado artificial e patológico de felicidade, em "A Ilha" o chá feito com a planta Moksha ("libertação" em sânscrito) é empregada para o exato oposto: expansão da consciência. Também não é utilizada de maneira indiscriminada, como quem toma aspirina, e sim apenas em momentos solenes. A primeira vez é no rito de passagem da adolescência para o mundo adulto, onde os jovens passam por um teste. Tanto meninos quanto meninas precisam realizar uma escalada perigosa, do topo de um penhasco até o Templo Central da ilha, onde eles tomarão Moksha e serão instruídos sobre os deuses, o universo e seu papel nele. Depois deste episódio marcante, o Moksha é tomado apenas em situações especiais, com o intuito de levar aquele que o bebe mais próximo da Iluminação.

Talvez o que mais tenha me chamado a atenção na sociedade palanesa é a verossimilhança com que Huxley a pinta. Ao contrário de Walden II e Shangri-Lá, que parecem ter surgido do éter e funcionando de maneira impecável por passes de mágica (mesmo que seja a "Mágica Comportamental" do Dr. Skinner), Pala impõe-se ao leitor como um lugar que realmente poderia existir. Mesmo sendo uma comunidade muito avançada, especialmente em termos psicológicos, ela é composta por pessoas de verdade, e não "exemplos didáticos" como Walden II. Esta foi a parte que mais me encantou em "A Ilha" - eu posso realmente acreditar na existência de Pala, bem como de seus moradores, por que o seu sofrimento existe e é palpável. O que muda na sociedade palanesa, quando comparada com a sociedade em que vivemos, é a maneira como este sofrimento é vivenciado: não há uma luta para livrar-se da dor, de viver permanentemente em um estado forçado de alegria. Aceita-se o presente, seja o presente como for. Susie McPhail, a segunda personagem mais importante do livro, perdera o marido em um acidente de montanhismo, e frequentemente passa seus momentos solitários pensando nele, e como sente sua falta. Porém, não há nenhuma nota de autopiedade em suas reflexões, nem uma negação da realidade, e em nenhum momento ela relega sua obrigação como mãe para chafurdar na própria dor. Talvez para Skinner, o que importa na construção de uma sociedade ideal é o reforço positivo externo, o ambiente, mas será que isto não seria muito, muito mais relevante?

Pala é uma fantasia, mas pode ser tornada real. Pode ser que para que desenvolvamos uma sociedade tão avançada levemos 100 anos. Contudo, as sementes para esta utopia podem começar a serem semeadas aqui e agora, e já estão sendo. Nos meus próximos dois posts sobre Utopias, pretendo falar sobre isso. Aguardem.