sábado, 30 de agosto de 2008

Treino e Fluxo

Ontem no treino tive uma sensação curiosa. Ela era mais empolgante ali no momento, sendo que contá-la aqui, depois de tantas horas passadas após ter acabado, não faz justiça ao que senti.

Professor de Kung Fu é bicho sádico. Eu imagino que eles não dormem à noite, pois ficam maquinando e imaginando novas e dolorosas formas de treinar seus pupilos. Deve existir uma revista especializada nisso, que só professores com mais de 10 anos de cátedra podem assinar!

Ontem, depois do aquecimento, do alongamento e dos treinos de forma de praxe, o professor ordenou “todo mundo vai lá pegar dois tatames e montem aqui, a parte áspera para baixo e a parte lisa para cima”. Eu já treino há tempo o suficiente para poder imaginar que nada de bom pode vir depois de uma ordem dessas. Exclamei um impotente “ai” e fui pegar meus dois tatames e montá-los. Como eu bem imaginava, seria um intensivo de rolamentos. Para quem não sabe, “rolamento” é uma classe de técnicas usadas para cair no chão sem se machucar, e imediatamente se levantar. Elas foram idealizadas para situações de risco de vida, especialmente brigas, e as treinamos de forma tal que, quando for necessário, sejamos capazes de cair, levantar e bater... ou correr, o que for mais conveniente. Este intensivo é famoso por ser cansativo ao ponto de ser alucinógeno (tente ficar rolando de um lado para o outro no chão sem ter algum tipo de delírio).

Lembro-me que, quando treinava em Caxias ainda, havia as aulas específicas de rolamento, que ocorriam quando o professor bem entendia. Estas não eram intensivas, mas extensivas, e tomavam toda uma hora. Eu tinha medo destes dias. Rolamentos envolvem cair, e cair envolve a força da gravidade, que, se mal administrada, causa dor. Oh sim, eu conheço a dor de cair repetidas vezes. Uma das piores idéias que já tive foi ir treinar dois dias de rolamentos seguidos, na quinta e na sexta-feiras. Passei um fim de semana inteiro dormindo de bruços e tomando na bunda analgésico.

Ontem eu não tive muito tempo para sentir medo. Eu simplesmente montei meus tatames, e, ao comando do professor, caí e me levantei de novo. Em minha mente não havia nada, apenas a sensação dos movimentos. Se errava alguma coisa, analisava rapidamente o que precisava concertar e aplicava na próxima tentativa. Não existia lugar para medo, insegurança, hesitação ou alegria. Tudo isto era irrelevante diante dos rolamentos.

Depois que terminamos o intensivo, estávamos cansados, e certamente alguns de nós ficaram doloridos e com hematomas, especialmente os mais novos. Curiosamente, não acredito que isto tenha acontecido apenas por não saber executar o movimento físico perfeitamente, por “inexperiência pura”, por assim dizer. Tenho a impressão de que foram aqueles que temeram a dor e o ferimento que mais sentiram dor e se machucaram, pois sua atenção estava por demais tomada para prestarem atenção nos próprios movimentos. Engraçado como o medo, que surgiu ao longo de bilhões de anos de evolução como um mecanismo de proteção e sobrevivência, seja aqui o responsável por aquilo que tentara evitar.

Findo o treino, os exercícios e tudo o mais, voltei para casa. Estava feliz com o treino do dia, pensando como fora produtivo. Foi então que me ocorreu que não me sentira feliz durante quase nenhum momento do treino, e tampouco triste ou assustado. Percebi que passara o tempo inteiro concentrado no momento à minha disposição para agir, na minha ação. “Oh meu Deus” pensei comigo mesmo “passei o treino inteiro em fluxo”.

Eu adoro o Kung Fu.

Nenhum comentário: