terça-feira, 6 de maio de 2008

Eu e a Filosofia

Certa vez no meu terceiro ano, durante uma daquelas visitas de dono de cursinho para angariar mais alunos, disse que queria fazer Filosofia por que era mais fácil de passar no vestibular. Como um bom chiste freudiano, tinha seu fundo de verdade. O camarada do Mutirão (ou qualquer outro por aí) disse, um tanto quanto desconcertado pela bobagem que eu tinha proferido, que era importante termos pessoas sendo pagas para pensar nos problemas do mundo (1).

Entretanto, tive a sorte de adiar meu confronto com o demônio Vestibular que guarda a porta para a casa da Grande Mãe UFRGS, ir para os Estados Unidos e nem ao menos ter que pensar em estudar Química. Foi lá que decidi fazer Psicologia (2).

E na faculdade, aprendo que é impossível separar Filosofia de Psicologia, não só historicamente, mas epistemológica e tecnicamente. “Uma vida não refletida é uma vida indigna de ser vivida” dizia Sócrates há quase três mil anos atrás (3). Até hoje suas palavras ecoam pelas universidades, pelos bares de esquina e por qualquer lugar onde se estude a vida humana.

Para trabalhar com engenharia, não precisa cursar os 5 anos de faculdade e conquistar um diploma que garanta seu título de Engenheiro. Basta fazer um curso de tecnólogo, e em 2 anos começar a trabalhar na área (4). Em um curso como Psicologia (e Filosofia também) isso não é possível. A diferença entre um tecnólogo e um bacharel está no que lhes é ensinado. Enquanto que o primeiro aprende apenas as técnicas essenciais para sua profissão (fazer cimento, por exemplo), ao bacharel é ensinado tudo que é possível apreender sobre a profissão, o código de conduta do profissional, a filosofia por trás do que lhe é ensinado, além das técnicas básicas. Não entendo muito de construção civil, mas a maneira como eu precedo para construir uma parede ou uma estrada é basicamente a mesma. Certamente há muitas variáveis, como o material a ser empregado, o local onde construir, o tipo de solo do local, o clima, entre outras coisas que não sou capaz de pensar, mas o procedimento é sempre o mesmo. Não é necessário ler a filosofia de Pitágoras para construir uma ponte.

O mesmo não é válido para um emprego onde se lida diretamente com seres humanos (5), como psicoterapia. Posso sempre utilizar associação livre com meus pacientes? Ou Condicionamento Operante? Ou Intenção Paradoxal? A resposta para todas estas perguntas é não. Para aplicar uma técnica de psicoterapia, é necessário conhecer suas bases epistemológicas (6), a filosofia por trás dela, para então aplicá-la. A associação livre é uma técnica psicanalítica, uma teoria que parte do pressuposto que os seres humanos são determinados por seus conteúdos mentais inconscientes; o Condicionamento Operante foi desenvolvido por B.F. Skinner e seus amigos behavioristas radicais, que acreditavam que livre arbítrio é um mito, e que o ser humano é uma máquina de reagir a estímulos; e a Intenção Paradoxal, por outro lado, foi desenvolvida por Viktor Frankl, teórico da Logoterapia, que acreditava firmemente na capacidade dos seres humanos de determinarem seus estilos de vida (7), e é utilizada pelos terapeutas cognitivo-comportamentais de hoje em dia. Não estou dizendo que devemos nos manter dentro de nossos cercadinhos teóricos, fazendo apenas o que nos foi ensinado – pelo contrário, devemos buscar mais coisas de outros campos e teorias. Apenas precisamos ter o bom senso de adaptar, tanto as técnicas quanto a nós mesmos. Um behaviorista radical pode muito bem utilizar em uma terapia a Intenção Paradoxal, mas ele já não será mais um behaviorista radical – só na formação.

Eu poderia muito bem ter entrado para o curso de Filosofia. De fato, a Psicologia tomou para si a função que antigamente era exclusiva da Filosofia, que é a compreensão do ser humano como tal. O campo da Personologia, os estudos da Personalidade, é o mais próximo da Filosofia que temos. Muitos filósofos de antigamente podem ser considerados como psicólogos da personalidade. Entretanto, acho que, por mais que fosse gostar da faculdade, ainda prefiro a Psicologia, por não ser apenas teórica (apesar da teoria ser preponderante), mas por ter uma parte prática muito sólida. Algumas coisas em Filosofia pouco me interessam, como as concepções cosmológicas ultrapassadas de Aristóteles, Pitágoras e Demócrito (8), até por que o ser humano é muito mais intrigante que as distantes estrelas.

O que Sócrates dizia há 3 mil anos atrás continua válido – viver sem saber o que se está vivendo é perda de tempo. Muitas filosofias e linhas terapêuticas buscam que as pessoas tomem consciência do que fazem e por que o fazem: a Psicanálise e os insights sobre o Inconsciente, a Terapia Cognitiva com a Psicoeducação, a Gestalt-Terapia com a Awareness. Uma das críticas feitas à Psicologia e à Filosofia é que, se Platão ou Sócrates aparecessem hoje em dia, eles não seriam capazes de entender um livro sobre Física Quântica (9), mas seriam perfeitamente capazes de entender um livro de Personalidade e Antropologia Filosófica (10). Mas desde a Grécia Antiga até hoje, ainda somos a mesma espécie: dois olhos, duas orelhas, uma boca, um estômago, um coração, e, apesar de vivermos em uma cultura completamente diferente, as mesmas angústias: quem sou eu? Por que estou aqui? O que devo fazer de minha vida? É falacioso dizer que estas duas disciplinas não mudaram em 3 mil anos – obviamente progrediram. Mas seu núcleo continua o mesmo. E isso provavelmente continuará por muito tempo depois de nosso tempo.





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(1) Aqui no Brasil, filósofo é, parafraseando André Dahmer, mais um cidadão com ensino superior completo destinado a vender salgadinhos na praia. Nos Estados Unidos, existem os “Think Tanks” – Tanques Pensantes, numa tradução livre, que fazem justamente isso: são pagos para pensar de forma avassaladora sobre questões relevantes como aborto, guerra e outras porcarias mais.

(2) Que vem a ser um curso bem mais concorrido do que Filosofia. No meu ano, havia 23,55 candidatos por vaga para Psicologia, contra 5,15 para Filosofia. Minha preguiça era retórica.

(3) Pode-se argumentar que “ignorância é uma benção”, mas isto está aberto para questionamentos futuros.

(4) Com suas devidas restrições. Tecnólogos em engenharia civil, por exemplo, não podem assinar plantas, nem serem responsáveis por uma construção: precisam ser supervisionados por um Engenheiro – esse sim, passou 5 anos ralando na faculdade pra conseguir diploma.

(5) OK, engenheiros têm que lidar com os peões da obra, os chefes da construtora e quem mandou construir a obra. Mas duvido que ensinem esse tipo de coisa na faculdade para eles.

(6) Epistemologia é o ramo da Filosofia que reflete sobre a natureza do conhecimento, e por conseqüência, os métodos de pesquisa e de aplicação prática.

(7) Mas não determinarem seus destinos, o que é bem diferente.

(8) Não quero diminuir a contribuição destes distintos homens para a Astrofísica, contudo.

(9) Não de cara, pelo menos. Estudando vai.

(10) Nesse aspecto, os pós-modernistas realmente foram um progresso para a Humanidade.

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