domingo, 13 de abril de 2008

A Missão da Psicologia

Carl Rogers, o primeiro psicólogo de formação a formular uma teoria psicoterápica e brilhante expoente da Psicologia Humanista, dizia que seria muito mais produtivo e econômico pararmos de treinar psicoterapeutas e nos focarmos em identificá-los. Estaria Rogers sendo determinista, declarando que é inútil treinarmos pessoas que não nasceram terapeutas? Qualquer um que tenha lido algo escrito por ele dirá que não. O que Rogers quis dizer com isso é que a formação psicoterápica (pelo menos de seu tempo) era falha, e que bons psicólogos e psiquiatras clínicos eram bons apesar de seu treinamento, e graças aos seus talentos pessoais. Esta crença foi corroborada por pesquisas realizadas muito tempo depois de Rogers ter partido, em especial a análise feita por Martin Seligman baseado nos dados coletados pela revista Consumer Reports. Basicamente, os dados revelavam que não havia diferença palpável entre as escolas de terapia utilizadas. Ademais, a maioria dos psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais depois contatados definiram-se como sendo “ecléticos”, ao invés de presos por juramento a uma teoria específica. Com base nestes dados, podemos pensar que as teorias atuais de psicologia e psiquiatria diferem apenas em um nível muito superficial, e que todas sustentam-se sob uma base comum – coisas que todo bom psicoterapeuta faz em terapia, independente de sua filiação intelectual. Esses hábitos mais profundos são senso comum entre bons clínicos, mas não o é entre muitos professores universitários, que, pressionados pelo clima de guerra intelectual, focam-se em diferenças epistemológicas e ontológicas bobocas uns contra os outros, e que na melhor das hipóteses esquecem de ensinar o óbvio, e na pior, as abominam e repreendem estudantes que as buscam ou praticam (o que, mais uma vez, mostra que selecionar psicoterapeutas talvez fosse melhor do que treiná-los).

Mas o que são essas boas práticas comuns para os bons clínicos, que escapam a visão mais ampla dos acadêmicos? Coisas absolutamente bobas, que qualquer pessoa de bom coração já faz: demonstrar empatia, escutar com atenção, construir relações de confiança e honestidade, e reforçar as qualidades dos pacientes. Martin Seligman chama estas práticas “estratégias profundas”. Pode parecer bobice isso que eu disse, mas mais bobice ainda é o fato de que, por mais necessárias que estas qualidades sejam para um bom psicoterapeuta, os professores dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia as ignorem. Por que isso acontece? Basicamente, quando a Psicologia foi estabelecida como ciência da saúde, depois da Segunda Guerra Mundial, ela adotou o modelo médico-psiquiátrico de clínica e pesquisa – procure uma doença, encontre e cure. Este modelo funciona muito bem para doenças mais palpáveis, como cardiopatias e dores musculares, mas não é tão eficaz com os elusivos problemas do ramo da psicopatologia. Eu posso identificar a etiologia de um infarto (fumo, bebida, sedentarismo, propensão genética), mas eu posso fazer o mesmo com a depressão? O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR) da American Psychiatric Association mostra que isso não é possível ainda, já que limita-se a descrever a sintomatologia. Esta lacuna dá espaço para muitas teorizações diversas e frequentemente conflitantes, o que permite que não exista contradição para um estudante de Psicologia ter na faculdade aulas de neurofisiologia, psicanálise lacaniana e análise experimental do comportamento. E aqui, volto para o problema das guerras teóricas entre acadêmicos, completando um ciclo.

Mas por que o modelo médico-psiquiátrico não obteve os mesmos progressos que obteve na cardiologia no campo da psicologia? Pega o DSM e lê algumas páginas. Além de ser surpreendentemente hilariante (como no caso do Transtorno de Pica), é possível perceber um padrão claro no que lá está escrito. Sendo meio ingênuo, só tem coisa ruim. O DSM é um manual incrivelmente útil e um progresso na prática diagnóstica, mas é severamente limitado por focar-se apenas em consertar o que está quebrado ao invés de fortalecer o que há de bom. E é esta a tese que Martin Seligman, ex-presidente da American Psychological Association e um dos precursores do movimento da Psicologia Positiva propõe. Segundo ele, e muitos outros pesquisadores importantes, a Psicologia obteve progressos consideráveis utilizando-se do modelo patológico (encontre o problema e o conserte), tanto que hoje em dia é possível atenuar enormemente os problemas de 14 transtornos mentais. Entretanto, esse modelo por si só está esgotado. A Psicologia tinha três missões antes da Segunda Guerra: curar as doenças mentais, fazer as vidas das pessoas mais felizes e estimular as habilidades de gênios e prodígios. Entretanto, pela doença ter se tornado o problema mais urgente naquela época, e o dinheiro de financiamento para pesquisas ter ido todo para quem buscava consertar doenças mentais, as outras duas foram sumariamente negligenciadas. Entretanto, os clínicos continuaram tacitamente a cultivar as virtudes dos pacientes, apesar de não o perceberem (ou aprovarem conscientemente tais práticas). O exemplo mais óbvio disto vem do próprio Freud. Em 1892, ele tratou e curou Elisabeth von R., uma jovem histérica que apaixonara-se pelo viúvo de sua irmã, e que por isso desenvolveu um problema psicogênico para caminhar. Freud originalmente concluiu que o êxito do tratamento devia-se a sua técnica psicanalítica, mas ao revisar suas anotações sobre o caso, percebeu que suas técnicas terapêuticas nada adicionaram de relevante ao tratamento, o que o levou a concluir que foi um “milagre”. Entretanto, se lermos o caso todo (como Irvin Yalom), veremos que Freud não se limitou ao seu consultório: falou com a mãe da paciente para que esta desse apoio emocional para a filha, constantemente tranqüilizou a paciente de que ela não era uma imoral, bem pelo contrário, que só uma pessoa muito honrada e nobre poderia sentir-se culpada por seus pensamentos, e quando Elisabeth estava curada, Freud foi vê-la dançar em um baile. O brilhante pai da psicanálise fez tudo o que um bom terapeuta faria: estabeleceu uma relação de confiança e honestidade com a paciente, foi um bom ouvinte e fortaleceu o que havia de bom em Elisabeth. Mas apesar de seu sucesso, ele foi incapaz de perceber a mágica que fizera, e preferiu ir chafurdar em sua nihilsta teoria da psicodinâmica e do Complexo de Édipo.

Durante quase todo o século XX, a Psicologia tentou imitar a Medicina, e deixou de lado as qualidades humanas, com as notáveis exceções dos psicólogos humanistas Carl Rogers, Abraham Maslow e William James, homens notáveis que cometeram o erro de nascerem em épocas em que suas teorias positivas a respeito da natureza humana não seriam valorizadas, preteridas em benefício de outras, que consideram as pessoas amontoados de emoções negativas e falsidade, ou o tracinho entre um estímulo e uma resposta. Mas suas obras estão sendo retomadas agora com grande ímpeto por milhares de pesquisadores, não só clínicos, mas também sociólogos, antropólogos, economistas e pesquisadores. Um dos mais notáveis esforços de pesquisa empreendidos até o momento foi a criação de um manual taxonômico de qualidades e valores, em moldes parecidos com o DSM.

Os proponentes da Psicologia Positiva não a imaginam como uma “revolução paradigmática” de que Thomas Kuhn falava (aliás, Seligman admite estar um pouco de saco cheio dessa abordagem histórica), pois não buscam destruir a antiga Psicologia “Negativa”. Na verdade, pretendem apenas complementá-la, e estudar o que até então fora negligenciado, utilizando-se das mesmas ferramentas metodológicas atualmente empregadas.

A Psicologia é ao mesmo tempo ciência da saúde e humana, o que implica que ela, ao mesmo tempo que busca tornar as vidas de todos os seres humanos mais saudáveis, também transcende o sistema de saúde, pois busca tornar nossas vidas mais do que meramente assintomáticas expressões de vida; até então, ela buscou apenas nos tirar de um nível -5 de felicidade para um nível 0. A Psicologia Positiva propõe irmos do 0 para o +5 em felicidade, e não só isso: que esta vida seja produtiva e que tenha um significado. Martin Seligman diz que, tornar a vida das pessoas melhor em todos os seus aspectos é o direito e a missão da Psicologia. Agora é a hora de tomá-la de volta em nossas mãos, e fazê-la acontecer.

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