segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Cozinhando

Amo cozinhar. Desde muito tempo eu gosto de fazer minha própria comida, antes mesmo de me mudar para Porto Alegre, o que na minha cronologia significa que amo cozinhar desde tempos pré-históricos. Porém, é só agora que estou me dedicando de forma quase diária à cozinha que percebo quanto esta atividade me agrada.

Nos últimos tempos, tenho me dedicado mais a aprender e dominar o preparo de grãos que eu considero básicos: feijão, lentilha, ervilha, arroz, grão de bico e o que mais eu descobrir que se enquadre na minha definição um tanto quanto subjetiva de ser um grão e de ser básico.

Hoje, nós ocidentais que moramos em cidades, vamos ao mercado comprar nosso alimento já embalado, limpo, pronto. Um saco de meio quilo de lentilhas aqui em Porto Alegre é igual a um saco equivalente na Bolívia, no Peru ou na Austrália. É, por assim dizer, um objeto a-histórico, e é essa ausência que nos faz esquecer que o prato de lentilhas na sua frente é o fruto de eras de aperfeiçoamento da agricultura. Por muito tempo, populações inteiras dependeram da safra destes grãos como pilar central de sua alimentação, e hoje, graças ao acúmulo tecnológico, podemos nos dar ao luxo de comer todos estes alimentos e poder desfrutar de uma variedade nutricional muito maior.

Este é um motivo para eu chamar estes grãos de "básicos". O outro, intimamente ligado com este, é que eles são o suficiente para uma refeição completa. Claro, fazer um arroz para acompanhar o feijão ou a ervilha vem muito bem, mas não considero absolutamente necessário. É uma alegria muito grande pegar o pacote, abri-lo, pensar em como devo preparar os grãos, em que panela, com quanta água, com quais outros ingredientes, ir misturando tudo aos poucos e, no final, descobrir que ficou bom.

No momento, acredito que estou subindo de nível. Antes, eu cozinhava os grãos e me dava por satisfeito. Agora, estou cozinhando-os para então usá-los como ingredientes para outras receitas mais elaboradas - ou, se este é um adjetivo por demais elitista, com mais passos e coisas por misturar. Já fiz hambúrgueres com lentilha, e pretendo agora fazer bolinhos de arroz e mais hambúrgueres, só com que ervilha. A escolha das receitas que desejo concretizar é um tanto quanto arbitrária, baseada única e exclusivamente no fato de que eu gosto muito de hambúrguer (e bolinho de arroz só não é um tipo de hambúrguer vegetariano por que é bolinho de arroz), mas acredito que minha escolha de fazer pratos com receitas mais complexas é um passo natural da minha evolução como cozinheiro.

Há muito tempo que penso em proceder desta maneira. Ser um bom cozinheiro não significa fazer mil pratos diferentes, extremamente aromáticos e complicados. Talvez seja essa a impressão que temos de programas de TV como Hell's Kitchen e seus genéricos com menos palavrões, onde os candidatos se esmeram e se esfalfam fazendo acrobacias temperísticas para agradar um paladar exigente e uma personalidade intransigente. Não quero diminuir o mérito de fazer receitas assim, mas não gosto de imaginar o impacto que estes shows tem sobre seus espectadores, que podem acabar acreditando que cozinhar é o talento inato de alguns escolhidos, e não algo que pode ser aprendido e apreciado por qualquer um que assim deseje e se esforce.

Minha ideia de bom cozinheiro ou cozinheira é aquele que aprendi no dia a dia, com minha família e meus amigos: saber fazer um arroz soltinho, um feijão bem temperado, um branquinho (aquilo que para além das terras riograndenses chamam de beijinho) bastante cremoso. Dos escoteiros, onde eu conquistei a insígnia de especialista em Cozinha, me resta ainda a exigência autoimposta de saber fazer uma massa, um feijão e um arroz bem feitos independente das condições materiais, climáticas ou geográficas. Pode estar acontecendo um segundo dilúvio e eu ser obrigado a preparar a janta sem luz em uma fogueira de madeira molhada à beira de um barranco de cinquenta metros, mas isso não é desculpa para que a comida não seja gostosa e quente. Na verdade, em uma situação dessas é ainda mais necessário que a comida seja boa, para que haja pelo menos um bom motivo para ir dormir satisfeito.

Em última análise, o mais importante na arte de cozinhar não é fazer muito ou muito grande. É fazer todas as pequenas coisas com grande cuidado e atenção.


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Impressões de um ciclista pedalando por aí

Depois de deixá-la parada por um tempo dentro do meu quarto, finalmente sacudi a poeira da minha bicicleta e coloquei-a novamente no seu devido lugar: nas ruas de Porto Alegre. Este reencontro, além de me fazer entender a necessidade de ter um testamento atualizado por causa do nosso trânsito, trouxe à minha consciência uma série de memórias e percepções.

Eu sabia que minha bicicleta é um tanto quanto desengonçada, mas não lembrava o que isto significava na prática. Como o fuscão preto, ela é feita de aço, e por isso muito pesada. Para mim, pedalar fortalece também os braços, por que nosso prédio não tem elevador e preciso carregá-la escada abaixo e escada acima. Fortaleço minha a musculatura dos meus membros superiores também quando vou prendê-la em no corrimão de alguma escadaria ou em uma lomba, tarefa que exige, além de pegar a corrente e colocá-la de maneira segura ao redor do quadro e da roda dianteira, impedir que a bike saia rolando ladeira abaixo. Com apenas uma mão, por que a outra está ocupada demais se atrapalhando com as chaves.

Na hora de pedalar e pegar velocidade, ela também é problemática, por que além do seu peso descomunal, ela também possui um sistema de amortecimento que, se por um lado deixa a viagem muito mais confortável, também a deixa muito mais lenta, visto que absorve a energia de todos os impactos - inclusive das pedaladas, que precisam ser dobradas para manter um ritmo decente.

Se minha bicicleta fosse uma criança, certamente seria enquadrada na categoria de "aluno especial", dadas todas as suas peculiaridades e diferenças. Um amigo meu já me aconselhou a vendê-la ou trocá-la por outra, mais leve e fácil de manejar, e por um tempo, concordei que este era o melhor curso de ação. Hoje, porém, não vejo as dificuldades de pedalá-la como problemas - vejo como desafios a serem conquistados. Minha bicicleta não é "especial" por causa de suas limitações, mas especial por que preciso fazer por merecer para manejar seu guidão. Ela é uma bicicleta Shaolin, e estar com ela é estar em constante treinamento.

Para além das peculiaridades do meu veículo particular, pedalar pelo trânsito de uma cidade grande de modo geral é um constante treino mental. No trajeto de casa para um outro lugar, além de observar os carros que comigo dividiam a rua, observei como eu os observava. O processo cognitivo de um ciclista nesta hora é bastante complexo e cheio de tarefas. Para chegar vivo no final do dia, é preciso prestar atenção aos veículos, aos pedestres, aos outros ciclistas e aos motoqueiros; perceber quando é necessário freiar, trocar de marcha, acelerar ou desmontar e empurrar a bicicleta; os barulhos que vem dos carros, das pessoas e (muito importante) da própria bike. E eu, pelo menos, precisei dizer várias vezes para mim mesmo que devia focar mais na rua do que na minha própria mente. Na hora de subir os lances de escada que separam a rua do meu lar, preciso também tomar nota da melhor maneira de carregar a bike - quando tinha a recém adquirido, precisei desenvolver uma estratégia para melhor utilizar minha força braçal e não me cansar excessivamente. Até agora, o algoritmo "subir três lances usando a mão direita e então passar para a mão esquerda" parece ser o mais eficaz na conservação de energia, mas ainda estou tentando aprimorá-lo.

E em casa, no meu quarto, observei os meus músculos, tanto das pernas quanto dos braços, e percebi meu cansaço. "Estou fora de forma" penso eu "se essa pernadinha me deixou desse jeito". Ao mesmo tempo, é com certa alegria que percebo que mal posso esperar pela próxima oportunidade de fazer tudo de novo. Não sei por que diabos deixei minha bike tanto tempo parada, mas estou feliz por poder pedalar por Porto Alegre outra vez.

sábado, 10 de agosto de 2013

Breve atualização, ou: isso aqui ainda existe?

Não dá, é impossível. Por mais que tente, não consigo abandonar este blog aqui. É como uma relação abusiva e destrutiva, onde um parceiro dá tudo de si, se desmembra e se acaba em nome do amor, enquanto o outro meramente parasita e se aproveita dos nobres sentimentos do outro, e que, por mais que diga que está tudo acabado, que é a gota d'água, basta apenas um "eu te amo" e a promessa de mudar que tudo volta a ser como era antes. Só que, com um blog. OK, minha metáfora é dramática demais. Desconsidere-a.

Mas a primeira frase, a que começou esse texto, continua sendo bastante verdadeira. O "Espadachim Cego" é um saco de gatos filosófico-virtual. E não poderia ser diferente, criado como foi em 2008, durante meu segundo ano de faculdade, para conter todas as divagações que o então jovem de 19 anos considerasse relevante o suficiente para virar um ensaio completo. E como a expressão "saco de gatos" deve deixar claro, eu considerava muita coisa relevante, tanto que várias vezes fui acusado de "dissertar sobre o nada".

(nota para essa galera da psicologia que entrou na faculdade em 2013: eu já tava escrevendo bobagem nesse blog enquanto você mal e mal estava terminando o ensino fundamental. Reflitamos.)

Então, nos últimos tempos, senti que era necessário partir para outros pagos, escrever sobre assuntos mais "sérios" e "respeitáveis", e por isso, criei outro blog: o Tempo de Rebeldia. Estou feliz com ele, escrevendo sobre assuntos políticos que considero profundamente relevantes. Mas ele tem um problema sério, que está embutido em sua própria estrutura: e quando eu quiser falar de coisas irrelevantes?

Bom, talvez não "irrelevantes", por que um assunto se torna relevante quando eu tenho vontade de escrever a respeito dele (tipo a vez que eu escrevi um texto sobre Big Brother, Fofão e Pogobol), mas... diferentes. A Lola não faz muita diferença entre assuntos sérios e assuntos bobos, e publica tudo no mesmo lugar. Eu não consigo - vejo uma barreira entre as coisas, e preciso manter uma distinção.

Não faço isso por que acredito que sejam substâncias radicalmente diferentes e que não podem serem misturadas. Muito mais do que um problema arbitrário, é uma questão prática muito concreta. Na minha experiência, cada blog é um experimento estilístico (ou ético-estético, tanto faz), uma obra em constante mudança e crescimento. De certa forma, são pinturas que constantemente retoco, troco de moldura ou mudo de lugar. O "Tempo de Rebeldia" é um recorte do "Espadachim Cego" que se tornou grande demais para continuar aqui, e virou uma obra à parte. É, pra usar uma metáfora de outra mídia, um spinoff. E justamente por causa disso, ela não pode substituir o "Espadachim Cego". Ou os fãs de Buffy pararam de ser fãs da caçadora de vampiros quando estreou o spinoff "Angel"?

Sacos de gato são muitas vezes considerados indesejáveis por causa de sua indefinição. Porém, muitas vezes não se reconhece que é do seu ecletismo que surgem ideias inovadoras. Este experimento aqui, que aos trancos e barrancos venho conduzindo desde 2008 (até antes, desde 2006, se lembrarmos que eu escrevia no saudoso Roqueiro e Alcoólatra com uns amigos meus) foi um importante método para o desenvolvimento das minhas habilidades como escritor, bem como para a maturação do meu pensamento político, científico e filosófico (é com um pouco de vergonha que leio velhos posts e sinto um ranço machista ou reacionário, mas era o que eu conseguia fazer na época). Por que descontinuá-lo, se ainda posso postar uma bobagem ou duas de vez em quando?

Não sei quanto vou atualizar esse blog. Com certeza, não vai ser rotineiro - não como quero que seja com o "Tempo de Rebeldia". Provavelmente, escreverei quando der na telha, sobre assuntos os mais diversos, mas principalmente comida. Ia largar o clichê "aguardem", mas vou ser sincero e dizer de cara: voltem a olha GIFs de gatinhos, por que sei lá quando eu escrevo aqui outra vez. Posto no facebook quando isso acontecer que eu sei que vocês vão estar lá.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Saudosismo

Meu parceiro Gabriel cantou a pedra no vlog dele, mas eu vou comentar aqui também: saudosismo. Nossa geração, os nascidos entre 1985 e 1990, somos todos um bando de saudosistas e crianças frustradas por terem deixado a infância para trás. Volta e meia no 9gag aparece um post falando sobre como algum desenho que nós assistíamos quando tínhamos quatro ou cinco anos era maravilhoso, e muito melhor do que tudo que é produzido atualmente, e de tudo que um dia será produzido. Em conversas informais, no pátio do colégio da faculdade, é muito comum que alguém lembre de alguma porcaria que fazíamos quando tínhamos entre nove e dez anos e fale com um certo brilho no olhar, dando a entender que nunca mais, desde que entrou oficialmente para o clube dos adultos, ele se divertira tanto quanto no primeiro dia em que ele pulou no seu Pogobol, jogou no seu PenseBem ou fez seu primeiro ritual satânico com a  faca que vinha dentro do boneco do Fofão.

Meu primeiro sacrifício foi mais ou menos como minha primeira vez, só que com menos sangue.


Não sei se isso é realmente um fenômeno social exclusivo de nossa época, ou se nosso saudosismo ganhou mais destaque do que o saudosismo de nossos pais por que nós temos a internet ao nosso lado para guardar e compartilhar nossas memórias infantis, ao invés de apenas umas fitas cassete vagabundas. Honestamente, eu não sei. Já ouvi meu pai falar sobre as coisas que ele fazia e as histórias que ele lia quando era bem piá, tipo andar a cavalo fingindo que era o Zorro ou remendar a bola Pelé dele com a tecnologia infinitamente inferior dos anos 1960, mas não lembro de em nenhuma ocasião ele ter se juntado com amigos de sua faixa etária para, juntos, fazerem um jogral sobre como Fantomas era o maior herói já concebido por qualquer mente humana.

E você aí achando que o Batman do Adam West era o único herói pançudo.


Talvez existam cinquentões como ele que realmente façam isso (a imagem acima eu achei em um blog que tinha um post sobre o Fantomas - interpretem isso como vocês bem entenderem), mas mesmo que eles de fato existam, ainda serão uma minoria pouco expressiva. Além disso, nossa geração tem muito mais material para sentir saudades. Isto não é um juízo de valor, mas uma constatação de fato - fomos a primeira geração a ser bombardeada com entretenimento 24 horas por dia, com acesso a TV à cabo, pay-per-view, YouTube, Cartoon Network, cinemas 3D, sites pornô, chats, fóruns, iPods, iPhones, iPads, podcasts, sites de jogos em flash e bolhas de sabão.

FUCKIN' BUBBLES!


Talvez isto não signifique que nós sejamos seres humanos melhores ou superiores, mas provavelmente significa que nossos processos cognitivos funcionem de um jeito diferente. Primeiro, temos mais conteúdo para processar e selecionar como sendo relevante ou não. Segundo, este conteúdo muda com muita facilidade e velocidade. Não sei se os programas de TV de 30 ou 40 anos atrás mantinham-se no ar com muita facilidade, mas certamente havia muito menos competição pela nossa atenção, e muito menos preocupação em destacar-se. Tenho a impressão de que parte desse nosso saudosismo seja por que, quando os nossos amados desenhos passavam na TV, nossos adorados brinquedos ainda não estavam empoeirados e nossas músicas favoritas ainda tocavam nas rádios nós estávamos dispersos demais para realmente prestar atenção nelas e aproveitá-las. E hoje, quando as ouvimos outra vez, agora mais maduros, inconscientemente percebemos isto, nos arrependemos e tentamos de certa compensar o "tempo perdido" dizendo para todo mundo como a nossa infância foi fantástica, e que nunca nenhum menino ou menina poderá vivenciar algo tão épico.

 Acima: representação visual do conceito  "épico  " no ano de 2012


Compensamos. Reparem bem nessa palavra, por que ela não foi escolhida por acaso. Ninguém tenta compensar algo bem feito, algo perfeito. Tentamos compensar algo que ficou incompleto, que deixou a desejar. Não sei se meu pai pondera se aproveitou bem a sua infância, se brincou o suficiente de ser o Zorro, por que nunca li os pensamentos dele, mas eu aposto que não, talvez por que ele tenha coisas mais importantes com que ocupar sua mente, como viver aqui e agora. Com toda certeza, quando ele pensa na época em que ele tinha dez anos de idade, ele deve sentir algum tipo de nostalgia, de saudade, porém não o suficiente para fazê-lo criar um blog para catalogar as porcarias que passavam na TV na década de 1960. Não vejo ele tentando compensar nada, por que não há nada para compensar no seu passado. Talvez ele não seja perfeito, mas é o que é, e não há como mudar isso. E se não há como mudar, por que se preocupar?

Exceto ser o Batman. Eu ainda estou tentando consertar este fracasso dos meus pais.

Talvez não tenhamos feito nossa lição de casa, e não tenhamos aprendido o que tínhamos que aprender. Da mesma forma que ficávamos perdidos e aéreos quando éramos crianças, pensando no que íamos fazer quando crescêssemos, hoje ficamos perdidos pensando em como era bom ser criança e assistir desenho e não ter que se preocupar com mais nada. Será que daqui a trinta anos, quando formos respeitáveis senhores e senhoras de cinquenta e tantos anos, vamos olhar para a juventude que hoje vivemos e dizer "é, aquela foi a época pra se ter vinte anos! Essa molecada de hoje não sabe coisa nenhuma!" enquanto postamos links no Facebook para algum vídeo da primeira temporada de Big Brother Brasil?

Acima: representação visual do conceito  "épico  " no ano de 2042


A frase "viva o seu dia como se fosse o último" e suas variações é considerada um dos maiores clichês de nossa cultura, e cada um de nós já deve ter visto pelo menos três filmes do tipo "empresário de sucesso sofre experiência difícil e aprende o que é realmente importante na vida", e automaticamente fazemos algum tipo de piada toda vez que alguém ingenuamente diz que o "aqui e agora é o momento mais importante, por isso se chama de presente". Contudo, será que avacalhamos com esta ideia e a chamamos de clichê justamente por que não compreendemos o que é viver o momento presente? Pessoalmente, sou tão culpado por todo este saudosismo que invade os meios de comunicação quanto qualquer outro membro de minha geração. Eu avidamente clico em todos os links que usem a frase "você está ficando velho" ou "olha a nossa infância" para ver as coisas com que eu brincava e me divertia quinze anos atrás, e mais de uma vez me envolvi em discussões sobre os méritos de "Cavaleiros do Zodíaco" ou como o Kuririn morre a cada quatro episódios de "Dragon Ball Z" - e mais do que isso, me diverti horrores com estas panaquices. Entretanto, quero também acreditar que aprendi alguma coisa nestes últimos quinze anos além dos nomes dos 150 pokémons.

OK - 151 pokémons

O que seria esta coisa que eu espero ter aprendido, ou pelo menos estar aprendendo? Apreciar o aqui e agora, deixar o passado para trás, não me preocupar com o futuro antes que seja necessário e não levar a vida tão a sério. Clichês, não? Talvez. Por outro lado, cada vez mais me convenço de que os valores que nossa cultura nos impôs, aquilo que nos ensinaram como sendo importante e digno de nossa atenção, é mera enganação, jogo de cena, e que são estes chavões, que parecem ridículos justamente por transcenderem a linguagem e as palavras, aquilo que realmente deveríamos procurar viver.

A propósito: talvez eu saiba o nome de mais de 151 pokémons.

domingo, 3 de junho de 2012

Sobre comer carne

Acho que não é novidade pra ninguém, mas eu sou vegetariano. Isto é, eu não como carne. Fiz esta escolha por que não quero compactuar de maneira nenhuma com uma indústria que causa dor e sofrimento para seres vivos e conscientes apenas para satisfazer meu delicado paladar. E é por isso que eu fico especialmente incomodado com um certo argumento que frequentemente as pessoas me dão para justificar o por que elas continuam comendo carne: "eu não conseguiria viver sem".

Quero que fique claro: se você sentar comigo em um restaurante com um bife bem sangrento, eu não vou te fazer cara feia. Eu não vou dizer que você está comendo um cadáver, ou que você também é responsável pela morte de um ser vivo. Posso até pensar todas estas coisas, mas não direi nenhuma delas, por que não quero estragar o seu almoço e, principalmente, por que não quero forçar você a fazer algo que não acredita. O que colocamos em nosso prato é uma escolha ética muito importante, e o que você decide comer ou não deve ser algo que faça sentido para você, e não para mim. Levei pelo menos três anos cheios de dúvidas e recaídas para finalmente virar 100% vegetariano, e não tenho nenhum direito de acelerar o processo de ninguém. Agora, eu sou honesto com você, então, por favor, seja honesto comigo e não invente desculpas esfarrapadas como o argumento do "eu não conseguiria viver sem carne".

Sim, devem existir pessoas no mundo que precisam de carne para viver, seja por questões médicas, seja por que não há mais nada o que comer em sua região. Não estou falando destas pessoas. Paradoxalmente, estas pessoas que realmente precisam de carne para viver nunca usariam este argumento, por que o problema ético de comer ou não comer carne para elas é inexistente ou irrelevante. Estou falando de pessoas que vivem em uma situação financeiramente confortável, possuem boa educação e preocupam-se com problemas morais mas que, por algum motivo que eu não consigo realmente entender, excluíram as considerações alimentares da esfera da ética por que dizem para si mesmos que "bah, não dá pra viver sem carne. É da minha natureza, sabe?"

Quero pegar este argumento e brincar com ele um pouco. Vamos substituir os termos, e ver se muda alguma coisa:

Não conseguiria viver sem fumar crack. Eu sou viciado mesmo, sabe?

Não conseguiria educar meus filhos sem bater neles. É assim que as coisas tem que ser, sabe?

Não conseguiria viver sem estuprar mulheres. Elas tem que obedecer, entende?

Peguei pesado com as comparações, mas por um bom motivo. Todas elas possuem quatro características em comum com o argumento do "não posso viver sem carne." A primeira é que todas elas envolvem uma busca egoísta por benefícios para si, a despeito de se causar sofrimento ou dano para outros seres vivos. O ganho obtido, seja prazer, alívio ou obediência justificam o mal causado. A segunda característica é uma naturalização da própria escolha. Não se parte do princípio que tal comportamento é fruto de uma longa história de aprendizado, uma construção, e que outro comportamento pode ser aprendido para substituí-lo se assim for necessário. Não. Se parte do princípio de que as coisas sempre foram assim e sempre serão: comer carne é da nossa natureza, eu sou um viciado e preciso de crack, crianças precisam obedecer os pais, mulheres devem fazer sexo quando seus maridos assim desejam. Naturalizando a própria escolha, se exclui qualquer possibilidade de consideração ética e, portanto, de mudança, por que é necessariamente a escolha mais ética possível.

A terceira característica é uma conseqüência da segunda: todas as justificativas de certa forma denigrem o ser humano. Tal tipo de argumento desculpa e justifica um comportamento inadequado ou impensado com a exclusão da capacidade humana de mudar a si próprio quando necessário ou desejado. Dizer que "é assim que tem que ser" é basicamente admitir que se é mera marionete na mão de forças superiores, incompreensíveis e incontroláveis, e que não possui força para vencer uma coisa tão banal quanto a satisfação de um prazer tão baixo quanto o paladar.

A quarta e última característica é a desonestidade que vem embutida no seu fatalismo. Talvez seja moralismo da minha parte, especialmente no que diz respeito a comer carne, mas justificar o próprio prazer de forma tão determinista é mais preguiça de mudar um hábito tão incrustrado que limitou as tuas possibilidades existenciais do que uma verdadeira impossibilidade de mudar. "Eu não conseguiria viver sem carne" pode ser um argumento mais suave, diplomático do que simplesmente dizer "como por que gosto e não quero parar", mas é muito mais covarde, por que não expõe francamente o que lhe motiva a manter tudo na mesma.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Copyright e Fluxo de Informações

Um dos pilares da nossa sociedade capitalista é a propriedade privada: o que é meu é meu, e o que é seu é seu, mas se você bobear, vai ser meu também, e logo. O objetivo do capitalista é crescer para todos os lados, expandir sua propriedade por todo o mundo, tornar-se dono do universo, e de todos os processos que nele acontecem. Isto aparece de maneira óbvia com os objetos materiais, como fábricas, máquinas, apartamentos e aparelhos eletrônicos, mas ocorre também com o que se convencionou chamar de "propriedade intelectual." Este é um termo particularmente vago, que abrange qualquer coisa que qualquer ser humano possa escrever, desenhar, falar ou registrar eletronicamente. Dizer que só recentemente a propriedade intelectual foi atacada pelo capitalismo seria uma ingenuidade da minha parte, por que a primeira coisa que fazem depois de inventar uma nova tecnologia de informação é descobrir como fazer para ganhar dinheiro com ela. Em nossos dias, porém, este processo está ainda mais gritante, por que acontece com cada vez mais velocidade e intensidade.

Através da internet, produzir conteúdo e compartilhá-lo deixou de ser monopólio de empresas especializadas nisto, como gravadoras de música e emissoras de televisão, e passou a ser uma possibilidade para todos que disponham de um computador e um modem. Esta possibilidade encerra em si uma outra: a de que no futuro eliminemos por completo o trabalho destas empresas especializadas e façamos tudo de maneira direta, sem mediadores e intermediários. O mero sonho de que isto possa acontecer um dia é tão assustador para a maior parte da indústria de propriedade intelectual que elas fizeram (e fazem) um esforço enorme para que leis de copyright como as infames SOPA, PIPA e ACTA, e regulamentar como se compartilha dados na internet. Tais leis,se aprovadas, teriam limitado a troca de informações entre usuários de internet de um modo tão profundo que até mesmo emails e mensagens pessoais poderiam ser investigados por quebra de copyright. A mera tramitação dos projetos de lei no congresso dos Estados Unidos deu direito ao FBI de fechar o Megaupload e prender seu presidente, Kim Dotcom, que morava na Nova Zelândia. Se tivessem sido aprovadas, a maneira como usamos a internet não mudaria radicalmente - morreria. É difícil, e um tanto quanto apelativo, tentar imaginar como seria um mundo onde as leis Anti-Pirataria na Internet tivessem sido aprovadas e postas em prática, mas a prisão de Dotcom indica que seria um grande estado policial, sempre buscando coibir qualquer coisa que violasse os direitos autorais e de lucro das grandes empresas.

Num mundo como este, o que fariam os anarquistas? Pra começo de história, essa cara:


Apesar do fechamento do Megaupload, junto com as restrições autoimpostas de outros sites de hospedagem de arquivos, ter diminuído consideravelmente o compartilhamento de arquivos, não quer dizer que as pessoas pararam de fazê-lo. O Pirate Bay e os milhares sites de torrents foram ameaçados, mas continuaram funcionando, e (tirando os eventuais cagaços que tomamos) parecem que vão continuar funcionando por muito mais tempo.

Um aspecto central de todos os governos modernos é que seu poder se baseia quase que exclusivamente em coerção: punir quem age contra os interesses do Estado, e ameaçar com possíveis punições aqueles que pensam em agir contra os interesses do Estado. A curto prazo, é uma estratégia eficaz, por que punições severas e ameaças graves inibem todo e qualquer comportamento indesejado. Por exemplo, a prisão de Kim Dotcom realmente fez com que o Megaupload parasse de funcionar, e de quebra ainda assustou outros os donos e administradores de outros sites parecidos. Entretanto, a longo prazo a coerção é um tiro no pé por que sempre suas vítimas sempre encontram uma maneira de contorná-la, obrigando quem coibe a aumentar suas punições e ameaças cada vez mais para continuar sendo "efetivo", até que o sistema entre em colapso. Como diz um ditado paraguaio: "hecha la ley, hecha la trampa" (feita a lei, feita a trapaça).

E para um anarquista que vive nestes tempos loucos, a internet é a melhor maneira de obter informações. Entretanto, para que ela seja realmente anarquista, e realmente eficaz como fonte de conhecimento, ela depende da colaboração espontânea e até certo ponto desinteressada (de uma perspectiva capitalista, pelo menos) de muitas pessoas e, principalmente, a sua própria colaboração espontânea e desinteressada. Muitas pessoas compartilham fotos, textos, livros, link, músicas e muitas outras coisas. Mas, se todas as pessoas que disto se beneficiam se limitarem a fazerem o download e deixarem seus novos arquivos bem guardados em seus computadores, sem os repassarem adiante de algum jeito ou de outro, a internet não teria tido o impacto que têm atualmente em nossas vidas. Seria, no máximo, uma moda passageira, como foram os tamagochi e os Menudos, sem nenhum impacto ou consequencia.

O fato dela ser tão importante e presente em todas as nossas atividades é, penso eu, por que ela potencializou práticas muito antigas de apoio mútuo, e serviu para agrupar e aproximar pessoas em torno de objetivos e gostos em comum (ainda que ela possa ser usada também para fazer o oposto). Na subcultura anarquista, sempre foi muito comum a troca de informações. Como falei em um texto mais antigo aqui do blog, informação é poder, e uma sociedade igualitária exige tanto uma distribuição equalitária tanto dos bens materiais, quanto dos bens simbólicos. Por isso, os anarquistas sempre teceram redes de troca de conhecimentos, fazendo empréstimos de livros, revistas, jornais e até mesmo fofocas, mitos, histórias e mentiras deslavadas. Antes da internet, esta troca simbólica era muito mais concreta, e por isso muito mais demorada. Além disso, era muito mais vulnerável à censura. No livro "História das Idéias e Movimentos Anarquistas", de George Woodcock, fica bem óbvio quanto interesse os governos e classes dominantes tinham em proibir a circulação de panfletos libertários e revolucionários de maneira geral.


 Hoje, tanto por causa das mudanças na relação entre população e Estado, bem como nas mudanças tecnológicas como o surgimento da internet e seus muitos acessórios, não é possível (pelo menos na nossa sociedade ocidental) censurar na cara dura. É preciso inventar alguma desculpa, dizer que é para a segurança da sociedade, fazer uma campanha terrorista mostrando todos os perigos  que a publicação de tais informações carregam consigo (especialmente contra as crianças), ou usar algum argumento econômico bastante duvidoso de que tais práticas estão ferindo os lucros das grandes empresas e, portanto, toda a sociedade. Frente a estes argumentos, é importante pensar em quem o Governo quer proteger: a população ou os grandes proprietários? Não quero dar nenhum spoiler, mas vou dar uma dica - nós não somos importantes para o Estado.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Mais sobre aborto

Já que meu texto anterior foi sobre o aborto de anencéfalos, acho que preciso falar do tema mais amplo, que é o aborto em si. Como eu disse anteriormente, a decisão do STF foi, sim, uma conquista, mas uma conquista mirrada e pouco ousada, por que abortar fetos incapazes de sobreviver por mais de uma semana não deveria causar mais desconforto do que extrair um tumor maligno. O aborto de fetos biologicamente viáveis, por outro lado, é um problema ético, por que não há consenso sobre a conduta correta, e todas as alternativas envolvem riscos e prejuízos.

Em discussões éticas, penso que a melhor postura é ser claro e honesto, dizendo diretamente o que se pensa. Em relação ao aborto, tenho duas opiniões. A primeira é que eu acho o aborto em si uma coisa horrorosa. A segunda é que eu acho que o aborto deve ser legalizado. "Espera" você que está lendo este texto agora deve estar exclamando. "Como é que alguém que defende a clareza tem opiniões tão divergentes sobre o mesmo assunto? Tu não está sendo incoerente em tuas posições?" Penso que não. Para ser franco, tenho a impressão de que todos os defensores da legalização do aborto possuem estas mesmas opiniões, inclusive as feministas.

Apesar da pieguice do que eu vou dizer agora, a gravidez é de fato um "ato sagrado", pois é assim que geramos novas vidas. Não há como manter-se indiferente a isto. Carregar uma vida dentro de si é uma responsabilidade muito séria, e não deve ser assumida sem comprometimento, sem desejo, sem preparo. Porém, acontece muito frequentemente o exato oposto - mulheres engravidando sem desejo algum de serem mães, seja por acidente, como uma camisinha furada, descuido, como esquecer de tomar a pílula anticoncepcional, ou alguma tragédia, como o estupro. Em todas estas situações, as mulheres têm o direito de decidirem se querem levar a gestação à termo, ou se não estão preparadas para terem uma criança, não importa o motivo pelo qual engravidaram sem querer. Correm no Facebook muitas mensagens dizendo coisas do tipo "quem mandou não se cuidar? Agora tem que arcar com as consequencias!" como se engravidar por acidente fosse algo como derrubar refrigerante no tapete, que sujou tem que limpar. É um pensamento muito limitado, por que, depois que a gravidez acabar, não vai ser como o tapete, que vai estar limpo e (com sorte) sem mancha nenhuma: vai ter um bebê, cheio de necessidades, nas mãos de uma mãe que nunca quis ser mãe. Pode ser que ela aprenda a amar a criança, e cuide bem dela, mas e se isso não acontecer, como é que fica? Sim, a criança poderia ser adotada por uma família amorosa. Porém, até onde eu sei, já existem muitas outras crianças aqui no Brasil esperando serem adotadas. Por que colocar mais uma nessa lista de espera? Por que colocar mais uma criatura inocente para sofrer no mundo? Para fazer a mãe "arcar com as consequencias"? Por que Deus quer?

Ter um filho é uma das coisas mais sérias que se pode fazer, e mesmo as mulheres que não desejam engravidar concordam com isto. Na verdade, é justamente por saberem que é algo grave que elas optam por não ter filhos. E elas devem ter seu direito de escolha amparado pela lei, independente delas terem engravidado por descuido ou não. O aborto não é a única ferramenta disponível para ajudar as mulheres a não engravidarem, mas apenas o último recurso caso tudo mais falhe. Existem as pílulas anticoncepcionais, as pílulas do dia seguinte, os preservativos, dispositivos intrauterinos, e mais um monte de outras opções seguras. Atualmente, como o aborto é considerado crime, a última alternativa de mulheres que engravidaram e que não querem ser mães são ou clínicas de aborto clandestinas, ou soluções mais caseiras mesmo, como chás abortivos ou as "boas e velhas" agulhas de crochê. Não precisa ser residente em Medicina Interna pra saber que estas alternativas populares não são exatamente as mais seguras, e que anualmente milhares de mulheres morrem por causa delas. O aborto legalizado, feito com higiene e segurança em hospitais de qualidade, não seria para fazer "Festivais do Aborto", nem encorajariam mulheres a engravidar só por que "agora eu posso abortar quando eu quiser." Da mesma forma que a gravidez, o aborto também é uma decisão muito grave, e dificilmente será feita de forma inconsequente.

O aborto já é uma realidade agora, e sua prática, ao invés de ser combatida, deve ser legalizada e regulamentada, para evitar a morte de mulheres fazendo abortos inseguros, o nascimento de crianças com deformidade por causa de abortos mal feitos, e o sofrimento de crianças que não foram desejadas. Ele não deve ser a única alternativa para casos de gravidez acidental ou indesejada: deve ser feito, por exemplo, acompanhamento psicológico para mulheres que engravidaram por causa de estupro, e a decisão de abortar ou não deve ser muito bem discutida. Entretanto, a decisão final deve ser sempre da mulher, seja ela qual for. Qualquer política pública que não envolva isto será, no máximo, um forçar a mulher fazer algo que não quer, com um verniz humanitário.

sábado, 14 de abril de 2012

Aborto, Anencéfalos e Mulheres

Nos últimos tempos, tenho desenvolvido um interesse crescente por um tema que, antigamente, eu simplesmente ignorava: feminismo. Por um misto de preguiça, desconhecimento e preconceito, achava que o feminismo era apenas um tipo organizado de ódio aos homens, um movimento tão preconceituoso quanto qualquer grupo neonazista. Porém, quando comecei a conviver com feministas na universidade, e a me dar ao trabalho de estudar um pouco a respeito, percebi que o feminismo é a crença de que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens, e a vontade para tornar esta crença realidade. Muita gente realmente acredita que as mulheres são iguais aos homens, que merecem tratamento igualitário e sem preconceito. Entretanto, também acreditam que não há nada por ser feito - a batalha já está ganha, as mulheres já são iguais aos homens em direitos, não vê quantas mulheres ocupam cargos de chefia em empresas importantes? É neste ponto que as feministas chamam a atenção para si, por que, embora muitos progressos tenham sido conquistados pelos direitos das mulheres, estas conquistas de maneira geral beneficiam apenas as classes econômicas mais elevadas, e não são tão fenomenais quanto queremos acreditar. Enquanto pensamos que vivemos em uma sociedade igualitária, todos os dias milhares de mulheressão agredidas, estupradas e mortas, muitas vezes pelos próprios maridos ou namorados, que recebem da sociedade a mensagem de que suas esposas não são suas companheiras, mas suas propriedades, e que podem fazer o que bem entendem com elas, quando bem entendem. E ao invés de causar horror, isto é tratado como se fosse absolutamente normal, por que ela usou uma saia muito curta, saiu da linha e foi desaforada, pulou a cerca.

Este pensamento também se aplica à gravidez e ao aborto. É no corpo feminino que os novos seres humanos são gerados, e é sem exagero que digo que este é o ponto mais importante de toda e qualquer sociedade de todos os tempos, em todos os cantos do mundo. Se não for possível criar mais membros de nossa cultura, como perpetuá-la? É uma tremenda responsabilidade ter um filho, e, apesar de toda esta responsabilidade, as mulheres não têm quase nenhuma liberdade para decidir se realmente desejam assumi-la. Por muito tempo, elas foram tratadas como fábricas de bebês, que devem parir um novo herdeiro por ano, para aumentar o patrimônio de seu dono, o marido. Colocar as coisas desta maneira é chocante, e respiramos com alívio ao pensarmos "ainda bem que não é mais assim." Bom, nem tanto. Até dois dias atrás, era proibido a realização do aborto de bebês anencéfalos, isto é, que se formam sem o crânio dentro do útero. Não apenas era proibido, como era considerado crime. Para evitar uma gravidez de alto risco, capaz de matar a mulher e causar seqüelas psicológicas graves, tanto mulheres quanto profissionais da saúde precisavam agir fora da lei, e correr o risco de serem presos. E, mesmo que o risco de ir para a prisão não fosse tão grande assim, ainda havia a certeza do estigma de ter feito um aborto.

Quando foi anunciado que o direito de fazer aborto de fetos anencéfalos seria decidido pelo Supremo Tribunal Federal, organizações religiosas e tradicionais se uniram, e levantaram bandeiras dizendo "defender a vida" por que crianças anencéfalas também têm direitos. No Facebook, e em diversas outras redes sociais, várias imagens e memes foram compartilhados defendendo a "vida" destas crianças, atacando as mulheres que fizeram aborto e quem quer que defendesse este direito. Em todas estas defesas da vida, se partia do pressuposto de que a mulher deve, sempre, não importam as circunstâncias, levar sua gravidez até o final, mesmo que isto a mate ou a coloque em risco de vida. É o dever dela, dado por Deus, e que portanto deve ser respeitado. Se ela sente medo, se ela não quer, se o bebê for incapaz de viver mais do que uma semana, ah, isso é irrelevante.

Por isso, apesar de ter sido uma grande conquista o direito de realizar aborto de fetos anencéfalos, ainda é uma conquista muito pequena. É como conquistar o direito de fazer operações para remover tumores malignos do útero, ou de ter um atendimento em saúde decente, ou de não apanhar do marido. É algo que consideraríamos óbvio, e não uma questão polêmica. Mesmo assim, a decisão do STF virou assunto de notícia, e foi transmitido ao vivo para todo o Brasil, como se fosse jogo da Copa do Mundo. As mulheres ainda são cidadãs de segunda classe, e qualquer movimento para mudar esta situação é vista como revolucionária, fantástica ou inimaginável.

Foi uma vitória triste, mas uma vitória mesmo assim, e merece ser comemorada. Não quer dizer que devemos nos acomodar, e sim nos esforçarmos ainda mais para que a injustiça contra as mulheres diminua e desapareça. Esta não é uma luta meramente feminina, mas de todos nós.

sábado, 17 de março de 2012

Ação, Inação e Meditação

A língua inglesa possui algumas expressões que, apesar de significarem coisas que não são estranhas a nós falantes do português, por assumirem uma forma diferente da nossa, e portanto com um toque de estranheza, estimulam em nós reflexões diferentes daquelas que faríamos se as ouvíssemos em nossa língua materna.

O termo que capturou minha imaginação hoje foi "Ebb and Flow." Numa tradução grosseira e pouco inspirada, ela significa "maré alta e maré baixa". Entretanto, como o inglês tem uma longa história de autores que exploram ao máximo sua capacidade de expressar ideias através de imagens e metáforas de maneiras instigantes, "Ebb and Flow" é frequentemente usado para descrever os altos e baixos da vida - a nossa alternância entre euforia e depressão, abundância e pobreza, paixão e apatia, festa e solidão, ação intensa e pasmaceira.

Do mesmo modo que a vida alterna entre vales e montanhas, nós também variamos a maneira como vemos estes momentos. Às vezes, vemos os momentos de grande intensidade e força como oportunidades únicas, e como nadadores audazes, nos atiramos ao mar para nadar em plena noite de tempestade. Porém, em outro momento, às vezes imediatamente após termos nos atirado apaixonadamente em águas revoltas para conquistar a glória, sentimos a intensidade como cruel em nosso corpo, e a força insuportável para nossa mente. Então, passamos a sonhar com um refúgio para nossas almas abatidas, uma grande planície ensolarada, com campos de trigo a perder de vista e uma pequena casa de madeira no meio de tudo, onde o calor do fogão à lenha e doses generosas de comida caseira e descanso curariam nossas feridas mais profundas. Desfrutamos desta paz e serenidade, mas apenas até o momento em que começamos a sentir o calor do fogão como opressivo, a comida sem gosto e a paz e serenidade que antes tanto desejávamos como tédio e pasmaceira, e nossos olhos se tornam inquietos na busca de um cavalo ágil e feroz que nos leve o quanto antes até os mesmos mares que antes nos assustaram.

Nós, seres humanos, também temos nosso "Ebb and Flow", e isso não seria um problema, se não nos desviasse tantas vezes e com tanta intensidade de nossos valores mais amados. Queremos nos tornar bons profissionais, mas estudar é chato e sair todas as noites não; queremos ser bons colegas, bons amigos, bons companheiros, mas o sarcasmo vem mais fácil para a ponta da língua do que a compaixão; queremos ser fortes e velozes, mas o sofá da sala e suas cobertas quentinhas é muito mais convidativo do que a pista de corrida e a academia. Mais vezes do que queremos admitir, nós não temos a menor escolha sobre nossos próprios atos. Em seu livro "A Conquista da Mente", o professor de meditação indiano Eknath Easwaran conta que viu em um pedaço de madeira sendo jogado para lá e para cá pelas ondas de um mar encapelado a metáfora perfeita para o ser humano que não disciplinou a sua vontade - uma hora, as águas nos jogam em terra firme, e ficamos ali, parados, como se quiséssemos dizer "eu quero estar aqui, por que a areia é fofa e agradável, enquanto que o oceano é salgado e frio. Não quero mais nada lá!"; cinco minutos depois, quando elas nos puxam de volta para seu meio, nos vemos dando outra explicação "mudei de idéia, sabe? A areia é muito parada, chata, não me deixa expressar meu verdadeiro potencial. O oceano é empolgante, e é nele que eu vou nadar!" E assim, seguimos nossa vida, fazendo muito e agindo pouco, buscando sempre e encontrando nada no final.

A natureza humana é dupla, por que ao mesmo tempo em que precisamos de descanso e conforto, precisamos de ação e aventura. Nosso maior problema não é essa duplicidade aparentemente contraditória; nosso maior problema, na verdade, é pensar que aquilo que queremos é aquilo de que necessitamos. Para um indivíduo disciplinado, o querer e o precisar se sobrepõe de maneira quase perfeita. Para a maioria de nós, entretanto, que cresceu buscando o prazer e evitando o desprazer sem nenhuma reflexão sobre as consequencias de nosso comportamento, confundimos tudo, buscando coisas que nos fazem mal por que queremos o prazer a elas associado, e evitando as coisas que precisamos por que não queremos o desconforto que vem com elas. A curto prazo, sentimos euforia, mas a longo prazo nos sentimos vazios.

No mesmo dia em que viu aquele pedaço de madeira sendo jogado pela água e pelo vento como um brinquedo barato, Eknath viu outra cena que estimulou sua imaginação e que também virou uma lição de meditação em "A Conquista da Mente". Mais ao fundo no mar, ele viu dois meninos, um mais novo e outro mais velho, em cima de pranchas, tentando surfar as poderosas ondas da tempestade. O mais novo era um tanto quanto inexperiente, e volta e meia tomava uns caldos. O mais velho, porém, sabia o que estava fazendo, e quando menos se esperava, estava em pé sobre sua prancha, riscando velozmente o mar e usando a sua fúria como sua fonte de energia. Para Eknath, a conquista da mente é exatamente isto - domar as enormes forças selvagens que temos dentro de nós para nos levar adiante na vida. Tal como no surf, na meditação precisamos adentrar o mar do nosso inconsciente, sentar em nossas pranchas e esperar o momento certo de nos atirarmos em uma onda que nos levará para a frente. No começo, não sabemos diferenciar as ondas boas daquelas que não darão em nada, ou que nos jogarão para qualquer lado como um boneco de posto de gasolina; tomamos muitos caldos, mas, se depois de cada um deles, insistirmos em tentarmos mais uma vez, acabamos aprendendo a surfar cada vez melhor. Precisamos, também, saber quando sair do mar e voltar para casa, por que embora a meditação, tal como o surfe praticado conscientemente, nos ensine lições preciosas, é na agitação da vida diária que devemos aplicá-las.

Para um meditador experiente, como o próprio Eknath, não há diferença radical entre o repouso e a ação - sempre se está em repouso na ação, e em ação durante o repouso. Mantém-se a serenidade interior mesmo na maior das tempestades da vida, e treinando e se preparando nos momentos mais tranquilos. Quem adquire esta habilidade consegue focar sua atenção sem hesitação, faz o que precisa ser feito e atinge os objetivos mais distantes, honrando aqueles valores que um dia escolheu seguir.

E é por isso que hoje, ao contrário de seguir a minha rotina e ficar na inércia em casa, vou me arrumar, sair de casa e ver uns amigos na Cidade Baixa. A meditação é um processo constante, que deve ser praticado em todos os momentos da vida.

E como bônus, aqui vai a trilha sonora que embalou a escrita deste post: The Tragic Prince - Castlevania Symphony of the Night Soundtrack.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Radical e Dogmático

Somos criaturas de linguagem, e vivemos entre palavras, cujos significados se perdem ou se modificam sem que nos demos por conta. Por isso, para mantermos a nossa clareza de julgamento, é necessário que revisemos estes significados de tempos em tempos, pois algumas palavras bem definidas podem esclarecer muitas coisas, e melhor orientar nossa conduta.

Quando alguém usa o termo "radical", dificilmente se refere a uma coisa boa. A "ala radical do PT" a que continua sendo de esquerda, os "muçulmanos radicais" e as "feministas radicais" todos tem uma coisa em comum: são vistos como agressivos, exagerados e inflexíveis, pelo menos por quem os define como radicais. Este adjetivo é usado para descrever indivíduos ou grupos que não apenas exageram, como também não querem deixar de exagerar de jeito nenhum, por que são eles que estão certos.

Entretanto, quando se procura pela palavra no dicionário (eu usei o Michaelis Virtual) o que se encontra é o seguinte:

1 Pertencente ou relativo à raiz.
2 Que parte ou provém da raiz.
3 Relativo à base, ao fundamento, à origem de qualquer coisa; fundamental.
4 Completo: Cura radical.
5 Que pretende reformas absolutas em política.

Nenhuma das definições oferecidas por este dicionário se enquadram naquelas que descrevi anteriormente. Por que? Não posso garantir com certeza, mas defendo a hipótese de que a palavra "radical", ao longo do tempo, teve seu significado primordial esquecido, e, por uma série de fatores históricos, como o surgimento de muitos grupos político-religiosos radicais violentos, passou a ser usado em outro contexto verbal. Por isso, quando hoje alguém te chama de radical, é por que esta pessoa provavelmente considera as tuas idéias, sentimentos e atitudes perigosamente exagerados, e que tu precisa diminuir a intensidade deles. Será mesmo? Todo radicalismo deve ser necessariamente combatido? Antes de responder esta pergunta, faço outra: a palavra radical é a mais adequada para descrever este tipo de pensamentos, sentimentos e comportamentos?

Vamos considerar outra palavra que também é usada para descrever condutas socialmente mal vistas - dogmático:

1 Relativo a dogma.
2 Conforme a um dogma.
3 Decisivo.
4 Que se pretende impor com autoridade; autoritário, sentencioso.
5 Pedantesco.

Comparando as definições das duas palavras, ficamos com a clara impressão de que, se quisermos descrever um grupo ou indivíduo conhecido por suas tendências terroristas, é linguisticamente mais adequado associá-lo a um adjetivo que o caracteriza como "pedantesco" e que "busca se impor com autoridade". Entretanto, não me parece inadequado continuar a descrevê-los como radicais, visto que eles também buscam reformas absolutas e mudanças completas em algum aspecto da sociedade. Então, faço uma terceira pergunta: pode uma só dessas palavras absorver o significado da outra?

Minha resposta agora é clara: não. Apesar de frequentemente as associarmos na vida real, elas descrevem aspectos diferentes do comportamento. O radicalismo implica em ir até a raiz de um problema, levar uma crença ou opinião até à sua conclusão lógica, enquanto que o dogmatismo se refere a considerar uma idéia como correta independente do que dizem os fatos, e tentar usá-la em mais situações do que ela poderia ser útil (além, é claro, de tentar impô-la a outras pessoas). Dentro desta perspectiva que aqui apresentei, ser radical não é um problema: pelo contrário, o problema maior que enfrentamos atualmente é a falta de radicalidade das pessoas, que acreditam em ideais de justiça, verdade e bondade, mas que não os realizam, não os levam a bom termo por que fazê-lo seria por demais desconfortável e incômodo. Sim, os terroristas são radicais, já que estão dispostos a explodir meio mundo por causa de suas crenças. Contudo, eles também são dogmáticos, e não aceitam a possibilidade de acreditarem em algo que esteja errado. É seu dogmatismo que torna seu radicalismo perigoso.

Se fossemos mais radicais - nos dispusessemos mais a correr riscos, a testar nossas idéias e levá-las até suas últimas conseqüências - e ao mesmo tempo temperarmos nosso dogmatismo natural com com generosas doses de tolerância, compreensão e empirísmo (deixar-se modificar pela experiência), talvez nosso mundo seria um lugar mais agradável de se viver, por que viveríamos muito mais de acordo com nossos valores mais profundos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Blogs e Produção de Conteúdo

No post de ontem, falei sobre a necessidade de mantermos a informação circulando livremente para que possamos criar uma sociedade mais livre. Falei um pouco sobre blogs, e o papel que andam cumprindo de quebrar o monopólio da Mídia Tradicional. Após ter publicado o texto anterior, percebi que há muito mais a ser dito sobre este assunto.

Antes de mais nada, é necessário dizer que, embora eu tenha falado em blogs (e tenha até colocado o termo no título desse texto), eles são apenas parte de um fenômeno mais amplo, que é conhecido por Conteúdo Gerado por Usuários (do inglês User Generated Content - UGC). UGC, de maneira geral, é todo conteúdo original produzido por pessoas que não estão diretamente ligadas à Mídia Tradicional, através de sites pessoais, vídeos, blogs, comentários em sites alheios, o diabo (quem tiver interesse, a Wikipedia tem um artigo sobre isso). Onde o UGC começa e onde ele termina não é muito claro para mim, já que é possível um jornalista contratado pela Zero Hora ter um blog pessoal, ou companhias mais tradicionais podem usar algum tipo de recurso UGC para interagir com seu público alvo. Ainda assim, o fenômeno é bastante claro, e pode ser resumido da seguinte forma: cada vez mais pessoas têm acesso direto aos meios de comunicação, sem a necessidade de algum mediador, como jornais, revistas ou emissoras de televisão.

Isto tem uma série de efeitos. O primeiro, do qual eu já falei no texto anterior, é a quebra do monopólio da informação. Como mais e mais pessoas estão compartilhando seus pontos de vista sobre os fatos importantes, não precisamos mais acreditar no que a Globo, a Record ou a CNN nos dizem. O caso da desocupação do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, é um bom exemplo disso. Enquanto que a revista Veja publica um artigo escrito por um senador do PSDB afirmando que tudo ocorreu dentro dos conformes, sem nenhuma morte ou violência, milhares de blogs e perfis no Facebook divulgam fotos e informes em primeira mão dos crimes cometidos pela Polícia Militar, como o assassinato de uma criança de um ano, a agressão gratuita contra jornalistas e partidários da esquerda, e a prisão ilegal de deputados e senadores ligados à causa dos direitos humanos que lá foram investigar o que estava acontecendo. Quem está falando a verdade aqui? Em última análise, eu não tenho como saber com certeza, por que não estive em Pinheirinho, mas não preciso aceitar a versão da Veja como a última palavra, e escolher em quem eu acredito, baseado em considerações racionais (por exemplo: será que a Veja teria algo a ganhar ao defender as causas do PSDB e atacar os partidos de esquerda, especialmente o PT? Muito provavelmente, para ficar nos eufemismos).

Há, contudo, outros efeitos do UGC que eu não discuti no post anterior. O primeiro deles é que só por que aumentou a quantidade de conteúdo disponível não quer dizer que este conteúdo seja de boa qualidade. É a famosa Lei de Sturgeon, que afirma que "90% de tudo que já foi feito é porcaria." Essa lei se aplica aos blogs, vlogs e tudo o mais que está sendo produzido por usuários da internet. Deve-se levar em conta que estes novos produtores de conteúdo não são profissionais da área. Como eu, ganham seu dinheiro trabalhando em alguma coisa não relacionada à mídia, e usam seu tempo ocioso para escrever um texto ou gravar um vídeo discutindo algum assunto do seu interesse. Eles não são pagos para isso. Aliás, é razoável dizer que eles precisam pagar para produzir conteúdo, seja através da conta da internet, seja utilizando um tempo que poderia ser empregado trabalhando para ganhar mais dinheiro. Neste caso, a Mídia Tradicional tem uma vantagem, que é a de contar com profissionais dedicados exclusivamente a produzir conteúdo, treinados e pagos para investigar, pesquisar, escrever e editar informações. Isto não significa que o conteúdo produzido pelos jornais e mídias tradicionais seja de melhor qualidade do que aquele gerado por usuários (as milhares de gafes que aparecem em sites profissionais como o G1 que o Cardoso adora cutucar são prova disso), mas que ele é feito em melhores condições, o que aumenta a probabilidade de ser de melhor qualidade, ou de ser mais amplamente distribuído.

Penso que ainda não existe nenhum blog que possa competir em influência com a Veja ou a Zero Hora principalmente por isso. Entretanto, também tenho a impressão de que a influência gerada pelo UGC é diferente daquela exercida pela velha mídia. Em primeiro lugar, ela é muito mais quantitativa do que qualitativa. Quando leio uma reportagem da Veja ou qualquer outra revista, é o nome dela, a "grife", que me diz que estou lendo informação de boa qualidade (ou não, já que é da Veja que estamos falando). Nas redes sociais, penso que a quantidade de pessoas compartilhando uma notícia é bastante importante, por que mostra o "buzz", ou a mobilização gerada pela notícia. Em segundo lugar, ela é muito mais pessoal e próxima. Aquilo que eu sei sobre o caso Pinheirinho eu não li na Veja: recebi de amigos e conhecidos, pessoas próximas, que conheço pessoalmente e em quem confio. Posso conhecer o nome de um ou dois jornalistas contratados pela Zero Hora ou pelo Pioneiro, e até mesmo ser capaz de identificar o estilo deles de tanto que li seus textos, mas continua sendo uma relação bastante impessoal e distante. Então, se minhas hipóteses estiverem corretas, não é possível, nem desejável, que um único blog se torne tão influente quanto uma revista de grande porte, por que então perderia sua característica pessoal e humana, e se tornaria apenas uma revista virtual. Entretanto, posso estar equivocado, e um site mantido por usuários, e não por profissionais da informação, se mantenha pessoal e próximo como a maioria dos blogs, mas exerça uma influência grande o bastante para ameaçar a grande mídia. Não posso citar nenhum exemplo disto até agora, mas portais de entretenimento como o Channel Awesome estão, penso eu, bastante próximos disto.

EDIÇÃO: Encontrei um texto do Cardoso que merece ser compartilhado aqui - "Cazaquistão e o oposto do sofativismo." É uma ótima leitura, e um ótimo exemplo do que falei no post anterior.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Informação e Anarquismo

Todas as culturas humanas, sem exceção, dependem da transmissão de informação. Como não podemos depender exclusivamente dos nossos instintos para sobreviver, o conhecimento acumulado ao longo das gerações, bem como aquele que está sendo descoberto e testado aqui e agora, é extremamente valioso. Não quero me alongar muito nesse ponto, mas, para mostrar o quanto isso é verdadeiro, olhe ao seu redor e pense: quais destes objetos que eu uso não foram fruto da troca de informação entre seres humanos? Os livros que você lê, a cadeira em que você se senta, o computador que você usa e até mesmo a construção que você habita são todos frutos do treinamento de alguém, que não seria possível se não fosse nossa capacidade de acumular e transmitir informação.

Então, quem detém os meios de propagação possui um poder bastante considerável. Os melhores exemplos disto são as universidades, que educam a "elite intelectual" de nossa sociedade, e as empresas de comunicação. Quem estiver de bem com estas instituições, está de bem com o poder estabelecido - ganha títulos de Doutor Honoris Causa, é chamado para dar sua opinião de especialista no Fantástico, maiores e melhores propostas de emprego, mais dinheiro e mais influência. Por outro lado, se você está de mal com essas instituições, pior pra você.

Sabendo que a distribuição da informação pode fazer qualquer pessoa ou projeto progredir ou afundar, sempre foi do interesse daqueles que buscam o poder controlar quais informações podem ser divulgadas para o público ou não. Isto fica óbvio quando olhamos de perto as práticas de qualquer ditadura moderna, e vemos que elas gastam uma energia considerável para manter a censura forte, e os jornais estatais como a única fonte de notícias para sua população. Para estados totalitários, qualquer informação dissonante da oficial é uma ameaça, e sua propagação deve ser impedida a qualquer custo. De cada acontecimento, só pode existir uma versão, a do governo, A Verdade, sendo todo o resto classificado como "propaganda subversiva", "mentira de comunistas" ou "lavagem cerebral". Por isso, é do interesse dos governantes ter uma relação de melhores amigos com os meios de comunicação, para que estas endossem "A Verdade" e não dêem espaço para qualquer outra possível explicação.


O problema é que isso não acontece apenas nos chamados estados ditatoriais, mas também nos chamados "estados democráticos". Pode ser que a censura não seja tão escrachada quanto na China ou na Coréia do Norte, mas acontece. A charge ali em cima é uma das coisas mais geniais que já vi na internet, não apenas por fazer uma comparação muito boa entre as antigas capitanias hereditárias e nossa mídia, como também por deixar clara a natureza oligárquica dos nossos meios de comunicação. Vivemos em um país livre? Sim, desde que nossa liberdade não interfira com os interesses das Grandes Famílias ali em cima. O melhor exemplo disso foi o caso em que o filho do sr. Sérgio Sirotsky foi acusado de estuprar uma menina menor de idade. Teoricamente, em uma sociedade livre, tal acontecimento seria de alguma maneira noticiado, por que é o filho de um cidadão bastante importante cometendo um crime bastante grave. Apareceu na RBS? Obviamente não. Aliás, o blogueiro que denunciou o caso foi encontrado morto de maneira misteriosa, o que é uma estranha coincidência, na minha opinião.

Por um lado, a informação deseja ser cara, por que seu valor é muito alto. Mas, por outro, a informação busca ser livre. Não posso garantir esta hipótese, mas tenho a impressão de que o primeiro sinal de que uma ditadura está enfraquecendo é a maior quantidade de fontes diferentes de informação. A maior disponibilidade de meios de notícia, fora do controle estatal, indica que é possível acreditar em outras versões da realidade que não aquela oferecida pelo Estado. Se esta disponibilidade não é a causa direta para a queda de regimes totalitários, certamente é uma variável muito importante a ser levada em conta. Os revolucionários anarquistas e socialistas europeus do século XIX certamente sabiam disso, tanto que, onde quer que fossem, fundavam algum jornal ou revista para servir de meio de transmissão de suas idéias. Como a censura era forte, volta e meia estes jornais e revistas eram fechados ou proibidos de circular, o que apenas fazia com que outros aparecessem em seus lugares.


Fico imaginando o que estes revolucionários do século XIX, especialmente os anarquistas, diriam da internet. Mais interessante ainda seria o que eles fariam com ela. A rede mundial de computadores é o maior experimento anarquista de que tenho conhecimento, com toda essa informação livre correndo por aí e passando de mão em mão, de tela em tela, sem nenhum controle externo muito forte. Também é interessante que os governos dos EUA e da Europa estejam tentando aprovar legislações anti-pirataria que cortariam drasticamente o fluxo de informações entre usuários da internet, como o SOPA, PIPA e a ACTA. Usando do discurso da "Lei e da Ordem", afirmam que a pirataria digital é um perigo para a propriedade intelectual e produção criativa mundial. Acho difícil acreditar nisso, especialmente se considerarmos todos os séculos em que os Estados dominaram os grandes meios de comunicação e transmissão de informação. Muito se debocha da internet, dizendo que ela é 35% pornografia, 35% figuras de gatinhos, 30% pornografia japonesa e 40% pessoas reclamando de barriga cheia (eu uso o sistema russo de porcentagem, a propósito), e que seu poder de propagação de informação ainda é inferior ao dos grandes jornais e revistas. Porém, ela tem o potencial para crescer muito, e tornar-se muito mais influente do que a Mídia Tradicional, e muito mais democrática, no sentido de qualquer um poder contribuir. Acho que os Estados já perceberam esse potencial, e estão tentando cortar o mal pela raiz.

E é aqui que a filosofia anarquista entra mais uma vez. Tal como falei no post anterior, a anarquia não é desordem, mas uma organização que não necessita de um ponto centralizador, como o Estado ou a Igreja. Nela, todos contribuem da maneira que podem. Isso ficou muito claro nas manifestações contra a aprovação das leis anti-pirataria, que foram mundialmente expressivas. Penso que os blogs hoje ocupam o mesmo papel dos antigos jornais subversivos, com muito mais poder de divulgação e muito menos riscos de repressão estatal. Contudo, esta situação não é dada, muito menos natural: é conquistada e merecida. Pode ser ingenuidade da minha parte (como todo bom idealista costuma ser), mas é a partir da colaboração mútua entre indivíduos livres que a nova sociedade está sendo construída, e não da invenção de "novos" sistemas políticos "perfeitos". Manter a internet livre, tal como ela é hoje, sem legislações repressoras, é a primeira e mais crucial tarefa desta construção.